Corpo e mente

Na juventude, Zé de Abreu descobriu a arte e a política. No autoexílio, novas possibilidades para o ser humano. Na vida, convivem o ator e o militante

“Sou bissexual, e daí? Posso escolher quem eu beijo? Quando quero beijar uma pessoa não peço atestado de preferência sexual, só depende de ela querer” (Foto: Luciana Whitaker/RBA)

A veia militante de Zé de Abreu verteu para a cultura e a política. Simultaneamente. Em 1967, quando entrou na faculdade de Direito da PUC de São Paulo, estreou no teatro com Morte e Vida Severina, obra de João Cabral de Melo Neto musicada por Chico Buarque, uma premiada produção do Teatro da Universidade Católica (Tuca). Tinha 21 anos. Ali conheceu o então líder estudantil José Dirceu. Ambos estavam entre os 719 presos, ano seguinte, no 30º Congresso da União Nacional dos Estudantes (UNE), em Ibiúna, no interior paulista.

“Entrei na faculdade e a Ação Popular era uma entidade de esquerda ligada à igreja mais evoluída, que tinha montado o grupo de teatro do Tuca, para fazer política”, lembra José Pereira de Abreu Júnior, que completará 69 anos em 24 de maio. Aos 14, ele deixou Santa Rita do Passa Quatro, a 250 quilômetros de São Paulo, rumo à capital. Foi assistente de laboratório, office-boy e, na faculdade, descobriu novos mundos. “O centro acadêmico era estimulante.”

Com passeata toda semana era impossível não participar. “Acabei sendo um dos delegados da PUC para o congresso da UNE, participei da organização. Havia uma briga bastante forte entre a AP e a dissidência do Partidão (o Partido Comunista Brasileiro). Quando houve a informação de que a polícia havia cercado, acordamos os líderes, fizemos uma reunião, e a AP decidiu que não fugiria. Então se decidiu que ficaria todo mundo.”

A barra pesava em dezembro de 1968. O AI-5 marca o início da fase mais implacável do regime iniciado em 1964. Censura, Congresso fechado, tortura, desaparecimentos, violência física e moral. “A luta política foi totalmente proibida. Um congresso da UNE era motivo de cadeia e processo, qualquer manifestação era proibida. Restaram a clandestinidade, a luta armada”, diz Zé de Abreu, que nunca pegou em armas, mas ajudou no deslocamento de pessoas clandestinas. Ele resolveu se exilar na Europa em 1968. “Minha irmã trabalhava no departamento de identificação civil da polícia de São Paulo e conseguiu um passaporte para mim, meio por baixo dos panos, para pegar um navio em Rio Grande e descer em Cannes (França).”

Dali, o roteiro incluiu Paris e Londres. Na capital inglesa, trabalhou como lavador de pratos e morou numa comunidade com 11 brasileiros. Ia a shows de rock, praticava alimentação macrobiótica e meditação. Antes de regressar, em 1974, morou na Holanda e na Grécia. Foi um “autoexílio” de descobertas. “Encontro outra realidade lá fora, a da luta contra o capitalismo, o consumismo, o crescer a qualquer custo. Foi um movimento filosófico, mas ficou com essa pecha pejorativa”, lembra, indicando a leitura de Corpos em Revolta, do filósofo norte-americano Thomas Hanna. Em 1970, Hanna escrevia que os corpos humanos se encontravam “em estado de rebelião cultural” e da sociedade tecnológica surgiria um novo ser humano.

Dicotomiazé

Assim, Zé de Abreu conta que viveu “os dois momentos” – da luta política e do movimento hippie. A busca pela revolução interior a partir da mudança de comportamento para, a partir daí, ajudar a mudar o mundo. A peça Bonifácio Bilhões remete a essa dicotomia. Comtexto de João Bethencourt e direção de Ernesto Piccolo, está atualmente em cartaz, mas foi montada pela primeira vez em 1975

 

O ator interpreta o economista Walter Antunes, que, na fila da casa lotérica, promete ao vendedor de goiabada Bonifácio Brilhante dividir o prêmio com o novo amigo, se ganhar. “Ele é um socialista que escreveu vários livros sobre a distribuição injusta da riqueza, o capital espoliador e a mais-valia, mas quando ganha na loteria não consegue dividir o prêmio. Não consegue aplicar o que prega”, observa. “Um diálogo muito bom da peça é quando ele diz ‘sou socialista’, e a mulher responde ‘socialista na vida pública, egoísta na vida privada’.”

Foto: Luciana Whitaker/RBA

Neste momento da vida profissional, e um quase um ano depois do sucesso da novela Avenida Brasil, ainda saboreia o sucesso do Nilo. “Quando a gente começa, não cria a expectativa de que aquele personagem será assim ou assado. Para o ator, é um trabalho como qualquer outro. O Nilo foi encarado por mim como qualquer outro e estourou de uma maneira como há muito tempo não estourava. Acho que desde Ti Ti Ti (1985) e Anos Dourados (1986)”, lembra, citando outros papéis “muito bons”, como o delegado Motinha, de A Indomada (1997), “que caía num buraco e saía no Japão”, e Josivaldo, de Senhora do Destino (2004/2005), marido de Do Carmo (Susana Vieira) e amante da Nazaré (Renata Sorrah).

Retorno

Também considera especial a atuação na telenovela O Outro (1987), na qual interpretou o gaúcho Genésio. “Ela teve uma característica marcante porque eu dirigi mais de 100 capítulos daquela novela. Virei diretor sem querer, de um dia para o outro. Foi muito gostoso, porque era uma coisa meio irresponsável. Fiz um curso de direção com o Herval Rossano, e aí o Ricardo Waddington acabou me convidando para ser seu assistente. Depois de uns dias, teve de sair para cuidar de uma nova novela, e acabei virando diretor”, recorda.

Quando voltou ao país em 1974, Zé de Abreu se mudou para Pelotas (RS), com a então mulher, a atriz e professora de teatro Nara Keiserman, com quem realizou a primeira montagem no Rio Grande do Sul de Os Saltimbancos, musical que na versão em português ganhou canções de Chico Buarque. Com Nara, o ator teve Ana, Théo e Cristiano. Teve mais dois filhos: Rodrigo, com a advogada Neuza Serroni, e o caçula Bernardo, com a economista Andrea Pontual. Acompanhou o parto de todos. E sofreu a dor de enterrar um deles, Rodrigo, que morreu em decorrência de um acidente, em 1991, aos 23 anos. Há oito anos vive com Camila Mosquella.

Zé de Abreu virou global em 1979. Com o sucesso do filme A Intrusa, de Carlos Hugo Christensen, e a vitória como melhor ator no Festival de Gramado, foi contratado pela emissora. Estreou na novela As Três Marias, de 1980. De lá para cá, foram mais de 20 novelas e algumas minisséries. E garante que nunca sofreu represálias em função de seu posicionamento político. Ele também teve passagem pela extinta Rede Manchete, na qual atuou em produções como Pantanal e Ana Raio e Zé Trovão, e trabalhou em mais de duas dezenas de produções cinematográficas. “Minha mãe só considerou que eu realmente tinha uma profissão quando entrei na Globo”, diz.

Candidatura

Sem abrir mão nem da carreira, nem da militância política, Abreu talvez se candidate a deputado federal, estimulado pelo senador Lindbergh Farias (PT-RJ), o qual pretende apoiar caso ele dispute o governo do Rio. “Eu não acho importante me candidatar e ainda não tenho uma decisão. Na última vez em que conversei com o Lula, ele me disse que tenho até outubro. Então vamos deixar mais para a frente”, conta.

Ele convive com Lula desde o início da década de 1980. “Não entrei no PT na época porque não gostava de reuniões. Na campanha presidencial de 1989, participei bastante. Estive com ele algumas vezes no Planalto em 2004, 2005 e durante a campanha pela reeleição (em 2006). De vez em quando a gente se encontra, e ele é sempre muito efusivo comigo.” Durante a campanha de Dilma Rousseff, o ator postou um vídeo, atualmente com mais de 100 mil views no YouTube, em que lembra o currículo do então candidato José Serra, do PSDB.

Zé de Abreu garante que hoje não se interessa muito pelo ativismo na área teatral, apesar de destacar que, em 1977, lutou pela lei que regulamentou a profissão de artistas e técnicos em espetáculos e diversões. Foi também diretor da associação de produtores do Rio Grande do Sul e ajudou a organizar o sindicato dos artistas de Porto Alegre. “Fizemos um grande congresso nacional de artistas e técnicos, em Canela, o primeiro do final da ditadura. Não sabíamos bem o que se podia ou não falar. Foi quando os sindicatos começaram a se reorganizar. A partir dos anos 90, começaram a haver distorções e a lei passou a não ser mais obedecida, assim como o horário de trabalho. Alguns presidentes de sindicatos de artistas fizeram acordos com as emissoras”, lamenta.

Em sua vida pública, Zé de Abreu é conhecido pelo arrojo ao manifestar suas opiniões. E o faz sem cerimônias em seu perfil no Twitter. Divertiu-se muito com o rebuliço causado por suas provocações a respeito da liberdade de opção sexual. “Sou bissexual, e daí? Posso escolher quem eu beijo? Quando quero beijar uma pessoa não peço atestado de preferência sexual, só depende de ela querer. Não posso obrigá-la a me beijar. Quero saber se posso ter opção! Tenho de beijar um bêbado que invade minha individualidade só porque ele é gay?”, escreveu. As redes sociais, para ele, são mais uma maneira de fazer política. “Foi algo que surgiu na minha vida. Não tive intenção de fazer isso para dar tal resultado. Fui fazendo.”