violência

Correndo atrás do próprio rabo

Na ausência de prevenção e de inteligência, o Estado transforma ações repressoras da polícia em espetáculo para exibir uma política de segurança pública que não existe

HÉLVIO ROMERO/AE

Como num filme para platéias mal informadas, polícias e bandidos tentam mostrar quem pode mais no meio da população inocente

No dia 15 de maio, a segunda-feira em que São Paulo parou na onda de violência iniciada pelos ataques de uma facção criminosa, M.T.S., trabalhador autônomo de 25 anos, foi preso em Francisco Morato, município da região metropolitana de São Paulo. Ele corria atrás da filha de 3 anos, quando uma viatura da polícia passou e o levou preso. Na delegacia, M.T.S. teria apanhado e sido obrigado a assinar confissão de um crime que não cometeu: assaltar e incendiar um ônibus. Desde então, ele está encarcerado em Franco da Rocha, acusado de assalto à mão armada, porte ilegal de arma e destruição do patrimônio público. Apesar de não ter passagem pela polícia, seu pedido de liberdade provisória foi negado e ele será ouvido somente no final de julho. “Meu filho vota, trabalha, paga impostos, nunca roubou e está preso como o pior bandido. Dói o fato de ele ter apanhado para assinar algo que não fez e nem ter a chance de se defender da Polícia Militar”, lamenta S.S., mãe do acusado.

M.T.S. não é o único inocente detido em meio aos “suspeitos” dos crimes da fatídica semana de 12 a 20 de maio. Também não é uma situação restrita a esse período e circunstâncias. O problema da segurança pública no estado de São Paulo – e no Brasil – tem contornos, causas e conseqüências muito mais complexos. Mas precisou de uma explosão para voltar à cena.

Até recentemente, o problema da segurança pública era compreendido como algo relacionado apenas ao governo estadual. Na última década, passou a envolver a União e os municípios. Em nível federal, o país viu a criação de órgãos como a Secretaria Nacional de Segurança Pública e o Conselho Nacional de Segurança Pública, além da elaboração do Plano Nacional de Segurança Pública. Ao mesmo tempo, os municípios criam ou ampliam Guardas Civis com planos locais de segurança.

“O objetivo de uma política de segurança pública é trabalhar para que haja um menor número de crimes e de violações de direitos. A questão é: o que é mais eficiente em termos de políticas públicas para alcançar este objetivo?”, questiona José Marcelo Zacchi, coordenador institucional do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. “A resposta clássica e presente no imaginário das pessoas é a de que é preciso ter um sistema de justiça criminal que reaja aos crimes de forma pronta, pois isso iria inibir novas práticas de violação. Porém, mais do que reagir a um crime, é preciso ser capaz de se antecipar a ele. Prevenção deveria ser o pilar da política de segurança”, afirma.

Policiamento e delitos

Existem no país experiências localizadas, estaduais e municipais, que começam a alcançar êxito com programas de segurança que privilegiam a prevenção. Entretanto, no estado de São Paulo ainda prevalece a visão tradicional de enfrentamento e o foco da política de segurança se resume à ação repressora da polícia. Por mais que, com base em estatísticas duvidosas, o governo estadual comemore a queda na taxa de homicídios, outras modalidades de crime relacionadas a roubos, golpes e tráfico não dão o menor sinal de arrefecimento.

“Os índices que seguem altos dependem de inteligência, mapeamento e prevenção nas áreas de maior de incidência. Os setores essenciais da inteligência policial estão abandonados e há um sucateamento da polícia técnica. O Instituto de Criminalística e o Instituto Médico Legal sobrevivem da caridade das prefeituras”, critica o deputado estadual Renato Simões (PT), ex-presidente da Comissão de Direitos Humanos, relator da CPI do narcotráfico e membro da Comissão de Segurança Pública da Assembléia Legislativa de São Paulo. “Ao mesmo tempo, o Dipol, que é o departamento de inteligência, tem uma concepção voltada para os métodos da ditadura militar. Há várias denúncias contra o próprio Grupo de Repressão e Análise dos Delitos de Intolerância, que foi uma experiência de inteligência, de agir como um grupo de extermínio”, completa.

De 2001 a 2005, a Polícia Técnica de São Paulo, por exemplo, recebeu apenas 0,9% dos investimentos realizados na Segurança Pública. No Plano Plurianual 2004-2007 e na Lei de Diretrizes Orçamentárias de 2005, não havia ações e metas previstas para inteligência policial no estado de São Paulo.

Ao deixar a inteligência policial para o segundo plano e exceder no foco à repressão, dizem especialistas, elevam-se os custos do policiamento sem diminuírem os riscos nas grandes cidades. “A polícia tem competência para agir antes, durante e depois do crime. Quando fica refém da repressão, deixa de exercer seu mandato e está sempre correndo atrás, enxugando gelo e desgastando esse recurso de força. O recurso repressivo é fundamental, mas não pode ser aplicado de maneira ordinária”, avalia a professora da Universidade Cândido Mendes e de diversas escolas superiores de polícia, Jacqueline Muniz, que foi diretora da Secretaria Nacional de Segurança Pública e coordenadora de Segurança, Justiça e Cidadania do Rio de Janeiro. “Você vai sempre precisar de mais repressão e será sempre a polícia do depois. Pode comprar viatura, armamento e munição à vontade. Os crimes vão continuar crescendo e a população só vai ter uma percepção maior do medo e do terror”, completa.

O crime também reage

A política repressora provoca uma reação crescente do lado da criminalidade à ação policial, desgasta a imagem da polícia e reduz a confiança da população nos agentes públicos. Ou seja, a polícia tende a usar cada vez mais força para produzir o mesmo resultado e a conseqüência é um círculo vicioso de violações. “Em vez de prevenir o crime, o policial passa a lutar contra o crime. Nesta luta, elimina pessoas, como aconteceu recentemente em São Paulo. Isso não faz parte do Estado Democrático de Direito”, afirma Hélio Bicudo, presidente da Fundação Interamericana de Defesa de Direitos Humanos.

“Hoje, na periferia, todos os pobres são tratados como criminosos pelas forças policiais, até provar que não são criminosos”, emenda o coordenador do Movimento Nacional de Direitos Humanos, Ariel de Castro Alves. “Esse policiamento meramente repressivo e direcionado acaba gerando casos de pessoas que são assassinadas para serem investigadas depois, quando deveria ser o contrário.”

As ações repressoras transformam a polícia em espetáculo. Na avaliação da professora Jacqueline Muniz, essa é a forma mais fácil de marcar a presença de uma política de segurança pública que não existe. “Num mundo repressivo, a polícia precisa que o crime aconteça para se justificar. Vai ter, portanto, que fabricar prisões e apreensões para manter as estatísticas. Mas não há como ganhar este jogo”, diz.

“A Secretaria de Segurança Pública não tem nenhuma interlocução com a sociedade civil organizada, não permite acesso a dados. A falta de transparência revela uma política do faz de conta, em que os realmente envolvidos no crime organizado, situados no ápice da pirâmide do crime, jamais são presos”, critica Alves.

José Marcelo Zacchi, do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, aponta ainda outro sintoma da não-inteligência: “A falta de comunicação prejudica os setores da segurança pública como um todo. A ausência de mecanismos institucionais de rotina e de trabalho articulado entre as instituições faz do combate à criminalidade um desafio maior”. Segundo ele, há uma agenda pendente no país, a do Sistema Único de Segurança Pública, que seria a criação de mecanismos institucionais para se ter instâncias diferentes de poder e de ação trabalhando de maneira mais integrada no dia-a-dia. “A idéia é trabalhar no âmbito da federação, com cooperação dos estados e municípios como um ponto de partida, sem centralizar o sistema, mas, sim, articulá-lo institucionalmente”.

Atacar as causas

Guaracy Minguardi, diretor científico do Instituto Latino Americano das Nações Unidas para a Prevenção do Delito e o Tratamento do Delinqüente (Ilanud), engrossa o coro dos especialistas que reprovam o foco do confronto e da repressão como política de segurança. Para Minguardi, que foi secretário de Segurança de Guarulhos (SP), a ação policial é “importantíssima, mas só ataca os efeitos do problema”. Desenvolver mecanismo de prevenção é fundamental e entre esses mecanismos estão as mudanças urbanas (iluminação, reurbanização de favelas etc.) e a redução dos problemas sociais. “Senão vamos ficar como o cachorro correndo atrás do rabo.”

Segundo o economista Marcio Pochmann, professor da Unicamp e ex-secretário de Desenvolvimento, Trabalho e Solidariedade de São Paulo, houve queda sensível nos indicadores de violência e evasão escolar nos bairros beneficiados pelo maior programa de transferência de renda, em nível municipal, da América Latina, desenvolvido pela Prefeitura de São Paulo, entre 2001 e 2004, no governo Marta Suplicy. Foram atingidas, em quatro anos, cerca de 490 mil famílias, beneficiando indiretamente 20% da população paulistana. Pochmann esmiúça esses programas no estudo Políticas de Inclusão Social – Resultados e Avaliação, (Editora Cortês, 2004). O conjunto de orientações adotadas consistia de projetos redistributivos (Renda Mínima, Bolsa-Trabalho), iniciativas emancipatórias, como capacitação profissional, e delineava planos de desenvolvimento locais. Executados de maneira combinada com ações de repressão ao crime, esses programas conseguiram combater a exclusão e a violência.

“Atingimos especialmente a população jovem que havia deixado de ser vista como portadora de um projeto de futuro, deixado de apostar em qualquer ação coletiva para mudar suas histórias”, relembra Pochmann. Apesar de as possibilidades de o município ter políticas de desenvolvimento serem limitadas – “é papel da União” – a realidade pode começar a mudar a partir das cidades: “Em pouco tempo, obtivemos resultados surpreendentes”.

“A segurança é uma sensação”

A análise dos 492 laudos de mortos em São Paulo por arma de fogo entre 12 e 20 de maio dificilmente terá efeito conclusivo. Os laudos são mal feitos e faltam os respectivos boletins de ocorrência. Até o final de junho, foram analisados 126 casos, dos quais em 70% há indício de execução. “A legítima defesa tem limite. Depois que atirou uma vez e imobilizou o agressor, não há necessidade de o policial continuar atirando”, afirmou o defensor público do Estado, Pedro Giberti, ao jornal O Globo em 27 de junho. Cada um dos mortos na semana do terror recebeu, em média, 6,9 tiros e 53% tinham até 25 anos de idade.

Delegado Clóvis

Para Clóvis Ferreira de Araújo, 42, delegado de polícia, supervisor do Grupo de Operações Especiais (GOE), a crise da segurança em maio foi combatida rapidamente pela ação policial. “O que houve foi confronto entre a polícia e os bandidos”. O GOE, criado em 1995, atua em situações de crise e conta com um efetivo de 200 policiais, cinco unidades operativas de 30 policiais cada e uma divisão de inteligência. Araújo compara o órgão que dirige a “uma espécie de Swat da cidade de São Paulo”, em referência às forças de elite da polícia estadunidense. “Somos uma das melhores unidades táticas do mundo, tanto em efetivo quanto em equipamentos”, ressalta ele. Abaixo, trechos de sua entrevista à Revista do Brasil, no início de junho.

Na semana de 12 a 20 de maio, foram mortos cerca de 40 agentes de segurança e quase 500 civis. Há evidências de que muitos desses mortos eram pessoas inocentes.
O que tenho certo é que foram mortos 41 agentes de segurança em diversos níveis. O que ocorreu depois foram situações de confronto entre bandidos e policiais. Temos de tomar um pouquinho de cuidado quando examinamos a questão. Há muitos bandidos que alegam ser do PCC para mostrar superioridade e intimidar parceiros do crime. Há também bandidos que podem ter se aproveitado do momento para ir à forra com rivais. Sobre os inocentes, isso tem de ser apurado para ver se eram mesmo inocentes ou se estavam em confronto.

Há indícios da atuação de grupos de extermínio?
Podem ter existido grupos dessa natureza. Mas daí a dizer que seriam compostos por policiais, vai uma grande distância. É possível que seja uma falácia. Podem ser grupos de extermínio montados por bandidos. Quando há, por exemplo, a prisão de um grande traficante, há uma elevação do número de homicídios no local. As quadrilhas começam a brigar entre si para disputar o ponto de tráfico.

A segurança no estado entrou em colapso?
O que é segurança? É uma sensação. Você tem a sensação de estar seguro. Hoje, o cidadão que vive em São Paulo tem uma sensação de segurança maior do que há cinco ou dez anos atrás. Garanto a você. Nós já chegamos a ter uma quantidade de homicídios muito maior do que agora. Hoje temos um índice semelhante ao de qualquer país evoluído.

Há a possibilidade de um novo ataque?
Temos de trabalhar com o imponderável. Seria uma insensatez alguma pessoa da área pública dizer que não haverá mais atentados. Nós temos planos de contingência. É bom que se diga que a crise não durou uma semana. Ela teve um ápice e a ação policial a reduziu.