Perfil

Das ruas para as telas

Vivendo a um Oceano Atlântico de distância, Lorna Lavelle nem conhecia os versos de Paulo Vanzolini. Mas levantou, sacodiu a poeira, deu a volta por cima, foi ao cinema e descobriu o Brasil

Eduardo Zappia

“Tenho a sorte de viver num país privilegiado: havia organizações que nos davam comida, ofereciam abrigo. Mas, como não se podia usar drogas nesses abrigos, eu preferia ficar na rua”

Aos 26 anos, ela se divide entre projetos de sua carreira de diretora e as tarefas de mãe solteira de uma menina de 8 anos. Entre seus trabalhos há vídeos para nomes de peso como os estilistas Alexander McQueens e Vivienne Westwood, o rapper Lupe Fiasco, a banda Peth, do ator Rhys Ifans, feito depois de “um acordo estabelecido em uma noite de bebedeira com Rhys”. No entanto, é como documentarista que Lorna Lavelle se define. “Quando eu era criança, ia à casa da minha avó, ficava conversando com as amigas dela e pedia que elas me contassem suas histórias, mostrassem suas fotos. Aí eu ia pra escola e contava aquelas histórias pros meus colegas”, relembra.

Mas, até chegar aonde está, teve de percorrer um árduo caminho. Lorna cresceu rodeada pelo fantasma da violência doméstica nos conturbados relacionamentos de sua mãe. Adolescente, mergulhou nas drogas e, com medo que a família descobrisse a extensa ficha criminal que se esforçava para esconder, aos 15 anos fugiu de casa e foi morar na rua. “Tenho a sorte de viver num país privilegiado: havia organizações que nos davam comida, ofereciam abrigo. Mas, como não se podia usar drogas nesses abrigos, eu preferia ficar na rua e achar qualquer jeito possível para comprar drogas. Acabei formando uma família com as pessoas que viviam comigo, e aí me sentia segura”, conta.

Por 30 meses, Lorna viveu nas ruas de Londres sem que a família soubesse seu paradeiro. Anúncios eram colocados na revista The Big Issue (publicação semelhante à Ocas brasileira, vendida por pessoas em situação de rua), mas sem sucesso. “Um dia fui presa por posse de drogas e, quando me soltaram, descobri que dois garotos canadenses que costumavam dormir na rua comigo tinham sido assassinados. Decidi que tinha de sair dessa, resolver minha vida”, relata.

Como ocorre com todas as pessoas que têm problemas com vício em drogas, a mudança não foi fácil. Logo veio a gravidez precoce, mas o que poderia ser mais um problema foi apenas mais um desafio. “Até ter minha filha, aos 18, eu não tinha autoconfiança, nunca tinha tido identidade, nunca tinha pensado no meu passado. Foi bem difícil, pois tive de cuidar dela sozinha – mesmo tendo um ótimo pai. E foi essa a época em que mais aprendi e que fiquei limpa pelo tempo mais longo da minha vida. Aprendi quem eu realmente era, do que realmente gostava.” E do que gostava? De contar histórias.

Autodidata

Lorna largou a escola antes dos 14 anos. Foi aprendendo aos poucos como funcionava o mundo das câmeras. “Assistia às filmagens de gente que eu achava interessante para aprender o básico e comecei a sair por aí filmando coisas que gostava, seguindo pessoas que queria conhecer”, explica. Na sequência vieram os primeiros vídeos, e agora Lorna está imersa em quatro projetos. Um sobre a história da banda inglesa Unkle. Uma remasterização de um filme de 1970, Brand X, sátira social pop ao estilo Andy Warhol. Conquest, baseado em livro de Andrea Smith que trata de teste de medicamentos em mulheres indígenas das Américas nos anos 1980.

E, por fim, Weapon of Choice, uma competição mundial entre novos artistas do grafite que se desdobrará em um documentário acompanhando os finalistas por 12 países – entre os quais Brasil, Reino Unido, China, Austrália, Turquia, França, Alemanha, EUA e Japão –, durante um ano, até o dia da grande final, no Rio de Janeiro, em pleno Carnaval de 2011. Em seguida, será organizada uma exposição que circulará pelos diferentes continentes. A empreitada contará com o apoio de nomes já consagrados da arte de rua, como os brasileiros Speto e Calma (que também é parceiro de Lorna em outro trabalho: um videoclipe da banda N.A.S.A).

Weapon of Choice, em fase de pré-produção, trouxe a inglesa ao Brasil e à descoberta de um outro país, muito além dos clichês. “Eu não estava preparada para a receptividade dos brasileiros, para tantas cores, energia. Você vê fotos, assiste a filmes, ‘ah, o feeling brasileiro’, mas na verdade estar lá é diferente. A mentalidade dos artistas, por exemplo, é outra. Aqui, muitos estão fazendo arte apenas pelo dinheiro, não querem que ninguém se aproxime deles, e no Brasil muitos vêm de famílias de baixa renda, têm consciência da desigualdade social, querem fazer algo contra ela. E eu não sabia que iria encontrar isso lá”, relata.

As filmagens do documentário começaram em outubro. Lorna aproveitará a viagem com os finalistas para travar outra batalha, essa mais pessoal, com um filme que produzirá para a ONG AA Criança. “Indo pro Brasil, trabalhando com essa organização, com projetos de reabilitação para usuários de drogas, quero mostrar às pessoas que não existe isso de alguém se tornar viciado e depois ‘seguir 12 passos’ e pronto, estar limpo. Não é assim. É uma luta longa, e quero mostrar com minha arte que se consegue sair dessa situação, que qualquer pessoa pode.”