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De onde surgiu a crise, bancária

Entenda o cassino financeiro

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Polícia precisou conter clientes do Lehman de Hong Kong, ávidos por sacar

Na origem das bolhas financeiras há sempre a concentração de renda em poucas mãos enquanto a maioria permanece pobre ou remediada. Depois de torrar um pouco na Daslu, os donos do dinheiro compram ações, títulos de bancos, o que encontrarem pela frente, e ampliam a produção de bens e serviços além do que vão poder vender depois. Investem principalmente no mercado imobiliário. Muitas bolhas financeiras nasceram de booms imobiliários, inclusive a primeira de que se tem registro, a das Tulipas, na Holanda do século 17, que começou com uma onda de construção de grandes mansões. Nos anos 1980, a bolha do Japão foi imobiliária, assim como a da Suécia de 1992, que levou à estatização de quase todo o sistema bancário. Imóvel serve bem à especulação porque há sempre uma demanda reprimida. E precisa de financiamento na fase de construção e na de venda, quando é pago por poupanças de salários.

No boom, preços sobem a partir de um aumento na renda das famílias. A alta contínua atrai especuladores e bancos passam a emprestar mais à classe média e a facilitar nas garantias. Essa bolha começou com um boom no mercado imobiliário americano e a extravagância dos bancos – que financiavam sem se preocupar com garantia, além da própria casa a ser comprada ou construída. Eram os empréstimos “sub-prime”, ou seja, com garantias insuficientes.

Mas o estoque de compradores não é infinito, nem sua renda segura. A economia tem ciclos de aumento e de redução do emprego. No início de 2007, o número dos que não conseguiam pagar prestações aumentou. E o valor das casas, que havia inchado, caiu. Mesmo retomado pelo banco, o imóvel já não garantia o empréstimo original. A essa altura, muitas carteiras de hipotecas já tinham sido repassadas a bancos hipotecários maiores, ou bancos de investimento que não tinham a menor idéia da precariedade dos credores. O que importava era entrar no boom, tirar vantagem. Quando os atrasos de pagamento aumentaram, em janeiro, quebrou o primeiro deles, o Country Wide.

A principal diferença entre esta bolha e as anteriores é seu tamanho astronômico. Começa pelo porte do mercado imobiliário americano, 17 milhões de residências construídas nos últimos dez anos de relativa prosperidade, taxas baixíssimas de desemprego e de juro. Considerando uma prestação mensal de US$ 2.000, hipótese razoável, se 30% dos compradores interromper a prestação por mais de três meses, o rombo chega a US$ 30 bilhões. É muito dinheiro. Se o critério for a perda de 20% no valor médio das residências estimada pela Moddy, com os bancos retomando uma em cada dez, a perda vai a US$ 170 bilhões. Mesmo assim, não explica a dimensão da derrocada dos bancos hipotecários e de investimentos.

Só o Wachovia tinha US$ 312 bilhões em papéis ligados ao mercado imobiliário. O Lehman quando quebrou tinha outros US$ 110 bilhões de um rombo total de US$ 613 bilhões. Cada um dos outros que quebraram tinha também dezenas de bilhões de “lixo tóxico” imobiliário. Houve uma multiplicação amebiana desses papéis, de tal modo que no momento do terremoto financeiro estavam circulando US$ 8 trilhões em papéis ligados ao sistema habitacional, segundo o economista Aluísio de Lima-Campos, presidente do Instituto Analistas Brasileiros de Comércio Internacional (ABCI Institute) que há 25 anos acompanha esse assunto.

O mistério dos US$ 8 trilhões se explica pela explosão do mercado de títulos chamados “derivativos”, principalmente o Credit Default Swap (CDS), espécie de apólice de seguro que o devedor contrata para fazer frente a uma eventual dificuldade de pagar sua hipoteca ou seu aluguel. Mais ou menos como o seguro-fiança contratado pelo locador de um imóvel no Brasil por exigência do proprietário. Se o locador falhar, o seguro paga o aluguel até o final do contrato. O secretário-executivo da Securities and Exchange Comission (a Comissão de Valores Mobiliários de lá), Christipher Cox, estima em US$ 62 trilhões o montante dos CDS emitidos pelos bancos e seguradoras – “sem nenhum controle ou transparência”.

Isso é mais do que seis vezes o valor das residências erguidas nos Estados Unidos em dez anos – considerando o valor médio de US$ 500 mil, segundo o departamento de comércio. Conclui-se que a maioria desses CDS era falsa, sem lastro em hipotecas ou contratos de aluguel. Bancos imprimiam CDS e os vendiam uns aos outros multiplicando por 100, por 1.000 vezes o valor inicial dos contratos de hipoteca ou aluguel. É o que chamam educadamente de alavancagem. A seguradora AIG tinha vendido aos fundos US$ 400 bilhões em CDS, dos quais apenas US$ 50 bilhões para garantir hipotecas de alto risco. “Os bancos centrais deixaram solta a capacidade do sistema de criar riqueza artificial em escala global e com significativa participação dos bancos. Fora dos balanços dos bancos, fora da vista das autoridades reguladoras e monetárias, como um ‘sistema financeiro sombra’”, explica José Carlos Braga, do Instituto de Economia da Unicamp, em artigo no Valor Econômico (8/10/2008).

Mas o tóxico dos derivativos não é só imobiliário. O empresário Lawrence Pih, presidente do Grupo Moinho Pacífico, estima em US$ 460 trilhões o tamanho da bolha. Luiz Gonzaga Belluzzo, faz estimativa da mesma ordem, mas a verdade é que ninguém sabe o seu tamanho, porque é da sua natureza não ter limites definidos.

Os “derivativos”, permitidos pelo FED e pelo Tesouro americano desde 1972, vêm sendo inventados e a aplicados em todo tipo de transação na qual o valor final “deriva” de uma “obrigação” e não do valor de algum bem ou mercadoria. Por exemplo, um contrato pelo qual uma empresa se obriga a pagar a diferença dos juros que incidirem sobre determinada quantia, se num determinado dia, forem maiores do que X. O valor não existe, porque só vai ser definido no dia de vencimento do contrato. É a compra de uma aposta, não de um valor. Os derivativos são sempre uma aposta.

É como dizer que “se der vermelho, eu te pago, se der preto, você me paga”. Por isso é tecnicamente correto chamar isso de “cassino”. E para que esse cassino possa funcionar, é preciso que os objetos da aposta – juros, câmbio, cotações de commodities – oscilem, e de modo imprevisível, caso contrário não dá jogo. Por isso foi fundamental na instauração dessa era do jogo, desmontar o Tratado de Bretton Woods, que havia criado uma arquitetura financeira mundial com lastros bem definidos para moedas conversíveis, valor oficial para o ouro, taxas relativamente estáveis de câmbio e mecanismos para limitar oscilações.

A segunda característica desta bolha, depois de seu tamanho astronômico, é o papel do governo chinês como principal agente de concentração de riqueza em escala mundial. Nada menos que US$ 1,8 trilhão já foram apropriados pelo Banco Central chinês pela superexploração de seus trabalhadores e transferido para bancos estrangeiros. Só em títulos do tesouro americano foram aplicados US$ 580 bilhões, ajudando a financiar as guerras americanas. As remessas do banco central chinês ao exterior continuam à razão de US$ 270 bilhões por ano.

O mecanismo que torna isso possível foi a concepção de um parque industrial gigante que transforma matéria-prima importada em produtos de exportação de baixo custo, graças a uma remuneração mínima – de mera sobrevivência – aos seus trabalhadores. Gera-se um excedente de valor considerável, parte do qual é reinvestida na reprodução ampliada do sistema e o resto, na compra de moeda forte, aplicada em sua maior parte nos títulos do tesouro americano.

Dada a conectividade do sistema, o modelo chinês de remuneração mínima a seus trabalhadores acaba deprimindo também a remuneração de trabalhadores de outros países, como é o caso do Brasil, ou impondo um limite “chinês” a essa remuneração, o que reforça o mecanismo de polarização de renda. Tanto assim que o nosso próprio Banco Central também canalizou US$ 200 bilhões, extraídos do processo produtivo brasileiro, portanto dos trabalhadores, aplicando-os em títulos do tesouro americano.

Desde a guerra do Vietnã, esse tem sido o mecanismo de financiamento da dívida pública americana, hoje na casa dos US$ 10,3 trilhões, de suas guerras de conquista e do superconsumo de seus habitantes. Por isso China, Japão e países árabes, principais possuidores desses dólares aplicados em títulos do governo americano, têm todo o interesse em ajudar na superação da crise.

A terceira característica desta bolha é o predomínio do espírito do jogo, sobre todos os demais fatores, bem em linha com a ética neoliberal de competição e busca do sucesso pessoal acima de tudo. Surgiu assim uma nova estirpe de croupiers financeiros, os gerentes de investimento, craques da especulação, aquinhoados com prêmios por desempenho. Ganham quando a aposta dá certo, mas não perdem quando dá errado, porque o dinheiro é de terceiros. Um sistema que estimula arriscar cada vez mais. O risco, e não a prudência, passou a ser a regra do jogo. Nunca a expressão “cassino financeiro”, usada por Lula, aplicou-se tão bem. Exatamente como acontece com os jogadores, esses especuladores viciam, tornam-se obsessivos por ganhos cada vez maiores e se conduzem de modo cada vez mais perigoso e ilusório.

O herói dessa era do jogo é George Soros, que conseguiu quebrar o banco da Inglaterra, especulando contra a libra esterlina. Soros atribui seu sucesso a uma profunda percepção da própria falibilidade. Nesse sentido, pode-se interpretar o cataclismo de Wall Street como a derrota dos especuladores em seus próprios termos, por perderem o sentido dos limites da sua falibilidade. Foram os croupiers que quebraram a banca e não os clientes do cassino. Não se trata apenas de falhas ou deficiências éticas individuais. Como observa Robert Kurz (Folha de S.Paulo, 5/10/08), houve um colapso geral tanto do subjetivo, o princípio da falibilidade, quanto do objetivo, os instrumentos matemáticos de computação supostamente equipados para analisar riscos.

A sedução do jogo envolveu até gerentes de empresas industriais, como os da Sadia, que perdeu R$ 670 milhões apostando em derivativos, e a Aracruz, que perdeu R$ 1,85 bilhão. Os gerentes financeiros das duas empresas foram demitidos. Um dos motivos da súbita retração dos empréstimos bancários no Brasil pode ter sido motivada pela necessidade dos bancos de checar que empresas ficaram fragilizadas e para quais empresas eles haviam vendido esses derivativos.

Resta ainda a questão ideológica. Muitos economistas dizem que a crise marca o fim do neoliberalismo, em especial, da era da desregulação. “A queda de Wall Street representa para o fundamentalismo de mercado o que a queda do muro de Berlim representou para o comunismo”, diz o Prêmio Nobel Joseph E. Stiglitz. Mas não será isso um auto-engano?

Nem mesmo um desastre dessa magnitude parece devolver ao campo popular uma capacidade de iniciativa. Cética, Naomi Klein (escritora e ativista canadense) diz que ninguém deve acreditar que a ideologia neoliberal morreu. Ela a retrata como uma ideologia essencialmente oportunista, hipócrita, “que sempre esteve a serviço dos interesses do capital e sua presença avança e recua, dependendo da utilidade que tem para esses interesses”. Argumenta que em épocas de bonança é o laissez-faire, mas sempre que vem uma crise, esses mesmos neoliberais apelam para o Estado. “A ideologia retornará com força total assim que os pacotes de socorro tiverem sido entregues,” diz Naomi.