viagem

Dos pés à cabeça

Calangada, sabático, peregrinação, enduro a pé e caminhada por trilha aliam mais que turismo e esporte. Sem hotéis de luxo e diversões programadas, aonde vão e o que procuram esses andarilhos?

Jailton Garcia

Roberto Buzzo fez o Caminho do Sol em 2004: “Não gosto do turismo-consumismo”

Seis da manhã de sábado. Um microônibus sai da capital paulista com 16 pessoas a bordo rumo a São Francisco Xavier, região do Vale do Paraíba. O amanhecer encantador, avermelhado, revela também poeira e poluição presentes no ar. De São Xico, a bucólica quase-vila, o grupo inicia uma caminhada de 16 quilômetros pela Serra da Mantiqueira, em direção a Monte Verde, do lado de Minas Gerais. Trilhas e pequenos riachos, rodeados por bromélias, maritacas, tangarás, saíras, corujas e árvores seculares deixam para trás o estresse. O espírito coletivo e o acesso à natureza envolvem os caminhantes. Nenhum lixo é deixado na mata, nem mesmo orgânico. O que é encontrado é recolhido.

Aos poucos, as conversas fluem. Alguém lembra um pouco de história – aquelas trilhas serviram ao transporte de armas dos Constitucionalistas, em 1932, em direção a Minas. Outro repara nos liquens rosa encontrados nos troncos das árvores – algas e fungos que só se reproduzem em ambientes não-poluídos.

A 400 quilômetros dali, no centro-norte do estado, outro grupo chega a Águas de São Pedro, depois de caminhada de 11 dias e 12 cidades de percurso do Caminho do Sol – versão brasileira do Caminho de Santiago de Compostela, no norte da Espanha. Entre eles, jovens e idosos, cansados, empoeirados e felizes.

O que procuram esses caminhantes? Os simples prazeres das trilhas, um turismo alternativo, um movimento contra o sedentarismo urbano, uma pausa no estresse. O guia Estevan Rosa, do Circo São Xico, diz que vê a transformação das pessoas na trilha: “Elas se sentem mais alegres, mais felizes, caminhando, suando, carregando mochila. Reaprendem a conviver com a natureza”. Hilmo Pisseta, guia da Hilmotur com mais de 20 anos de excursões em cavernas e matas, é mais incisivo: “Aqui a pessoa se encontra com ela mesma, a posição social é medida pelo respeito, pela solidariedade e pelo conhecimento”. A caminhada proporciona um repensar geral nos valores. Qual é mesmo a importância das quinquilharias que compramos, qual é mesmo o peso que se deve carregar na vida? “Aqui não tem lojinhas”, ironiza o guia.

As refeições são pequenas, básicas, sem excessos, a mesa é um mirante no mar de morros, como é conhecido o sul de Minas Gerais. Mudanças de comportamento são estimuladas pelos guias. Nada de abraçar árvores ou procurar duendes, mas sentir a própria respiração. No meio do caminho, surge um típico bosque – imensidão de árvores altas varadas por muitos raios de sol e chão totalmente forrado de folhas secas. Alguns momentos de silêncio e ali se percebe como é difícil parar tudo e não pensar em nada, ouvir a própria respiração, uma das formas mais simples de meditação, que tantas civilizações procuram e está – literalmente – bem no nosso nariz.

gerardo lazzarimargarida
Margarida encara a caminhada como uma metáfora da vida, uma lição de desapego pelas coisas materiais

Passos largos

O casal Takeo e Margarida Kokubo, ele com 62 anos, ela com 58, é praticante de outro tipo de caminhada, a de longa distância. Eles já fizeram o Caminho do Sol, o Caminho da Luz – de 195 quilômetros, de Tombos (MG) ao Pico da Bandeira, contornando as divisas de Minas, Rio e Espírito Santo – e se preparam para o Caminho da Fé,  rota dos tropeiros no Brasil colonial, de 453 quilômetros, agora caminho de romeiros pela Serra da Mantiqueira. A mais recente aventura foi refazer os Passos de Anchieta, 99 quilômetros no litoral do Espírito Santo.

Para Margarida, a caminhada é uma metáfora da vida. “A gente aprende o desapego, doei coisas no caminho. Dá vontade de desistir, mas quando acaba vem a emoção da vitória.” Roberto Buzzo, de 50 anos, também começou pelo Caminho do Sol em 2004 e esticou até Fernandópolis (SP), percorreu 640 quilômetros em 14 dias para visitar os pais e repetiu a viagem em julho deste ano. “Não gosto do turismo-consumismo. E não é promessa, porque não é sacrifício, nada do além. É suor mesmo.”

No mundo do trabalho, fazer longas caminhadas é uma forma de ingressar num período sabático – em referência à pausa para descanso que até Deus deu a si mesmo, ao sétimo dia da criação – e parar para repensar a vida. Outra modalidade, o enduro a pé, é uma prova de regularidade que empresas usam para integrar equipes: cumprem roteiros com mapas, bússolas e calculadoras para medir o trajeto pela quantidade de passadas.

Em Piracicaba (SP), o grupo Calango Andando – com integrantes de todas as idades – reúne-se um sábado por mês e organiza caminhadas de dia inteiro em lugares interessantes da região. Além de caminhar, os organizadores das calangadas buscam algo simples mas difícil de conseguir nestes tempos urbanóides: ampliar amizades.

Em seu livro A Semente da Vitória (Ed. Senac, 2001), o preparador físico Nuno Cobra, que treinou Ayrton Senna e Rubens Barrichello, declara que as conquistas pessoais transitam dos músculos ao cérebro. Para os andarilhos, dos pés à cabeça.