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Em nome do pai

Elenira, filha do seringueiro e herói da pátria Chico Mendes, viu o pai ser assassinado e dar o último suspiro em seus braços

Altino Machado

Elenira: “Meu plano é não deixar que a história do meu pai morra, impedir que a luta dele se apague”

Elenira tinha 4 anos quando seu pai foi assassinado. Ele levou os tiros de espingarda do fazendeiro Darci Alves dos Santos e exclamou: “Me acertaram”. Caminhou até o quarto das crianças cambaleando, enquanto os dois policiais militares encarregados de protegê-lo fugiam pela janela. A mulher, Ilzamar, e o filho, Sandino, de 2 anos, também testemunharam o último suspiro – nos braços da filha e tentando falar seu nome: “Eleni… Elenira”.

Chico Mendes sabia que ia morrer. Era conhecido internacionalmente pela defesa da floresta amazônica e dos interesses dos seringueiros, e vinha sendo cada vez mais ameaçado. Dias antes do crime, ele reuniu a família e se despediu. No dia 22 de dezembro de 1988, o Brasil vivia sua crônica de uma morte anunciada.
Três fotos atestam o desejo do pai em ver a filha dar continuidade a seus ideais – entre eles o de uma Amazônia protegida e sustentável, palavras que trouxeram a fúria dos fazendeiros da região e a encomenda de sua morte. No verso das fotos ele escreveu dedicatórias que, lidas com emoção por Elenira à reportagem da Revista do Brasil em Rio Branco, no Acre, soam para ela como missão:

− Elenira, esta é a vanguarda da esperança. Darás um dia continuidade à luta que teu pai não conseguirá vencer.

− Aqui o riso da esperança, a bandeira do amanhã. Espero que o destino saiba te decifrar.

− Querida Elenira, teu destino estará selado (a foto mostra a garota montada em um cavalo). Nunca deve ser igual ao do teu pai.

Ela só conheceu as fotos aos 15 anos. Diante de seu interesse crescente pela história do pai, a tia Deusamar levou-a a seu quarto, em Xapuri. Abriu uma caixa e mostrou-lhe os registros que tinha. Ao ler as dedicatórias, Elenira ficou quase sem fôlego. “Fiquei com muito medo de não alcançar as expectativas do meu pai.” Há menos de dois anos, Elenira recebeu outra responsabilidade. Agora, da mãe. Ilzamar se cansara de tocar a Fundação Chico Mendes, em Xapuri, que reúne um museu sobre a vida do seringueiro e a casa da família. Chamou a filha e perguntou se estava disposta a assumir o trabalho, bancado pelo governo do Acre. A resposta foi positiva. “Quero preservar a história do meu pai”, diz a administradora de empresas e estudante de Gestão em Serviços Públicos.

Elenira recebeu a reportagem em sua casa no loteamento Flora, em Rio Branco. Já se preparava para trocar a charmosa capital de 350 mil habitantes por Xapuri, cidade natal, com 10 mil. “Aquela cidade que já foi considerada a princesinha do Acre está parada no tempo”, diz a filha de Chico Mendes, cujo nome integra o Livro dos Heróis da Pátria (veja quadro pág. 29).

Infância abreviada

O governador eleito do Acre, Binho Marques, associa as qualidades de Elenira à revitalização recente da Fundação Chico Mendes. “Ela é superativa, animada e exigente. Tem trabalhado para uma gestão mais profissional. É muito equilibrada – nem apaixonada demais, nem dura demais.” Binho observa ao menos uma característica herdada da maior liderança que a Amazônia já teve: “Depois da morte do Chico, muita gente ficou dividida. Como o pai, ela tem a habilidade de apaziguar, chamar as pessoas”.

Elenira foi complementando a entrevista em diversos telefonemas nos últimos meses. Parece estar acostumada com o assédio da imprensa – doloroso na primeira infância. “Tínhamos uma vida pacata em Xapuri, da cidade para o seringal, do seringal para a cidade. Ninguém sabia o que era uma câmera, e de repente, além de perder o pai, vem um monte de repórteres…”

Ela e o irmão são muito próximos. Sandino estuda Administração de Empresas. Não gosta de falar do pai. Mas Elenira acredita que ele também abraçará a causa. “A mulher sempre amadurece mais cedo”, afirma. Os dois têm uma irmã, Ângela, 35 anos, filha do primeiro casamento de Chico. Embora Ângela e Ilzamar não se dêem bem, Elenira costura uma política de boas relações.

Da mãe ela ganhou o carinho, a educação, os valores. Elenira ressalta o papel dela na trajetória do pai – o casal conviveu entre 1983 e 1988. “Foram os anos mais difíceis; a luta, as brigas, as ameaças eram mais fortes.” Os capangas e filhos do fazendeiro Darli Alves dos Santos, mandante do crime, mostravam as armas em frente de sua casa e anunciavam sua morte.

Dezoito anos depois do assassinato, é difícil andar pelo Acre sem ver em algum lugar o nome de Chico Mendes. A responsabilidade pesa. “Perdi minha infância”, resume. Aos 22 anos, é solicitada a falar sobre a vida do pai desde criança – mais precisamente sobre a morte, a lembrança da cena final, na casa de madeira azul, diante do surrealismo da fuga dos policiais, o corpo no chão, o sangue. Quem conhece a Fundação e a Casa Chico Mendes revive tudo isso, a história em fotos e pertences do seringueiro. A casa guarda o cenário da noite fatídica. Cartazes informam o local da queda, a mesa onde os policiais jogavam dominó.

“Hoje sei que foi pela ausência do pai que comecei a namorar cedo (com 15 anos) e casei cedo (com 19), com o Davi”, assume Elenira. A ausência de Chico sempre soou meio paradoxal, por ser uma figura onipresente em fotos e relatos em seu estado – e motivo de interesse de ambientalistas em todo o mundo, que ainda vão às centenas a Xapuri e ao Seringal Cachoeira. “Mas senti falta de uma figura masculina que me cuidasse”, diz.

Elenira sobrevive da memória do pai. Ganha cerca de 1.000 reais para coordenar a fundação. Ela e Sandino têm, até os 24 anos, uma bolsa de seis salários mínimos para estudar. A mãe, Ilzamar, ganha como viúva um salário mínimo. Mas a principal herança está no sobrenome. A identidade da jovem parte das projeções do pai e se mistura a escolhas recentes. O próprio nome já traz uma carga ideológica: é homenagem a Elenira Resende de Sousa Nazareth, guerrilheira morta em setembro de 1972, no Araguaia.

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Velho Oeste amazônico

Evangélica desde 1999, ela diz que foi Deus quem a confortou do trauma. “Não conseguia entender por que Deus tinha tirado meu pai, e daquela forma tão trágica. Então chorava escondido, achava que os traumas eram conseqüência de não ter um pai para me orientar. Vi meu pai ser assassinado na minha frente, mas o trauma foi curado.”

A primeira vez que ela viu o fazendeiro Darli foi em março, em Xapuri. “Fiquei muito nervosa. Ofegante.” Ele voltou a morar numa fazenda da região, após mais de dez anos na cadeia. Darci, o filho, autor do disparo, na época com 21 anos, mora no Distrito Federal. Ambos foram condenados a 19 anos de prisão, mas cumprem pena em regime aberto, liberdade condicional.

Ilzamar, em acareação com Darli no programa Fantástico, em 2000, mostrou muita raiva. Mas Elenira diz que perdoou. Na segunda vez que viu Darli, também em Xapuri, conseguiu enxergá-lo com a razão. “O que eles fizeram está feito, e eu não posso viver minha vida com o coração magoado, cheio de ódio.”
Elenira conta que o roteiro catártico da visita ao cenário do crime não foi planejado. Ela mesma evita entrar na casa. Mas diz que não chora mais. “Não gosto de pegar muitas fotos do dia em que aconteceu, como tenho no meu computador. São pastas em que eu não mexo.”

A história do Acre também é famosa por seus “monstros”. Na década de 90, era preso o ex-deputado Hildebrando Paschoal, aquele que percorria o corpo dos desafetos com motosserra. A prisão era um símbolo de que o Velho Oeste amazônico ganhava, enfim, contornos de civilização.

O período de um século de conflitos no estado será tema de seriado de TV no início do ano. Uma das protagonistas é Elenira – em nome do pai: “Meu plano é não deixar que a história do meu pai morra, impedir que a luta dele se apague”. E com a filha, Maria Luísa, de 2 anos – em nome do avô: “Este aqui é o meeeeu avô”, costuma dizer ao ver imagens de Chico. Elenira explica que ele está no céu. “Ela já tem uma expectativa muito grande em relação à sua história. Tenho certeza de que também vai dar continuidade a ela.”

No panteão dos heróis
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O Panteão da Pátria e da Liberdade Tancredo Neves é o monumento na Praça dos Três Poderes, em Brasília, que abriga o Livro dos Heróis, criado em 1989 para homenagear personalidades consideradas heróis nacionais. Seus nomes precisam ser aprovados pelo Congresso. O nome de Chico Mendes foi aprovado em setembro de 2004, por iniciativa da ministra Marina Silva (Meio Ambiente) quando senadora.

Ainda em 2004 foi aprovada a inclusão de outro líder ligado à história do Acre: o agrimensor gaúcho José Plácido de Castro, que comandou, ao lado de seringueiros, índios e ribeirinhos, a resistência ao arrendamento do Acre boliviano para exploração por uma companhia anglo-americana, a Bolivian Sindycate. A batalha começou a sacramentar a incorporação do estado ao Brasil. O Livro dos Heróis, feito de bronze e aço, já inclui os nomes de Tiradentes, Zumbi dos Palmares, marechal Deodoro da Fonseca, d. Pedro I, duque de Caxias e do almirante Tamandaré.

Da Agência Repórter Social, em Rio Branco e Xapuri (AC)