Esculpida pelos dragões

A Baía de Ha Long, no Vietnã, é Patrimônio Natural da Humanidade e uma das novas sete maravilhas naturais do mundo. E ensaia agora uma outra guerra, contra a degradação

Baía de Ha Long, uma das mais famosas do Vietnã, no Golfo de Tonkin, tem três mil ilhas espalhadas por águas verdes (Foto: Danita Delimont/Getty Images)

Reza a lenda que a Baía de Ha Long foi cuspida por uma família de dragões. Os deuses os teriam enviado, há muitos anos, para proteger o povo vietnamita e sua terra dos ataques de invasores. Os dragões, então, passaram a expelir pedras de jade que se transformaram em centenas de ilhas, uma espécie de muralha da imensa baía. Essa história, transmitida de geração a geração, está na boca dos guias turísticos das centenas de embarcações que navegam diariamente pela lindíssima Ha Long Bay – reconhecida pela Unesco como Patrimônio Natural da Humanidade e eleita uma das sete novas maravilhas naturais do mundo. 

Segundo a Unesco, a maioria das cerca de 1.600 ilhas que “protegem” a baía, com suas formações rochosas de calcário espalhadas em 1.500 quilômetros quadrados de um impressionante mar verde-esmeralda, é inabitada e pouco afetada pela presença humana. O coração turístico do arquipélago pulsa mesmo num miolo de pouco mais de 330 quilômetros quadrados, onde 2.400 pessoas habitam quatro aldeias flutuantes de pescadores: Ba Hang, Dam Cong, Vung Vieng e Cua Van. Quem navega pelas águas dessas vilas no final da tarde pode ver a criançada voltando da escola, guiando sozinhas seus pequenos botes, enquanto sorriem e acenam para os turistas e suas câmeras.

A pesca e a agricultura já foram os principais meios de sobrevivência dessas comunidades. Agora, a maioria já vive dos serviços e do comércio destinados aos viajantes. Bebidas, salgadinhos e suvenires recheiam os botes dos ambulantes das águas. Alguns levam os forasteiros para passear em seus barcos e conhecer suas casas.

caverna

A estrutura geológica de Ha Long proporciona um acervo incrível de cavernas. Visitei uma delas, a Surprising Cave, que tem cerca de 10 mil metros quadrados, possui três câmaras gigantes, uma infinidade de degraus e milhares de estalactites e estalagmites que permitem aos visitantes com boa imaginação visualizar tigres, dragões, pinguins – tal qual nosso conhecido costume de identificar formas nas nuvens. O sistema colorido de iluminação em seu interior garante mais charme ainda à caverna – que não poderia ter nome mais apropriado.

Surprising, uma das muitas cavernas que compõe a estrutura geológica da Baía de Ha Long (Foto: Andrew JK Tan/Getty Images)

Em algumas ilhas, é possível alugar bicicletas e pedalar pelas longas e íngremes ciclovias construídas com vista para o mar. É de tirar o fôlego, mas nada que uma paradinha para observar a paisagem não recomponha. Para os atletas com bom preparo, físico e técnico, as escaladas podem ser boa pedida. Mas contentei-me em caminhar por trilhas, entre florestas com macacos, e depois descer para um incrível passeio de caiaque, que me devolveu à condição de minúsculo ser diante de tamanha beleza.

Joias

Acompanho a jovem guia Thanh Hoang, em boa parte da viagem. Thanh conta que somente ali em Pearl Ha Long Bay Village, um dos pontos de visitação da baía, vinte pessoas trabalham no cultivo de três tipos de ostra para a produção de pérolas. A pérola de Southsea, originária da Austrália, é a maior delas e leva cinco anos para ser produzida. Para a pérola Tahiti, proveniente da França, são necessários quatro anos para que a ostra cresça e a prepare. Mas o tipo mais popular ali é a ostra Akoya, do Japão, pronta após três anos de cultivo. Dali saem os brincos, colares e pulseiras vendidos aos turistas por preços razoáveis. 

A maioria dos trabalhadores de Pearl Ha Long Bay Village vem de lugares distantes do Vietnã, e só voltam a sua cidade natal uma vez por ano, geralmente durante o Ano Novo Lunar, quando gostam de reencontrar a família.

Por essas e outras joias, navegar pelas águas da baía é um investimento pra lá de compensador. Existem passeios diários e cruzeiros para todos os gostos e bolsos. Mas com US$ 150 é possível fechar um roteiro confortável em um bom barco, por três dias de viagem, incluídas todas as refeições.

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Em Pearl Ha Long Bay Village, um dos pontos de visitação da baía, 20 pessoas trabalham no cultivo de três tipos de ostra para a produção de pérolas (Fotos: Viviane Claudino)

Nos cinco dias que passei na Baía de Ha Long optei por dormir a bordo de diferentes embarcações, passando as noites no mar e jogando conversa fora debaixo de um céu que mais parece um oceano de estrelas. Nesses momentos também é possível acompanhar o movimento de ambulantes noturnos com seus produtos, oferecidos quase sempre pela metade do preço. Cervejas e biscoitos estão entre os mais vendidos por pescadores que se comunicam com grande esforço em um inglês de difícil compreensão.

As embarcações e hotéis locais trazem deliciosas opções da cozinha vietnamita, incluindo muitos tipos de sopa e frutos do mar. Os mais ousados podem até experimentar pratos cuja atração são as carnes de gato ou de cachorro, muito populares em todo o país – mas preferi me incluir fora dessa.

O desafio da vida

A pobreza impressiona meus amigos europeus e australianos. Mas não consigo imaginar como poderia ser diferente um país assolado por tantos anos de guerra contra franceses (1946-1954) e americanos (1959-1975), vencidas com a graça dos dragões, apesar de, como já escreveu Bernardo Kucinski nesta mesma Revista do Brasil (edição 49, julho de 2010), os B-52 americanos terem despejado no Vietnã três vezes mais bombas do que em toda a Segunda Guerra. 

É preciso tirar visto para visitar o Vietnã. Hanói, a capital e segunda maior cidade do Vietnã, com 6,5 milhões de habitantes, é o ponto de partida para Ha Long. São cerca de 170 quilômetros, de ônibus e depois barco, até chegar à baía, seis horas depois. Não é possível deixar o trecho urbano da cidade a mais de 20 quilômetros por hora. Pedestres, carros, bicicletas e motos – 5 milhões de motos! – dividem o mesmo espaço. Todos buzinam e os semáforos são imaginários. Não há sinalização nem ordem, nem mão, nem contramão. E, devagar, tudo funciona em sincronia.

No centro de Hanói, as pessoas gostam de jogar conversa fora em rodas nas calçadas, enquanto comem coisas esquisitas fritas na hora. A comida é sempre uma caixinha de surpresa, mas no geral tive sorte. Tudo é barato. Uma cerveja custa 20 mil dongs, com 80 mil dongs se faz uma refeição e outros 140 mil pagam a diária do hotel. Traduzindo: cerveja US$ 1, refeição US$ 4 e diária US$ 7. Bolsa, isqueiro, xampu, cortador de unha, rede, bolinho – tem de tudo nas cestas dos ambulantes. E todo mundo usa máscara para se proteger da poluição que arde os olhos e estende sua névoa cinzenta até o litoral. 

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À esquerda, em Hanói, todos usam máscara para se proteger da poluição que arde os olhos. À direita, as ostras do cultivo de pérolas
(Fotos: Viviane Claudino)

Desde 2011 a Baía de Ha Long tem o título de Maravilha Natural do Planeta – as outras seis são Ilha de Jeju (Coreia do Sul), Parque Komodo (Indonésia), Porto Princesa (Filipinas), Tábua do Cabo (África do Sul), Cataratas do Iguaçu (Brasil/Argentina) e Floresta Amazônica e Rio Amazonas (presentes em dez países da América do Sul). O crescimento do turismo faz com que a região seja importante fonte de renda também para muitos moradores da capital vietnamita. Entre eles está Thanh Hoang. “Eu tenho orgulho de popularizar a beleza do nosso país para o mundo”, diz a guia. “Ha Long é minha segunda casa, mas receio que a atividade turística aumente sem controle a cada dia.”

Assim como a poluição, é preocupante o volume de lixo nas vilas flutuantes, nos quintais e até no mar da baía. Thanh conta que o governo planeja remover famílias para o continente e restringir o acesso dos visitantes – que em breve, portanto, não conhecerão essas aldeias. “Precisamos da contribuição de autoridades locais e turistas do mundo todo, homens e mulheres da comunidade, para que o encanto da baía não seja destruído e para manter Ha Long como um bem precioso da humanidade”, alerta.