opinião

Farsa ou tragédia

Combater uma inflação importada, sacrificando o crescimento econômico e a elevação dos salários, é retroceder de modo injustificável na agenda do desenvolvimento e da distribuição de renda

A recente alta da inflação no Brasil e no mundo, longe de representar qualquer descontrole da situação interna, tem causas bem claras. Trata-se de um choque externo cuja face mais evidente é a elevação de preços de importantes commodities agrícolas e metálicas: milho, trigo, soja, arroz, aço, ferro e cobre, entre outras; e do petróleo, que chegou a seu maior valor real histórico.

O crescimento dos países emergentes ampliou, estruturalmente, o patamar de consumo desses produtos. Não há volta à vista. O crescimento chinês e o indiano, especialmente, mas também de outras regiões do planeta, incorporou milhões de pessoas a esses mercados de consumo. No caso do petróleo, seu preço parece acompanhar a demanda crescente e a derrocada do valor do dólar, moeda de referência dos preços no comércio internacional. Demanda mundial em alta e dólar em baixa explicam boa parte da pressão sobre os preços desses produtos.

Em 2008, cerca de um terço da safra americana de milho (maior produtor mundial) será destinado à produção de etanol (álcool), empurrando a demanda e o custo desse produto. Também nesse ano, fatores climáticos podem levar à perda de 10% das safras de milho e soja nos EUA.

Finalmente, na atual lógica de funcionamento desregulado dos mercados financeiros globais, há um componente especulativo na formação dos preços nos mercados futuros de alimentos, petróleo e metais. Os diversos fundos financeiros buscam sustentar parte de seus ganhos ou repor perdas com a queda do dólar e a crise do subprime no mercado imobiliário americano. Tal efeito encontra terreno fértil quando se observam os baixos estoques de alimentos e petróleo.

Esse choque externo ocorre num momento em que a economia brasileira vai muito bem, obrigado! No último quadriênio (2004-2007), o PIB médio cresceu o dobro do que havia crescido no período 1981-2003. O desemprego é o menor dos últimos anos e a geração de empregos formais bate sucessivos recordes. A inflação e as contas externas estiveram em ordem até 2007.

No entanto, na visão do Banco Central brasileiro, o choque externo de preços deve ser combatido com a contenção de demanda agregada, utilizando-se a elevação da taxa de juros básica para esse fim. A intenção é reduzir o crescimento e o consumo para que a inflação não saia de controle.

E os salários, onde entram nessa discussão?

No segundo semestre, há um conjunto importante de categorias que negociam a renovação de suas convenções e acordos coletivos. São fortes, organizadas, numerosas e estão presentes em setores econômicos estratégicos. A idéia é impedir que os reajustes de salários acrescentem mais lenha à inflação.

Assim, voltamos à velha pergunta: salário causa inflação?

Em teoria, sim. Como a massa salarial representa algo próximo de 40% do PIB nacional, um aumento desproporcional dessa massa poderia não só elevar a demanda como pressionar o custo das empresas, levando-as a repassar esse aumento para os preços num ambiente de demanda aquecida.

Vale a pena contra-argumentar olhando nossa realidade.

Os salários reais, no Brasil, tiveram queda expressiva nas últimas décadas. Essa queda contribuiu para a indecente concentração de renda que temos por aqui. Mesmo na atual conjuntura favorável, os aumentos reais não chegam à metade do crescimento da produtividade, indicador decisivo para medir a capacidade de absorver os aumentos reais sem pressionar a inflação.

Contudo, um argumento mais estrutural deve ser incluído na agenda do debate macroeconômico. A elevação dos salários e dos rendimentos do trabalho pode até superar os ganhos de produtividade sem gerar inflação, desde que os demais agentes econômicos aceitem reduzir sua parcela na renda nacional. Estamos nos referindo aos lucros, aluguéis, impostos e outras rendas do capital e de patrimônio.

Em outras palavras, a inflação também expressa a luta pela distribuição da renda em qualquer país. Combater uma inflação importada, sacrificando o crescimento econômico e a elevação dos salários, é retroceder de modo injustificável na agenda do desenvolvimento e da distribuição de renda.