Brasil

Índio no poder

Pela primeira vez na história,o Amazonas tem dois representantes indígenas tomando posse como prefeitos

João Correia Filho

Para os 40 mil moradores de São Gabriel da Cachoeira (AM), os próximos quatro anos serão um divisor de águas na história política local: pela primeira vez um índio será prefeito no município, que tem 90% de sua população composta de índios. No estado, onde nunca um índio tinha sido eleito prefeito, agora haverá dois: Pedro Garcia (PT), da etnia tariano, em São Gabriel, e Mecias Pereira Batista (PMN), da etnia saterê-mawê, em Barreirinha. Das 350 candidaturas indígenas em todo o Brasil, a prefeitos e vereadores, 78 se elegeram. O número de prefeitos dobrou em comparação a 2004 – seis, eleitos em cidades do Amazonas, Roraima, Minas Gerais e Paraíba.

“Sempre o poder econômico falou alto, mas desta vez nossas propostas sobressaíram, pois vão ao encontro das necessidades da população indígena e não-indígena”, diz Pedro Garcia. A conquista das prefeituras é reflexo de um trabalho que vem sendo feito há mais de 20 anos, de conscientização dos povos indígenas para o valor de seu voto. É também o que pensam líderes indígenas e estudiosos envolvidos com o tema. “Percebeu-se que para melhorar a vida dos índios é preciso aprovar seus próprios projetos no executivo e no legislativo”, diz Marcos Apurinã, da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab).

Beto Ricardo, antropólogo e coordenador do Programa Rio Negro do Instituto Socioambiental, ONG com sede em São Gabriel, destaca que a eleição representa também uma vitória simbólica, cheia de riscos e que deve ser percebida como um desafio. “Durante mais de cem anos a prefeitura da cidade esteve nas mãos de comerciantes e funcionários públicos vindos de fora”, diz. Ele acredita que um dos fatores primordiais para essa vitória é que o PT (partido do prefeito) e o PV (do vice) perceberam que índio não vota necessariamente em índio, e fizeram alianças com outros setores. “Agora, o desafio é governar e implementar as prioridades e o estilo de governança previstos no Plano Diretor da cidade, aprovado em 2006, e que é a plataforma que a sociedade cobrou durante a campanha”, completa Ricardo. 

Segundo Pedro Garcia, o plano será a mola mestra de seu governo, pois “foi acordado com a participação do povo e respeita as diferenças de cada região, de cada cultura”. Foram 14 meses de discussões e outros dois de trâmites na Câmara Municipal. São Gabriel tem particularidades que exigem atenção: é o terceiro maior município brasileiro em extensão territorial e 90% de seus 112.255 quilômetros quadrados, área maior que Portugal, são terras indígenas ou unidades de conservação. Durante a campanha, Pedro percorreu mais de 10 mil quilômetros de barco para chegar aos principais distritos e aldeias. Precisou da ajuda de tradutores, pois as 22 etnias presentes no município dividem-se em diversos troncos linguísticos e vários idiomas. São Gabriel foi, por exemplo, o primeiro município brasileiro com três línguas co-oficias, além do Português (Nhengatu, Tukano e Baniwa), que são ensinadas nas escolas. Ou pelo menos deveriam.

Por estar localizado nas fronteiras com a Colômbia e a Venezuela, o município é ponto estratégico para o país, com forte presença do Exército. A cidade é tida como rota para o tráfico, que utiliza seus rios como escoadouro. Os dois últimos prefeitos de São Gabriel possuem pendências com o Tribunal de Contas do Estado e deixaram obras inacabadas. No maior cartão-postal da cidade, a orla do Rio Negro, onde antes havia grama, há hoje uma cobertura de concreto e esqueletos de quiosques abandonados.

João Correia Filhoindias
Escola em São Gabriel: cidade mais indígena do país

Ironicamente, em São Gabriel falta água tratada. Mesmo estando às margens de uns dos maiores rios do mundo, a população sofre com a inexistência de tratamento da água que chega em suas casas. O que vem nas tubulações é o que chamam de “água preta”, bombeada do rio. “Não é boa para beber, para cozinhar ou mesmo para lavar roupa. Por ser escura, deixa manchas nas roupas e faz mal pra gente”, diz Francisco Viana, índio da etnia tapuia, que todos os dias vai buscar água “branca” retirada de poços artesianos, distribuída em torneiras espalhadas pela cidade.

Entre tantas adversidades, uma das questões que vêm à tona é como os novos prefeitos vão governar e qual seu grau de comprometimento com o movimento indígena. O antropólogo Beto Ricardo, que acompanha a situação de São Gabriel bem de perto, conta que durante a última assembleia-geral da Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (Foirn), em novembro passado, um dos assuntos foi a definição de um diálogo com o novo prefeito. “Acredito que esse relacionamento vai se dar principalmente pelo que está previsto no Plano Diretor, que reconhece a descentralização por sub-regiões que coincidem geograficamente com a organização interna do movimento indígena”, explica.

Em acordo com essa proposta, o prefeito Pedro Garcia diz que aposta no modelo “participativo e descentralizado” que ajudou a aplicar e a aprimorar nos movimentos indígenas dos quais fez parte, como é o caso da própria Foirn, presidida por ele entre 1997 e 2000. Garcia conta também com a participação de seu vice nas decisões da gestão. André Baniwa, de 37 anos, é bastante respeitado entre as comunidades indígenas e as não-indígenas, principalmente por sua participação em projetos ligados a educação e saúde na calha do Rio Içana, onde nasceu. Graças à sua ajuda, Pedro venceu em todas as seções eleitorais do interior do município. Na região do Içana obteve 95% dos votos.

Em Barreirinha, onde a população indígena é minoria, o discurso do prefeito tende menos para a questão étnica: “Nossa intenção maior é fortalecer os movimentos sociais, para que eles tenham mais autonomia para trabalhar”, diz Mecias, que já foi duas vezes vereador e vice-prefeito na gestão 2001/2004.

Outro ponto crucial para os dois prefeitos amazonenses é a configuração da Câmara de Vereadores. “A Câmara de São Gabriel tem quatro vereadores da nossa coligação, num total de nove. Mas como a Casa foi totalmente renovada, ninguém se reelegeu; isso pode facilitar acordos”, confia Pedro. Em Barreirinha, Mecias aposta no comprometimento dos vereadores e no fato de ter eleito três das nove vagas.

Em São Gabriel, os números da votação para prefeito também apontam um novo caminho: Juscelino Otero Gonçalves (PMDB), antecessor de Pedro Garcia, ficou em quinto lugar. Outros dois ex-prefeitos ficaram em terceiro e quarto lugar. Já o segundo, René Coimbra (PCdoB), também é indígena e teve votação surpreendente. Além de uma tomada de consciência por parte da população indígena, os resultados mostram uma sede coletiva de mudanças, o que já é uma vitória para todos, índios e não-índios.