Perfil

Inezita, minha viola

Jailton Garcia Demorou para me deixarem pegar uma viola, porque achavam que era feio para menina O sangue de índio nas veias e o gene do caipira no DNA explicam […]

Jailton Garcia

Demorou para me deixarem pegar uma viola, porque achavam que era feio para menina

O sangue de índio nas veias e o gene do caipira no DNA explicam sua vitalidade, a paixão e a dedicação pela música de raiz. Aos 84 anos, a cantora e instrumentista Inezita Barroso é ícone da cultura popular e da música de raiz do Brasil. “Uma coisa sem raiz voa, o vento leva e desaparece”, sintetiza. Além de colecionar mais de 200 prêmios em quase 60 anos de carreira e mais de 80 discos gravados, ela é uma recordista na TV brasileira: o Viola, Minha Viola, da Rede Cultura, está perto de completar três décadas de transmissão ininterrupta. O primeiro programa foi ao ar em 28 de março de 1980. “Quem optou pelo caminho da música legítima da terra não vai sumir nunca. Na TV, você vê programas modernos que começam, fazem barulhão por alguns meses e acabam. E nós estamos há mais de 29 anos no ar! É uma vida”, comemora, emocionada.

Ignez Magdalena Aranha de Lima é paulistana. Além de antepassados indígenas herdados de pai e mãe, teve, pelo lado materno, avós “caipiras” e 17 tios, a maioria da roça. Foi aí que a sua paixão pela viola começou. Em São Paulo, estudava piano e violão. As férias passava nas fazendas dos tios. Ao contrário das outras primas, “quietinhas”, Inezita se esbaldava brincando com os primos, subindo em árvores, comendo “frutas no pé” e nadando em riachos. No final do dia, fugia da casa-grande para acompanhar as rodas de viola dos colonos. “Aí me apaixonei pela moda de viola. Era o meu céu.”

Vencendo preconceitos

Nessas rodas de viola, ela pedia, mas nunca conseguia tocar. “Demorou para me deixarem pegar uma viola, porque achavam que era feio para menina. Mas forcei tanto que eu catequizei um velho, até que venci: ‘Toca aí um pouco na minha viola’. Aí, peguei a viola e saí tocando e cantando. Eles ficaram loucos, mas não era do agrado deles. Mulher artista, mulher violeira… O preconceito era muito forte”, afirma.

Ainda criança, a violeira começou a se apresentar em clubes. Em 1950 estreou como cantora na Rádio Bandeirantes. “Eu briguei muito no começo da minha carreira para estabelecer esse gênero e mostrar que não era besteira, que era uma coisa séria, histórica. E hoje estou muito contente, porque estou vendo os frutos. Vejo crianças em orquestras de viola, orquestrinhas de flauta doce. São coisas brasileiras que nós precisamos cultivar, senão somem, acabam. Aí, não haverá referência do passado”, ressalta.

Ignez virou Inezita quando criança. O sobrenome Barroso veio do marido cearense, com quem viajou por todo o Norte e o Nordeste. “A letra caipira é o registro da história cotidiana de um povo, em minúcias. Gente semianalfabeta escreve uma poesia que você não acredita”, define.

Inezita participou da transmissão inaugural da TV Tupi e trabalhou também como cantora exclusiva da Rádio Nacional. Já no primeiro disco gravado, em 1953, estourou com Moda da Pinga. Logo depois, veio a magnífica interpretação de Lampião de Gás. E o sucesso como cantora empurrou-a para o cinema. Fez sete filmes e ganhou o Prêmio Saci, espécie de Oscar brasileiro, por sua atuação em Mulher de Verdade (de Alberto Cavalcanti, em 1954). “Mas o cinema me aborreceu. Você tem de acordar de madrugada, ficar esperando sair o sol. Se ele não vem, tira a maquiagem e continua no dia seguinte. Para aproveitar um cenário, um rio lindo, uma roça bonita, tem de gravar cenas e emoções diferentes, que estão no começo e no final do filme. É difícil.”

Até o final da década de 1970, a cantora e instrumentista conciliou gravações de discos e shows por todo o país com uma profunda pesquisa sobre o folclore e a música de raiz. Foi unindo à moda de viola ritmos como maracatus, cocos, lundus, valsinhas, toadas, pagodes caipiras e xotes. Sempre apresenta um deles Em seu Viola, Minha Viola. “Sou alucinada pelo meu país. Nas minhas andanças, vi que sempre tem um monte de coisas para descobrir, que hoje estão veladas, apagadas por muitas outras coisas sem valor”, destaca.

O conhecimento acumulado rendeu-lhe o título de doutora honoris causa em Folclore Brasileiro, pela USP. Além da intensa atividade cultural, durante 25 anos, até o final do ano passado, deu aulas em cursos de Turismo em faculdades em São Paulo.

Inezita lamenta o atual estágio da produção musical e cultural no Brasil. “Hoje vejo muito comércio e pouca arte. É o pagou-levou. ‘Ah! Fulana é bonitinha, mas não canta nada.’ ‘Não tem importância, enfia ela no palco’”, reclama. “Isso é ridículo numa terra com milhares de ritmos maravilhosos, milhões de criações lindas feitas por gente sem nenhum estudo. A gente não vê uma letra besta de caipira, que repete, repete.”

Do alto de seus 84 anos, Inezita continua religiosamente comendo sua feijoada de todo sábado, acompanhada de uma boa caipirinha, gravando discos, fazendo shows pelo Brasil afora e tocando seu Viola, Minha Viola. A plateia do programa é atração à parte. À vontade, o público dança na frente do palco, canta e interage com a equipe de produção. Alguns levam guloseimas e lanchinhos para dividir com os vizinhos de auditório, com os cinegrafistas e com a dona da festa.

Por isso tudo, ela continua regando as raízes dos ritmos musicais que escolheu para a sua carreira. “É um compromisso com o meu país e com o meu público”, declama, lembrando da fidelidade daquelas pessoas que toda semana lotam as gravações. O Viola é gravado às quartas-feiras, exibido às 9h no domingo e reprisado às 12h do sábado seguinte. “Nunca a casa está vazia. Chega gente às 9h para só entrar à tarde. É uma coisa linda”, orgulha-se.