cidadania

Isso aqui não é filme, não

A tragédia do ônibus 174 inspirou dois cineastas. Mas o mundo dos incluídos ainda se contenta em retirar da paisagem a criança adotada pelas ruas

CARLO WREDE/CPDoc JB

Sandro, com Geísa, dentro do 174. Para o Bope, essa foi a “Operação Jardim Botânico”

“Mataram minha mãe, meu irmão, e meus amigos foram assassinados na Candelária.” Essa foi uma das frases repetidas por Sandro do Nascimento durante o seqüestro do ônibus 174 (linha Central–Gávea), em 12 de junho de 2000. Com um revólver 38, Sandro fez reféns os passageiros na altura do Jardim Botânico, bairro nobre carioca. Polícia e imprensa cercaram o ônibus. Sandro ficou mais atormentado. No momento em que desembarcou com a recreadora Geísa Firmo Gonçalves – após quatro horas – o seqüestro acabou. Ela morreu com um tiro disparado por um dos homens do Bope e ele, asfixiado na viatura policial. Todos os policiais acabaram sendo inocentados.

O Brasil viu pela TV a tragédia. O tema já inspirou dois longas-metragens: o documentário Ônibus 174, de José Padilha (2002), diretor de Tropa de Elite; e Última Parada 174, ficção de Bruno Barreto, com estréia neste final de outubro e candidato a entrar na disputa pelo Oscar de filme estrangeiro. Os dois ilustram a trajetória de Sandro – garoto sem pai que aos 6 anos vê sua mãe, pequena comerciante de São Gonçalo, Região Metropolitana do Rio, assassinada a facadas durante um assalto. Ele não se adapta à casa da tia e acaba nas ruas. Em julho de 1993, foi um dos sobreviventes da Chacina da Candelária, ataque policial a mais de 70 jovens, em que oito foram mortos.

Michel Gomes, o Sandro do filme de Barreto, vive na comunidade de Padre Miguel. Para ele, o menino errou. “Para quem acompanhou pela TV o drama, ele parece um monstro”, analisa. “Mas aquilo foi uma fatia da vida dele. Muita coisa anterior o filme mostra. Se ele tivesse maldade, teria feito uma chacina no ônibus. Esses meninos invisíveis para a sociedade vão se virar como podem”, analisa o ator, de 19 anos, atuante no grupo Talentos de Vila Vintém desde os 10. Aos 17, ingressou no processo seletivo do filme e ralou muito até ser escolhido, 15 testes depois. Antes, esteve no elenco do curta Palace II (2001), dos longas Cidade de Deus (2002) e Diabo a Quatro (2004), e de Cidade dos Homens, na série de TV e no filme.

Aliviar a culpa

A artista plástica Yvonne Bezerra de Mello conhecia o rapaz desde os 8 anos. Após a chacina, Sandro recorreu à “tia” Yvonne, voluntária de ações comunitárias nas imediações da Igreja da Candelária. Também pediu por ela no dia do seqüestro do ônibus. “Ele não tinha discernimento para planejar, calcular e pensar além. Ele estava alterado, mas foi a série de erros que culminou na morte dele e da moça”, acredita. “A polícia agiu de forma atrapalhada. Só no filme do Padilha fui saber que ele pediu para me chamarem, e nem isso foi feito”, relata Yvonne, coordenadora pedagógica do Projeto Uerê, que atende a 430 crianças da comunidade da Maré.

Yvonne diz que o Estado ainda peca pela ausência de políticas educadoras e preventivas, insubstituíveis: “Quando meninos se tornam infratores, o preço para as famílias e para a sociedade é muito mais alto”. Para ela, é essencial nessa situação encontrar acesso a um porto seguro. “Das 430 do projeto Uerê, 420 já presenciaram assassinato, tortura ou foram vítimas de violência. Elas ficam bloqueadas para o aprendizado e com a idéia muito errada do que é a vida. Precisam estar onde tenham confiança e liberdade para se desenvolver com qualidade. Levam cerca de oito meses a um ano para começar a rir e mais tempo ainda para acreditar numa realidade diferente”, afirma.

Esmeralda do Carmo Ortiz, de 29 anos, entende o que diz a artista plástica. Aos 9 anos fugiu de casa, das surras que levava da mãe e dos abusos sexuais do tio e padrasto. Passou os dez anos seguintes nas ruas. Viciou em crack, roubou, traficou e passou pela Febem. Pensava em se resolver com uma overdose. Depois de meses atendida por educadores do Projeto Travessia, que lida com jovens do centro de São Paulo – inclusive com sessões de terapia e tratamentos contra dependência –, passou a acreditar num rumo. Formou-se em Jornalismo e mora sozinha. Seu livro Por Que Não Dancei (Editora Senac, 2001) descreve sua trajetória. “Quando vi as cenas do ônibus já sabia o final. Na rua, violência e morte acabam sendo naturais. É difícil encontrar o apoio que recebi. A maioria ignora ou dá aquela moedinha para aliviar a culpa”, diz.

Vácuo do imprevisível

Para o paulistano Luiz Alberto Mendes, de 56 anos, 32 deles preso, a rua ensina a odiar. Autor de Memórias de um Sobrevivente (2001) e Tesão e Prazer – Memórias Eróticas de um Prisioneiro (2004), Mendes fugiu de casa aos 11 anos. Deslumbrava-se com as luzes da cidade e a liberdade. Passou a adolescência nas ruas, na Febem, em delegacias e presídios. “Vivíamos à mercê da polícia, dos comissários de menores e dos moleques maiores. Aprendi a me defender, a sobreviver e a ter ódio.”

Questionado sobre como saiu do mundo do crime, responde que nunca esteve lá: “Fui me deixando levar pelas circunstâncias e a vida fluiu do jeito que era possível. Paulo Freire diz que, à medida que o ser humano conhece os códigos de comunicação da humanidade, faz uma releitura de mundo. Foi o que se deu comigo. Os livros me salvaram e me salvam até hoje”. Mendes se realiza dando aulas em oficinas de leitura e escrita para adolescentes em comunidades carentes.

O promotor Paulo Sérgio de Oliveira e Costa, secretário municipal de Assistência e Desenvolvimento Social de São Paulo, ex-presidente da Febem, admite que sem uma ação rigorosa e permanente voltada às crianças, elas continuarão entrando no universo das drogas e das “infrações”. “Se conseguirem chegar à Fundação Casa, antiga Febem, já são vitoriosos, sobreviventes das ruas”, acredita. Costa alega que faltam respaldo jurídico e uma estrutura integrada para enfrentar o problema. E defende que todas as crianças e adolescentes deveriam ser recolhidos das ruas e levados à casa dos pais ou familiares, sendo exigida a responsabilidade de cada um.

É fato que a rua não é lugar para ninguém. Mas nem sempre mandar a criança de volta para casa de onde saiu pode ser a solução. Um triste exemplo dessa constatação remete ao recente caso dos dois irmãos de Ribeirão Pires (SP), de 12 e 13 anos. De acordo com o Conselho Estadual de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana (Condepe), o histórico do pai e da madrasta dos meninos era de rejeição e abandono. Foram registrados boletins de ocorrência em 2005, de abandono, e em 2007, de desaparecimento e localização das vítimas. Em maio deste ano, a Justiça determinou que os meninos saíssem do abrigo onde viviam, devido a uma “não-confirmação dos fatos que causaram o abrigamento”. No início de setembro, foram mortos e esquartejados. Os suspeitos do crime são o pai, que nega, e a madrasta, que confessou.

Em declarações à imprensa, o coordenador da Comissão de Infância e Juventude do Tribunal de Justiça de São Paulo, desembargador Antonio Carlos Malheiros, disse não acreditar que tenham ocorrido falhas na decisão da Justiça. “Pelo que conheço do material, o provável é que caímos no vácuo da imprevisibilidade”, disse ao portal G1.

Especialistas criticam o fato de predominarem nas políticas públicas ações que vão da compaixão ao assistencialismo, chegando em muitos casos à repressão, indiferença ou higienismo. Tirar as crianças da rua deve ser um objetivo, mas não se a preocupação for apenas com a paisagem. É preciso que a criança seja atendida, compreendida, estimulada a desejar sair da rua e a acreditar em outras perspectivas; e, se a família não está em condições de mantê-la, também precisará de atenção.

Para Lúcia Pinheiro, coordenadora da Fundação Projeto Travessia, as políticas para crianças e adolescentes em situação de rua apresentam descompasso entre legislação e práticas, além de estarem sujeitas às constantes mudanças de gestão. “Temos percebido que as ações de enfrentamento a essa questão desenvolvidas nos âmbitos municipal e estadual, assim como os programas federais de transferência de renda, não afetaram a realidade desse público, que segue à margem da sociedade e cresce sem ser afetado por políticas que lhes propiciem um desenvolvimento saudável”, avalia.

Oito anos depois da tragédia do ônibus, o que se pode chamar de boas experiências de ONGs e de governos são ilhas de exceção, cercadas por todos os lados pelo descompasso entre ações governamentais e não-governamentais. A mudança mais efetiva nesse roteiro parece ser a do número da linha Central–Gávea, antes 174 e hoje 158. Enquanto isso, o vaticínio de Sandro durante o desenrolar da tragédia – “Isso aqui não é filme, não!” – ainda é um alerta perdido no ar.