cidadania

Jogar a toalha, jamais!

Projeto instalado debaixo do viaduto tem academia, biblioteca, aula de boxe, capoeira e até francês para moradores de rua. Tambor de plástico é saco de pancada. A miséria apanha da solidariedade. E dinheiro não entra

Mauricio Morais

Joaquim trabalha como segurança e sonha em abrir uma academia em sua cidade natal, no Ceará

O bairro do Bexiga, na região central de São Paulo, famoso pelas atrações gastronômicas, arquitetônicas e o sotaque italiano, guarda também uma inusitada receita. Nada de massas ou pizzas, mas uma combinação mais ampla, de educação física, cultura, solidariedade e cidadania. Quem passa junto às ruas Santo Antônio e João Passaláqua depara com uma ampla “sala” com estantes repletas de livros, mesas, cadeiras, escritório, dois ringues de boxe e dezenas de aparelhos de musculação, alguns nada convencionais – como tanque de combustível de automóvel, geladeira pendurada e tambores de plástico cheios de água ou pedra que servem de sacos de pancada. A “academia” ocupa 2.500 metros quadrados cercados por tela de metal e tem como teto o Viaduto do Café – na ligação leste-oeste da cidade.

Diariamente, entre 8h30 da manhã e 23h30, o projeto Corasol Nascente recebe mais de uma centena de pessoas, a maioria moradores de rua e albergados. Tudo começou quando o ex-pugilista Nilson Garrido trabalhava como segurança na região do Vale do Anhangabaú e via crianças cheirando cola e praticando pequenos delitos. Como tinha academia na zona leste da cidade, resolveu, com equipamentos improvisados, ocupar o dia dos moradores de rua e incentivá-los a praticar esportes. Depois, convenceu a prefeitura a liberar o uso do espaço.

O projeto vive do apoio de voluntários. “Nós reciclamos seres humanos. Muitos chegam rebeldes, mas ao entrar aqui passam a seguir regras e até a comer com a gente as sobras de comida que buscamos nos restaurantes. Nós, lixo, comemos lixo debaixo do viaduto, pegamos aquelas pessoas que são consideradas lixo lá na rua e fazemos delas seres humanos”, afirma Garrido, um dos coordenadores do Corasol, junto com Corina Batista de Oliveira, que cuida da área social.

Ele mora no local de trabalho e passa o dia acompanhando seus “alunos” nos exercícios físicos, checando o que cada um faz, na academia, na biblioteca ou dormindo nos sofás. Durante todo o dia o entra-e-sai é constante. Gente que chega, assina uma lista de presença e vai treinar, ler, conversar, comer ou dormir. Tem aula de boxe, capoeira, francês e, em breve, informática. O estilista Isaac Markan prepara um curso de desenho de moda e um desfile com os moradores de rua para 2007, o Black Fashion Week.

Mauricio Moraisgarrido
Garrido abriu a academia como um espaço para “reciclar seres humanos”

Mais que malhação

Um jovem calçando chinelos de dedo entrou, assinou a lista e seguiu em direção aos aparelhos de musculação. No mesmo instante, Garrido abriu um armário e tirou um par de tênis e meias para o garoto usar. Os olhos do mestre umedeceram-se diante do sorriso de gratidão do menino. Enquanto o aluno treinava com seu tênis “novo”, uma mãe alimentava seu bebê, que parecia não ter mais de 1 ano, sobre a grande mesa que fica logo na entrada do “salão”, em frente a uma das estantes. Minutos antes, um grupo de quatro moradores de rua estava fazendo provavelmente a primeira refeição do dia, às 16 horas.

Apesar de o foco do projeto estar nos moradores de rua, o Corasol Nascente também recebe pessoas que querem se exercitar ou utilizar a biblioteca, independentemente de classe social. A regra é “quem pode paga 20 reais para treinar”, mas se não puder treina do mesmo jeito. Por isso, enquanto um garoto não tem tênis, outros calçam Nike e Adidas. Tudo na maior harmonia. Conversam, treinam juntos e se respeitam.

Quando Nilson Garrido não está, quem supervisiona as atividades é João Batista dos Santos, o JB, um negro de 38 anos com corpo moldado pelos exercícios que, embora muito simpático, não dá moleza para os alunos. Aliás, moleza é uma palavra que não faz parte do vocabulário desse ex-presidiário que deixou dentro das celas 12 anos de sua vida.

Há seis anos livre, JB fazia serviços gerais numa administradora de bens. Desempregado desde agosto, viu-se novamente no mundo das drogas e bem próximo de cometer os mesmos delitos de antigamente – roubo e furto. O medo de perder sua filha Catarina fez com que procurasse o projeto e passasse a dedicar o dia todo ao seu treinamento e dos outros. “Quando entrei, o mestre falou que se eu quisesse ser um campeão não poderia usar drogas. Parei com os químicos e fui deixando a maconha aos poucos. Agora quero voltar a fazer o cursinho da USP e vou prestar vestibular para Educação Física. Depois, vou continuar ajudando o Garrido”, planeja.

Enquanto contava sua história, JB mantinha os olhos nos alunos. Acompanhava cada movimento de Sérgio Vieira de Barros, um analfabeto desempregado de 40 anos que mora no Albergue Franciscano, no bairro do Glicério. “Estou desempregado há um ano. Não tinha mais condição de sustentar minha mulher e filha, e fui para um albergue. Já tive que dormir na rua, debaixo do viaduto. Passava o dia inteiro na rua, agora eu encontrei um lugar legal pra ocupar minha cabeça.” Parece pouco, mas o único desejo de Sérgio é ser tratado igual a todo mundo, e é isso que o leva ao Corasol. “As pessoas acham que a gente é ladrão. Eu não quero dinheiro, só dignidade, dar um abraço e bom-dia para as pessoas. Mas todo mundo me vira a cara. É triste”, lamenta.

Ivonildo Paiva da Silva, de 28 anos, é companheiro de Sérgio na musculação. Perdeu o emprego de jardineiro que mantinha em Goiás e foi “tentar a sorte na cidade grande”. Sem dinheiro e sem emprego, sua moradia não poderia ser outra senão um albergue na região central da cidade. “É meio ruim ficar em albergue porque ninguém dá valor se você mora lá. É mais difícil ainda conseguir um trabalho. Essa academia ajuda porque tira as pessoas da rua e a gente não fica pensando em fazer besteira. Se eu não estivesse aqui, estaria sentado numa praça sem fazer nada.” Ele conta que nunca tinha feito academia e o aparelho de que mais gosta é a bicicleta. Não quer saber do boxe porque considera um esporte violento. “Não gosto de violência.”

Joaquim Carneiro Batista, de 19 anos, idem: “Pago para fugir de briga”. Treina quatro horas por dia há três meses e sabe que tem de se esforçar se quiser ser um grande pugilista. Faz bicos de segurança em estacionamentos e restaurantes e quer montar uma academia na sua cidade, no Ceará. “Estou plantando meu futuro. Nunca tinha feito boxe, só capoeira e futebol. Quero ser um campeão. Se me esforçar, com um ano de treino acho que consigo ser campeão peso-pena.”

Se isso acontecer, Joaquim poderá treinar com os pugilistas profissionais que freqüentam o projeto. Um boxeador ilustre que está sempre por lá, pelo menos uma vez por semana, é o campeão Fábio Garrido, cria de Nilson na vida e nos ringues. Com ele, outros profissionais treinam na metodologia oferecida pela academia: marretadas em pneus, socos nos barris e corrida arrastando pneus. Não é para qualquer um.

Mauricio Moraissergio
Sérgio, desempregado, passava o dia todo na rua

Dinheiro não entra
O projeto Corasol Nascente não tem fins lucrativos, não recebe verbas públicas nem tem parceiros privados. Depende de doações. Todos os dias chegam tapetes, livros, móveis, computadores e mantimentos. O pugilista Nilson Garrido não aceita dinheiro: “Somos a resistência, a modernidade. Dinheiro aqui pra nós é lixo. Precisamos de pessoas que acreditem que isso aqui é uma nova forma de fazer no novo milênio”.

O ex-morador de rua Ezequias Caetano Neto, 41 anos, teve de ir ao supermercado mais próximo para comprar quatro litros de leite: “Eu cheguei aqui com dinheiro e o Garrido disse que se eu quisesse ajudar que fosse com litro de leite”, declarou, já com os olhos encharcados. Durante oito meses Ezequias dormiu pelas ruas e viu coisas que nunca vai esquecer. “Eu fugi da morte muitas vezes. Escapei da chacina da Praça da Sé, em 2004. Eu sempre quis poder ajudar essas pessoas porque sei o que elas passam. Mesmo desempregado, hoje posso doar um pouco.”

O projeto começou apenas com os aparelhos rústicos de Garrido. Em outubro, depois de ter sido tema do programa Pânico!, a rede paulistana de academias Runner doou mais aparelhos seminovos para todos os grupos de exercícios musculares. Segundo Juliano Russo, gerente de marketing, foram cerca de 15 mil reais em equipamentos. “Vimos que ele, mesmo de forma precária, está incentivando e disseminando o esporte para aqueles que não têm acesso.”

Cada um ajuda como pode. A estudante do ensino médio Gabriela Cristina Victorino, 18 anos, além de manter a forma na academia, doou livros, seu freezer e a única máquina de lavar que tinha em casa. “Estou lavando roupa no tanque, mas eles precisam mais que eu, tenho uma mãe que me sustenta. Acho importante fazer isso porque os moradores de rua nunca teriam oportunidade de fazer uma academia. Quero incentivar outras pessoas a ajudar.”