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Jogo de cintura que liberta

Dança do ventre descortina um mundo de possibilidades para as mulheres a partir do resgate da autoestima e da feminilidade

gerardo lazzari

Aula no Espaço Shangrilá, em São Paulo

Noite de terça-feira. Em uma badalada casa noturna de São Paulo, centenas de pessoas chegam para o espetáculo. No palco, mulheres lindas, vaidosas, fortemente maquiadas e inevitavelmente sensuais movem-se de forma sinuosa, ao som de refinada música árabe, observadas por uma plateia atenta. Fascinam homens e mulheres com olhares misteriosos e segurança desafiadora. Em comum, algo precioso: autoestima elevada, a grande marca da dança do ventre na alma de suas praticantes. Relatos unânimes de professoras e alunas atestam esse poder da dança.

A ginecologista paulista Gabriela Crema constata quase diariamente em seu consultório o que a ciência ainda não estudou. Mulheres que praticam essa dança têm redução considerável da dor pélvica e aumento evidente da autoestima, o que resulta em melhor qualidade de vida.

A poucos meses de completar 70 anos, Samira Samia brilhou na passarela do Sambódromo de São Paulo na ala das bailarinas da Unidos do Peruche. Tem um corpo saudável e forte, marcado por 32 anos de prática de dança do ventre. A professora foi uma das primeiras bailarinas dessa modalidade no Brasil. Garante que escapou das agruras da menopausa porque a dança favoreceu a produção de hormônios, inclusive após o término das ovulações. “Minha pele brilha. Meus seios são firmes”, destaca.

Samira tem alunas com mais de 70 anos, e para elas um dos maiores benefícios é a possibilidade de curar com a dança a artrose, doença comum nos idosos. “As mudanças em quem começa a dançar são tantas que algumas alunas ficam irreconhecíveis até fisicamente. É uma verdadeira transformação o que ocorre com as mulheres”, conta.

A filha de Samira, Shalimar Mattar, recebeu apoio para dançar desde criança. Bem diferente do que aconteceu com a mãe, que sofreu preconceito e a repressão do marido, a ponto de só deslanchar como bailarina e professora depois de ficar viúva. Aos 42 anos, Shalimar dá aulas e comanda o mercado persa, evento anual que reúne em torno de 6.000 pessoas, praticantes ou apreciadoras da dança do ventre. Diz a mãe que ela é a melhor na modalidade da dança com espada. “Dançar faz bem à pessoa, e isso se reflete em tudo. Para a vida profissional é excelente, porque a mulher ganha nova postura, fala melhor e fica inevitavelmente mais bonita”, observa Shalimar.

Conexão com a vida

Maria Isabel Viola, de 42 anos, dança há um ano. Foi levada para esse mundo por um companheiro árabe. No começo, tinha o propósito de aprender a dançar para ele. Mas foi surpreendida pelo poder da dança. Ela não gostava sequer de se olhar no espelho. “Eu encontrei a mulher que existia em mim. Mudei até meus movimentos mais simples. Era grosseira, e agora sou feminina para tudo”, relata. Além disso, ela escapou da tensão pré-menstrual, que era terrível, causava depressão e a obrigava a tomar remédios. Hoje não tem mais cólicas. “Ainda planejo me apresentar prá ele, mas, depois que me descobri, isso se tornou secundário prá mim.”

A ideia de que mulheres procuram as escolas para agradar aos maridos, em danças particulares, é um pouco fantasiosa para Lulu Sabongi, uma das bailarinas mais respeitadas no Brasil e internacionalmente. Ela explica que as mulheres que procuram a dança são movidas pela vontade de retornar às origens do feminino. “A dança faz esse convite. Elas encontram prazer na feminilidade. Por isso, o índice de desistência das aulas é mínimo.”

Segundo Lulu, a dança do ventre tem oito movimentos básicos, que provocam estímulos sensoriais e musculares. “Não se conhece a origem, há inúmeras versões. Mas é essencialmente uma expressão das mulheres se reconectando com a vida.
As ondulações reproduzem movimentos que estão no corpo humano. Atuam nos grupos articulares, na postura, e oxigenam parte dos órgãos sexuais”, explica a bailarina.

“As mulheres maduras são as que mais podem se beneficiar com a dança”, afirma a professora Najla Daoud Yacoub, de 55 anos. Ela começou a praticar há sete anos e conta que a dança praticamente zerou os efeitos de uma forte artrose e também da menopausa, assim como a baixa autoestima, síndrome do pânico e depressão. “A dança faz a gente sorrir sem saber por quê. É como um hormônio. Me tirou do fundo do poço depois da separação. Algumas mulheres sonhadoras pensam em dançar para salvar seu relacionamento, mas é ilusório. Eu nunca fantasiei isso. O importante mesmo é que algumas alunas chegam a chorar emocionadas pelas mudanças proporcionadas em sua vida.”

danca

Leveza

No escritório, todo mundo estranha o fato de a economista Adriana Caldeira, de 32 anos, ser bailarina. Ela jogou basquete na juventude e adotou movimentos bruscos. Ainda precisa melhorar muito, é ansiosa, mas já ganhou leveza e flexibilidade. Procurou a dança por vaidade. “Sou superperua. Achava bonito demais, mas a descoberta foi surpreendente. Hoje, sou capaz de conhecer meu corpo, e até a TPM diminuiu”, comemora. Adriana diz que também utiliza a dança para “esquentar” o sexo: “A relação fica divertida”. O namorado, de 36 anos, estimula que ela se desenvolva na dança. “Não é nada machista. Ele gosta e vê como uma expressão de arte. E não tem ciúme de que eu me apresente para outras pessoas.”

Élida Dolores, de 17 anos, começou a dançar aos 13, logo depois de conhecer Rafael Coelho, de 23. Ele a apoiou no início, mas ficaram com pouco tempo para o relacionamento por causa do envolvimento da garota com as aulas. Para conseguir mais tempo juntos, ele também decidiu render-se à arte – e há quatro meses pratica dabke (dança folclórica libanesa). Rafael admira a desenvoltura da namorada e espera por uma apresentação particular. “Sou muito tímida, ainda não venci esse problema, mas não tem importância. Depois da dança, ganho autoconfiança, fico mais leve, mais segura, satisfeita comigo mesma. Tive uma supermelhora no fluxo menstrual.”

Se essa é a fantasia de Rafael, não é o que passa pela cabeça de Arthur Henrique Terciano, de 30 anos, namorado da bailarina Marina Coelho, de 22. Para ele, o benefício da dança para o casal é o ambiente em que circulam devido às apresentações. “Há uma vida social legal, muito companheirismo entre todos, e o nosso relacionamento não cai na rotina”, observa. Arthur não sente ciúme de Marina durante os shows, especialmente nas casas árabes, onde há muito respeito. “Mas nas outras casas fico de olho. Na dúvida, não saio de perto”, revela. Marina diz gostar muito da pessoa em que se transformou desde que começou a dançar, há oito anos. Sente-se emocionalmente resolvida, viu a sensualidade aflorar e sabe privilegiar os pontos fortes em seus movimentos.

“Quero dançar até ficar velhinha”, diz a professora Abdalatif. Segundo ela, mesmo com as limitações impostas pelo tempo, todas as alunas conseguem alcançar os objetivos. Não há movimentos impossíveis para as bailarinas. Ela relata que é emocionante ver as mulheres vencendo seus obstáculos e alcançando vitórias a cada dia. Tudo isso sem contar o cuidado que passam a ter com seus modelos de roupas, com os bordados, com a maquiagem, com a saúde e com os relacionamentos interpessoais. “Elas pegam gosto e ninguém segura mais”, brinca.

Na mídia

A dança do ventre não tem nacionalidade. Dizem que seria uma mistura de várias danças. mas o fato é que os movimentos são todos ligados à fertilidade. Alguns tem a capacidade de “descolar” os órgãos, favorecendo o funcionamento do intestino, dos rins e do útero, por exemplo. No Brasil e em vários países do mundo onde foi exibida a novela O Clone (2002), de Gloria Perez, a dança ganhou muitas seguidoras. Shalimar conta que o mercado deu uma guinada depois dessa produção, apesar de a maneira como a dança era apresentada ter causado polêmicas. Mas antes disso os filmes de Hollywood, como Ali Babá e Os 40 Ladrões, já davam evidência à arte.

Foi por influência da mídia que a jornalista Débora Cristina Carrari, de 34 anos, começou a dançar, há cinco. Encantou-se na primeira aula. “Além de ser uma expressão artística muito bonita e sofisticada, tem o poder de transformar a mulher. Não apenas porque ela se sente melhor com ela mesma, mas porque os movimentos dão maior conforto. Assim, a pessoa aceita melhor seu corpo”, detalha. “Eu me sinto mais sensual, mais bonita, meu desempenho sexual melhorou”, confessa. Para Débora, um ponto positivo também é o ambiente da dança, onde as mulheres torcem umas pelas outras. “Nós nos admiramos. Acaba virando uma irmandade.”

O casal Sayed Farouk e Zainab Moustafah, que ficou famoso por participar de um episódio do programa Troca de Família, da TV Record, é habitué nas noites árabes de São Paulo. Eles têm uma loja de tecidos e decoram importantes eventos desse segmento. Descendente de libaneses, Sayed diz que tem “enorme admiração” pela dança do ventre. E orgulha-se do fato de os homens árabes encararem a dança como arte, e por isso terem muito respeito pelas bailarinas. “Não é bem o que acontece com todos os brasileiros. Tem homem que acha que pode ficar olhando com desejo e não sabe tratar a bailarina”, observa.

Zainab, que dá aulas de dança do ventre com finalidade terapêutica, explica que os movimentos são um canal para a força do ser feminino se manifestar – e tornam as mulheres muito férteis. “Já teve alunas que ficaram curadas de mioma (tumor no útero), por exemplo, com a prática da dança”, diz. Outras saíram do estado de depressão. Ela própria, aos 42 anos, já é avó e teve um bebê há poucos meses.