cidadania

Juízo e castigo

Filhos de vítimas da ditadura argentina buscam justiça e fazem-se notar em toda parte

Pablo Busti/afp

Na Argentina, a ditadura e seus assassinos não foram esquecidos. Manifestações pedindo a condenação de torturadores são frequentes

Contra a falta de justiça, a condenação social. Contra o esquecimento, a exposição pública dos fatos. Uma pessoa não descansa enquanto não conhece sua origem. E não se tranquiliza enquanto não vê punidos os que lhe roubaram a família. Esse é o combustível do H.I.J.O.S. (Hijos por la Identidad y la Justicia, contra el Olvido y el Silencio, ou, em português, Filhos pela Identidade e pela Justiça, contra o Esquecimento e o Silêncio), grupo de jovens argentinos que luta pela condenação dos repressores participantes da ditadura do país (1976-1983). Alguns conheceram a violência nos primeiros dias de vida, outros antes mesmo de vir à luz. O que os une não é um partido político ou uma religião, mas a dor causada pela perda dos pais durante o regime.

A força do grupo é grande, há quem fale em uma “geração H.I.J.O.S”. Eles cresceram vendo as ações incansáveis das Mães e das Avós da Praça de Maio, entidades que até hoje lutam contra o desaparecimento de corpos promovido durante a ditadura. Azucena Villafllor, a primeira líder das Mães da Praça de Maio, foi morta pelo regime. Atualmente, há dois grupos de madres: a Linha Fundadora, parceira do H.I.J.O.S., e a Associação Mães da Praça de Maio, famosa pelas marchas realizadas há mais de 1.600 quintas-feiras em frente à Casa Rosada, sede do governo, sempre com lenços brancos na cabeça. Em outra frente, as Avós da Praça de Maio dedicam mais de 30 anos à busca dos bebês raptados pelos militares. Até agora, 96 pessoas recuperaram a identidade.

O H.I.J.O.S. foi fundado em 1995: era o momento em que os filhos de mortos pela ditadura chegavam à faculdade, com consciência política, e davam-se conta de que também eram vítimas do terrorismo de Estado. Para Agustín Cetrangolo, há seis anos na organização, existia outro cenário para a criação do movimento. “Era meados do governo de Carlos Menem, e o menemismo foi o projeto mais claro de aonde queriam chegar as multinacionais, as oligarquias. Os prejuízos se alastravam para os planos político, econômico e cultural”, relata. Além disso, durante o governo de Menem foram editadas duas leis que deram guarida aos militares: a Ponto Final e a Obediência Devida.

Com tudo isso, coube aos filhos levar adiante as ideias dos pais, mas com ajustes importantes. No grupo não há chefes, presidentes, diretores ou líderes. “Não é um lugar em que dizem que você deve fazer isso e aquilo, onde há um responsável pela sua prática, um tutor que o controle. É uma organização horizontal com compromisso de formação dos integrantes para promover uma discussão parelha”, diz Cetrangolo.

Os primeiros meses no grupo não são fáceis: é preciso fazer transbordar histórias doloridas e lidar com assuntos complexos. Muitas vezes a entrada é vetada até que o interessado tenha certeza de que quer envolver-se profundamente. Antes de participar das assembleias (nas noites de sexta-feira, com até seis horas de duração), o postulante convive com integrantes do grupo e realiza tarefas cotidianas. Essas precauções foram motivadas, também, pelo excessivo entra-e-sai, que atrapalhou as ações durante alguns anos: mais de mil pessoas já passaram pelo H.I.J.O.S. de Buenos Aires.

A unidade da capital federal é a mais movimentada, mas não é mais importante que nenhuma das outras espalhadas no território argentino (Paraná, Mar del Plata, Chaco, Córdoba e Rosário) ou que as 16 representações em outros países. Todas mantêm encontros anuais para discutir diretrizes, o que não tira a autonomia de cada uma em relação ao todo. O H.I.J.O.S. de La Plata, por exemplo, editou neste ano um calendário em protesto contra a desaparição de Julio Lopez, que, aos 76 anos, é considerado testemunha-chave no caso do repressor Miguel Etchecolatz e está desaparecido há mais de dois anos. Por isso, o calendário do grupo saiu sem o mês de julho (julio, em espanhol).

Sem justiça, o escrache

Ainda no governo Menem, sem ter como lutar diretamente por justiça, o H.I.J.O.S. deu início aos escraches. Nos primeiros anos, a prática consistia em chamar a atenção para o fato de haver repressores soltos pelas ruas. Integrantes iam até o bairro em que morava um ex-colaborador dos militares e explicavam aos vizinhos quem vivia logo ao lado.

“Num momento em que a sociedade estava paralisada, essa prática serviu para evidenciar que em qualquer bairro havia um promotor das práticas mais atrozes conhecidas pela história. O repúdio a esses personagens serviu para promover a condenação social e, com condenação social, é mais fácil ter justiça”, explica Cetrangolo.

Em 2003, com o governo de Néstor Kirchner, chegaram mudanças importantes para o grupo: a revogação das leis Ponto Final e Obediência Devida abriu espaço para que se pudesse lutar pela condenação efetiva dos militares. Após a fuga de um bombeiro que seria submetido a julgamento (e desapareceu depois de ser “escrachado”), o H.I.J.O.S. viu que era tempo de fazer com que o escrache fosse levado às portas da Justiça.

O problema é que os militares tentavam arrastar os processos pelo máximo de tempo, recorrendo a todas as instâncias penais. “A Câmara de Cassação Penal, última instância antes da Corte Suprema, foi criada durante o menemismo, com juízes claramente identificados com o terrorismo de Estado. A causa ESMA (Escola Superior de Mecânica da Armada), em que se julgavam centenas de repressores, ficou adormecida uns dois anos. Então, fizemos um escrache pesado, e o presidente da Câmara acabou renunciando”, conta Cetrangolo.

Se por um lado ajudou a colocar repressores na cadeia, por outro, o kirchnerismo dividiu os movimentos de luta por direitos humanos. Hebe Bonafini, líder histórica das Mães da Praça de Maio, declarou-se governista, recebendo elogios e críticas. Integrantes de organizações de esquerda passaram a participar do governo, também provocando vaias e aplausos.

Com o H.I.J.O.S. não foi diferente, mas Cetrangolo não vê nada de negativo no fato de seus integrantes comporem órgãos governamentais, desde que as duas atuações fiquem bem separadas. Ele mesmo milita em uma organização kirchnerista, mas afirma que jamais os filhos vão declarar-se oficialistas. “Seria muito difícil forçar o H.I.J.O.S. a tomar algumas posições. Nós temos uma heterogeneidade que nos dá uma riqueza muito grande. Não supomos um governo pela ideologia, analisamos a política de direitos humanos que queremos levar adiante e, se o governo não serve para isso, não serve para o H.I.J.O.S.”

É engano pensar que os julgamentos dos últimos anos esgotam as causas do Juízo e Castigo. Os integrantes admitem que, ainda que leve muitos anos, um dia essa bandeira estará esgotada. No entanto, as consequências da ditadura estão longe de desaparecer.

Para que se formem outras gerações de hijos, os militantes tomam a luta em um sentido mais amplo. “Entendemos que a violação aos direitos humanos ocorre todos os dias e em todo o mundo. Podemos fazer uma ponte entre a ditadura, o genocídio e as relações de direitos humanos de hoje. Nas delegacias e nas prisões há incontáveis casos de tortura”, observa Cetrangolo. 

Sofrimento patrocinado
A ditadura argentina é tida como a mais violenta da América do Sul. Em sete anos, desapareceram 30 mil pessoas. Estima-se que entre 250 e 500 crianças tenham sido raptadas e criadas por gente ligada ao regime. A ideia era evitar que virassem comunistas quando crescessem. Durante a ditadura funcionaram centros de detenção clandestinos que serviam para torturar e matar. Pelo mais famoso, a Escola Superior de Mecânica da Armada (ESMA), passaram mais de 5 mil pessoas. Recentemente, o lugar foi dividido entre organizações sociais e políticas que o transformaram em centros para a exposição e o ensino de arte e literatura.