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Mais um mundial

Brasil, já campeão, se prepara para sediar torneio internacional de futebol. De mesa

josé cordeiro

Lorival jogou futebol de campo antes de se dedicar aos botões, que fabrica em casa e até manda para o exterior há mais de 40 anos

Antes da Copa de 2014 e das Olimpíadas de 2016, o Brasil será sede de mais um evento esportivo internacional: o campeonato mundial de futebol de mesa, em 2012. Para os mais nostálgicos – mas não para os profissionais –, é o velho futebol de botão, modalidade que movimenta esportistas, corações e palhetas (ou batedeiras) por todo o país. A realização do evento foi confirmada em uma reunião realizada em janeiro, mas os detalhes ainda serão definidos – a sede será São Paulo. Em 2009, por sinal, o Brasil ganhou um título mundial.

E é jogo para gente grande, não só para meninos. O músico André Christovam, veterano praticante, gosta de recordar de um jogo disputado anos atrás entre o seu clube, o Maria Zélia, e o Paulistano. Não era a decisão, mas o vencedor praticamente ganharia o campeonato paulista. O adversário vencia por 4 a 3, quando tocou a campainha e ele ainda tinha um chute a gol. “É hollywoodiano”, diz André, que jogava com o Santos de 1962. “Eu tinha certeza que ia fazer o gol. Para não falar ´Pagão´, falei ´9´. Chutei, gaveta, tranquilo, baita festa do Maria Zélia”, recorda o músico, que começou a jogar botão com o pai, na era “pré-estrelão”. No – digamos assim – auge da forma, treinava chutando até 200 bolas, depois que chegava dos ensaios.

Embora jogue menos, André Christovam continua curtindo botão – os filhos Dhaniel, de 8 anos, e Pedro, de 3, dão os primeiros toques na palheta. Mas acha que o espírito original perdeu-se um pouco. “O jogo virou mais um campeonato de tiro ao gol. Basicamente, era para desenvolver a habilidade e fazer amigos. Virou uma coisa tão competitiva que perdeu a camaradagem”, acredita, dando o exemplo dos antigos clássicos envolvendo São Judas, Paulistano e o seu Maria Zélia. “Por mais que fosse bom ganhar dos caras na casa deles e ruim perder em casa, a gente acabava comendo pizza juntos.”

Os botões já foram citados em música por Chico Buarque (Doze Anos), que tempos atrás contou um episódio marcante em sua carreira de esportista. Certa vez, ele foi apresentado ao ex-jogador Formiga, célebre atacante do Santos. Conversaram um pouco e ficaram sem assunto. Chico continuou a encarar Formiga. Não satisfeito, começou a pressionar de leve, com o polegar, a clavícula do ex-jogador, que ficou sem graça. “Então me dei conta de que, pela primeira vez na vida, conversava pessoalmente com um botão. Formiga tinha sido um dos meus melhores botões, apesar de meio oval, um botão de galalite, vermelho”, escreveu.

Referência no meio – André Christovam o chama de “mestre” –, Lorival de Lima começou a fabricar botões há mais de 40 anos. Seus produtos já foram parar no exterior. E ele chegou a intermediar negociações entre clubes e jogadores, de futebol de mesa, claro.

A história começa em 1950, quando, aos 11 anos, Lorival sai de São Bento do Sul (SC) e chega a São Paulo, determinado a tornar-se jogador de futebol (de campo). Por dez anos, mostrou talento no Santos (do Cambuci), Flamengo (da Vila Maria), Botafogo (de Vila Carrão) e até no River Plate (do Brás), passando pelo Vila Teodoro, pelo Parque da Mooca e pelo Sampaio Correia, “o time mais briguento que tinha”, e o Rosa Negra, da favela da Vergueiro, na Vila Mariana.

Era um time formado só por negros. Um dia, ele foi jogar lá pelo Santos do Cambuci e a decisão foi para os pênaltis. Um adversário chegou com um facão de cortar cana e deu o recado: “Branquinho, se a gente perder eu corto o seu pescoço”. O time dele perdeu, mas o pescoço ficou intacto – e Lorival foi “contratado”, tornando-se o primeiro branco do Rosa Negra.

Em 1968, o ferramenteiro Lorival trabalhava na Metalúrgica Rota, no bairro operário do Belenzinho, região central de São Paulo – foi o seu local de trabalho durante 30 anos, até 1990. Um dia, ele viu o filho do dono brincando com “aqueles botõezinhos da Estrela” e teve uma ideia. “Arrume plástico ou acrílico, que eu faço um time de botão para você”, disse ao garoto, que estudava no Colégio São Judas. O time chegou até lá – e o dono da escola encomendou 100 times a Lorival, para dar de presente. “Comprei o torninho e comecei a fazer em casa.” E não parou mais.

Lorival conta que, no início, a Estrela quis comprar a patente, mas ele não aceitou. “Queria fazer artesanal.” Apesar de fazer tanto time durante tanto tempo, ele não joga. O seu negócio sempre foi o futebol de campo. Chegou a passar em peneira no Corinthians, time de coração, mas desistiu. Mas os anos de janela lhe deram um aguçado olhar de técnico. O que diferencia um bom jogador dos demais é a força com que se bate na bolinha, o comprimento dos dedos, o grau de inclinação dos botões e o autocontrole. Palavras do mestre.

paulo pepeAndré Christovam
André Christovam acredita no botão como um jogo para desenvolver habilidades e a camaradagem

Socorro

A peregrinação em busca de seus botões levou Lorival, inclusive, a mudar de cidade. Há mais de dez anos, ele mora em Socorro, município do interior paulista com 35 mil habitantes, a 130 quilômetros da capital. Um de seus clientes, o dono de uma sorveteria centenária, era presença constante na sua oficina do Belenzinho, montada na mesma rua onde ficava a Metalúrgica Rota. De tanto ouvir falar na cidade, um belo dia Lorival resolveu conhecer Socorro. Dez dias depois, estava organizando a mudança. (A propósito, o dono da sorveteria, o Ademar, tem mais de 400 times.)
Socorro é onde mora um tricampeão brasileiro, Marcos Paulo Liparini Zuccato, o Quinho. Foi ele que, no ano passado, na Hungria, tornou-se o primeiro campeão mundial (modalidade 12 toques).

Sim, regra é o que não falta no futebol de mesa. As mais comuns são as de um, três e 12 toques. Na primeira modalidade, também conhecida como “regra baiana”, só é possível dar um toque (no disco) de cada vez. A de três toques (na bolinha de feltro) é mais praticada no Rio, Brasília e Minas Gerais, enquanto a de 12 toques (também com bola de feltro) predomina em São Paulo. As dimensões dos botões, das traves e das mesas também variam conforme o local.

O “passe” de Quinho foi vendido pelo XV de Agosto local ao Palmeiras, em negociação intermediada por Lorival. Ele venceu a resistência de seu Anacleto, pai de Quinho, que recentemente concluiu a faculdade de Educação Física, “patrocinado” pelo novo time (ah, seu Anacleto, dono de uma loja de material esportivo bem no centro da cidade, tem mais de 100 times – e uma foto autografada do goleiro Marcos, do Palmeiras, em cima do balcão, para quem quiser ver). Ou seja, o corintiano Lorival ajudou na transferência da revelação da cidade para o rival Palmeiras.

Aos 22 anos, o campeão mundial Marcos Paulo, o Quinho, ganhou todos os seus títulos até hoje jogando com a Romênia de 1994, que ele guarda com extremo cuidado. “A maioria dos jogos você ganha com a cabeça”, ensina o jovem campeão. Os atacantes da Romênia têm 54 milímetros de diâmetro e os defensores, 60. No botão, diferentemente do futebol, é melhor ter atacante “pequeno”, para passar com mais facilidade pelos zagueiros.

Se no campeonato brasileiro de futebol o então time de Muricy deixou a desejar em 2009, na modalidade 12 toques não teve prá ninguém: o Palmeiras conquistou o tricampeonato nacional. Já o campeão dos três toques, a exemplo do que ocorreu no futebol, foi o Flamengo. E o Rio Branco, de Americana (SP), levou a Copa do Brasil.

Técnico italiano, juiz parcial
Um jogador revelou que havia contratado um “técnico italiano” para dirigir o seu time. Era um boneco importado, estrategicamente colocado no centro da mesa antes do jogo, com os botões em volta, para ouvir as instruções.

Dois Chicos, o Anysio e o Buarque, disputavam uma tensa partida, sob o olhar atento de sua senhoria, o árbitro Vinicius de Moraes. De repente, sob aquele silêncio digno de uma disputa acirrada, o juiz começa a assobiar uma melodia. Aos poucos, os jogadores reconhecem o hino do Politheama, o time de Chico Buarque, que do botão migrou para o futebol society. É claro que os assobios de Vinícius foram motivo de veementes protestos por parte de Chico Anysio, para quem o árbitro demonstrava parcialidade.

Um técnico confidenciou, certa vez, que seus jogadores estavam fora de forma porque haviam passado a noite na boate. “Mas eu já cortei os salários deles”, afirmou, revelando as punições aos indisciplinados atletas botões.