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Mestre dos traços

Ele traduziu o sentido das obras de mitos da MPB, ilustrou causas e sonhos e tornou-se ícone da cultura brasileira. Aos 61 anos, e “sem férias desde os 8”, Elifas Andreato quer viver um pouco mais

paulo pepe

“Ainda no Paraná, lembro-me de fazer com canivete e madeira pequenas esculturas de santos. Tinha alguma habilidade manual. Mas queria mesmo era tocar violão e cantar”

Até a adolescência ele era analfabeto. Foi operário, militante político e professor de artes na Universidade de São Paulo. Nascido há 61 anos no interior do Paraná, de família humilde, Elifas Andreato teve uma trajetória marcada por muita batalha até se tornar um dos mais importantes artistas gráficos do país. As mais de 450 capas de disco que idealizou a partir da década de 1970 – de Pixinguinha, Paulinho da Viola, Martinho da Vila, Chico Buarque, Toquinho e Vinicius, Zeca Pagodinho e tantos outros – contam alguns dos capítulos mais criativos da história da música brasileira.

“Ainda no Paraná, lembro-me de fazer com canivete e madeira pequenas esculturas de santos. Tinha alguma habilidade manual. Mas queria mesmo era tocar violão e cantar”, recorda-se Elifas. O dom para desenho descobriu aos 14 anos, já em São Paulo, quando entrou para a Fiat Lux. Lá conheceu o ofício de torneiro mecânico e, junto com outros companheiros, aprenderia a ler. Nas charges que passou a fazer para o jornal dos operários da fábrica já se rascunhava também o futuro contestador.

Logo começaria a pintar, em quadros, cenas de sua infância pobre. Descoberto pela crítica de arte Marli Medaglia, irmã da cantora Marília, o “menino-prodígio” virou matéria de jornal e apareceu na televisão. Pelo cenário que fez para o cinqüentenário da fábrica, que seria visitada pelos ingleses, Elifas ganhou dinheiro para estudar arte. Passou a peregrinar por pequenos estúdios e agências. Entrou para a Editora Abril em 1967, como estagiário do então diretor de arte Atílio Basquera.

Em dois anos, passou a chefiar a produção de arte de um grupo de fascículos na Abril Cultural. Depois, convidado para realizar o projeto gráfico da revista Placar, se desentendeu com a equipe. “O editor sempre teve o desenhista como um sujeito burro que tem habilidade para desenhar. Então o desenhista é tratado como uma espécie de instrumento para fazer coisas que o editor pensa mas não sabe realizar”, desabafa.

Foi então chamado por Victor Civita, dono da editora, para realizar um dos mais importantes trabalhos de sua carreira – a coleção de fascículos História da Música Popular Brasileira, que teve números dedicados a Cartola, Nelson Cavaquinho, Lupicínio Rodrigues e Pixinguinha. “Foi o que definiu toda a minha carreira, pois realizei um trabalho gráfico com independência e de qualidade. Repercutiu muito. Tive a honra de conviver com Pixinguinha, que foi o personagem do fascículo número 2. Perguntei se havia na música brasileira alguém que pudesse substituir a santíssima trindade – Donga, João da Baiana e ele. Pixinguinha disse ‘não, meu filho, nós somos um poema’. Na hora não entendi, mas depois de fechar o fascículo ficou claro para mim. ‘Esse homem é um poema’ foi a chamada de capa”, destaca o artista.

Elifas passou a conviver com muitos músicos. Da amizade com Paulinho da Viola, o qual entrevistou para um dos fascículos, viria a primeira capa de disco, para Dança da Solidão, de 1972. O trabalho mais elogiado com Paulinho da Viola, no entanto, foi para o LP Nervos de Aço, do ano seguinte. “Ela revolucionou a capa de disco no Brasil, porque anunciava publicamente a separação do Paulinho da mulher. A capa polêmica marcou o aparecimento de um sujeito capaz de conviver com o artista e interpretar sua obra. Tornei-me respeitado, consciente de ser um acessório nunca maior que a obra ali ilustrada”, analisa.

Elifas Andreato também se destacou na imprensa alternativa. Fez o projeto gráfico do jornal Opinião, em 1972, quando integrava a organização de esquerda Ação Popular (AP). “Clandestinamente, fiz o jornal mensal da AP e o Livro Negro da Ditadura Militar, que tem uma caveira com um quepe. Queriam me matar, junto com o Raimundo Pereira e o Carlos Azevedo, como fizeram na chacina da rua Pio XI (onde dirigentes do PCdoB, então clandestino, foram assassinados pelos órgãos de repressão). No Opinião, que era uma publicação de oposição declarada ao regime e não fazia gracinhas como o Pasquim, o que deu mais trabalho foi a censura dentro da redação cortando tudo”, lembra-se.

elifas andreato/reproduçãoEstatuto da Criança e do Adolescente
Ilustração para capa do Estatuto da Criança e do Adolescente distribuído pela Nestlé

Viver mais

Maduro, o artista ganhou projeção internacional. Criou cartazes, cenários e programação visual para peças teatrais. Um dos mais elogiados foi para A Morte de um Caixeiro Viajante, de Arthur Miller, dirigida por Flávio Rangel em 1977 e estrelada por Paulo Autran. Outro cartaz marcante foi o feito para os metalúrgicos do ABC com um homem sucumbido diante de uma placa de “não há vagas”, que vendeu 25 mil exemplares – na época era comum a venda de cartazes com recursos destinados ao fundo de greve, por exemplo.

“Convivendo com os estudantes, nos centros acadêmicos e fazendo meus cartazes, nunca fugi da responsabilidade de desenhar o Brasil daquele momento, o que me tornou muito respeitado principalmente pelos escritores e pelo pessoal do teatro”, lembra-se.

Elifas também dirigiu alguns programas na televisão, como Empório Brasil, apresentado por Rolando Boldrin. Compôs canções com Toquinho baseadas na Declaração dos Direitos da Crianças (Assembléia das Nações Unidas, 1959) e reunidas no premiado álbum Canção de Todas as Crianças (1987). “Em 1979 escrevi uma fabulazinha e traduzi os 10 princípios da declaração em letras de música. Ficou guardado até que eu mostrei para o Toquinho, que musicou. Recebemos da ONU uma carta de reconhecimento de contribuição à humanidade. No Brasil pouca gente se interessou pelo disco, que considero brilhante e me deu imensa felicidade”, acrescenta.

Atualmente Elifas dirige o Almanaque Brasil de Cultura Popular, publicação de bordo da TAM, e nutre novos projetos. Afirma que sua prioridade é “viver um pouco mais” – já que diz trabalhar desde os 8 anos “praticamente sem tirar férias” –, só que não se aquieta: “Quero voltar a estudar desenho e tenho uma porção de projetos engavetados há mais de 25 anos, como uma história que escrevi e fiz músicas com o Tom Zé, chamada Sem Você Não Há, uma fábula que se passa no alfabeto. Preparo um novo disco para as crianças com o Toquinho, Casa do Tempo, e estou fazendo painéis para ilustrar as 23 estrofes do poema do Vinicius de Moraes O Haver”, enumera.

Aos 61 anos, Elifas Andreato é literalmente um ícone da cultura brasileira. E revela que nem a qualidade de sua obra nem o espaço conquistado foram impulsionados pelo talento: “Eu, como muitos companheiros, conquistamos nosso espaço muito mais graças à coragem de desenhar o que a História nos chamou para desenhar”.

elifas andreato/reproduçãocapas
Revolucionário – Elifas fez capas para quase todos os grandes artistas da MPB. Tortura – No cartaz para a peça Mortos Sem Sepultura, Elifas trouxe a público o lado truculento do regime militar. Para disfarçar, colocou um nazista na imagem, já que a trama se passava durante a Segunda Guerra. A censura recolheu o cartaz alegando que “pau-de-arara era invenção brasileira”