educação

Mestres: espécie em extinção

Salvem nossos professores de Matemática, Química, Física, Geografia, História... O desencanto afeta o ensino público, ameaça a preservação da carreira e compromete a educação das gerações futuras

Rodrigo Zanotto

Rosângela, desestimulada, estuda para prestar concurso em outra área do serviço público

Alguns alunos do ensino médio em escolas estaduais da Grande São Paulo tiveram seu final de ano letivo marcado por depoimentos ao Ministério Público. Em outubro, a promotora de Justiça Fernanda Leão de Almeida pediu abertura de inquérito para apurar as causas da falta de professores de diversas disciplinas ao longo de vários meses.

A denúncia foi feita pela organização não-governamental Educação e Cidadania de Afrodescendentes e Carentes (Educafro), mantenedora de cursos pré-vestibulares. “Constatamos que faltam professores em mais de 200 escolas da Grande São Paulo”, diz o frei Davi Raimundo dos Santos, coordenador da entidade, que fez uma pesquisa para entender por que chegam alunos cada vez menos preparados ao cursinho. A falta de aulas chegou ao ponto de, em agosto passado, a Secretaria de Educação instituir por meio de portaria uma espécie de força-tarefa. Escolas sujeitas a não cumprir a carga horária mínima exigida pela lei poderiam funcionar em até três turnos diurnos e seis dias semanais a fim de recuperar o atraso.

Segundo egressos do ensino médio da Escola Estadual Engenheiro Francisco Prestes Maia, em São Bernardo do Campo, ABC Paulista, desde a 8ª série faltam muitos professores. Os alunos ficavam parte do tempo no pátio ou iam para casa mais cedo quase todos os dias. A situação chegou a melhorar mas, no ano passado, voltou a piorar. Turmas do 3º colegial ficaram três meses sem aulas de História, Matemática e Geografia. Mesmo assim, fizeram provas e alguns chegaram a tirar 10. Segundo uma fonte que não quis se identificar, a Escola Estadual Professora Marie Nader Calfat, em Diadema, ficou sem professor de Física durante praticamente todo o ano de 2006.

A carência de professores não se restringe ao estado de São Paulo e, se já afeta o desempenho do ensino hoje, é prenúncio de crise mais grave no futuro se o quadro não for revertido. Uma pesquisa da Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação (CNTE), feita em 2003, ouviu 737.170 profissionais, em dez estados – Alagoas, Espírito Santo, Goiás, Mato Grosso, Minas Gerais, Paraná, Piauí, Rio Grande do Norte, Rio Grande do Sul e Tocantins. Mais da metade da base pesquisada (53%) tem entre 40 a 59 anos de idade e tempo de serviço entre 12 e 18 anos. Ou seja, em pouco mais de uma década – levando-se em conta que a esmagadora maioria é formada por professoras, que podem se aposentar aos 25 anos de serviço –, quase metade do atual contingente de profissionais da educação poderá estar fora da sala de aula. Apenas 3% dos educadores são jovens entre 18 e 24 anos – muito pouco, portanto, para cobrir o desfalque anunciado.

Baseado no censo escolar, um técnico do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira, do Ministério da Educação, estimava, também em 2003, que o déficit de mestres de 5ª a 8ª séries e de ensino médio pode chegar a 700 mil. As projeções são grosseiras porque o censo refere-se aos cargos, e não ao número de profissionais – isso faz diferença porque é comum um mesmo professor ocupar mais de um cargo, como dar aulas em duas escolas. Mas não deixam de ser um alerta. O mesmo levantamento mostra que a demanda é maior por licenciados em Matemática, Física, Química e Biologia.

Carlos Ramiro de Castro, presidente da Apeoesp, o sindicato dos professores da rede estadual de São Paulo, confirma que as disciplinas científicas são mais carentes de pessoal, mas observa que já começam a faltar professores de Geografia. “Preocupa também que a busca por cursos de licenciatura é cada vez menor”, salienta.

Sarah Eleutériofeitosa
Lecionar sempre foi o sonho de Feitosa, mas teve de esquecê-lo em troca de um salário melhor e de uma carga de trabalho humana

Êxodo

Além das aposentadorias e do baixo interesse por cursos de formação para a sala de aula, há outro agravante: o êxodo de docentes para escritórios, laboratórios, estabelecimentos comerciais, repartições públicas e outros setores bem longe do giz e da lousa.

Filha e sobrinha de professores, Rosângela Lucas dá 33 aulas semanais de Matemática numa escola em Santa Bárbara d’Oeste, cidade da região de Campinas (SP). À noite e de manhã. Ganha 1.500 reais por mês e, aos 42 anos, sente-se desestimulada com a falta de valorização da profissão e de condições de trabalho: classes superlotadas, materiais didáticos ultrapassados e falta de tempo para se aperfeiçoar. Por isso, estuda para concursos em outros setores do serviço público. “Existem vagas em tribunais pagando o dobro do que eu ganho para quem tem só até o ensino médio”, diz Rosângela.

Há dez anos, Antonio Feitosa Teles abandonou as aulas. Técnico judiciário do Tribunal Regional do Trabalho, em Recife (PE), esse ex-professor de História de 48 anos ainda guarda saudade da sala de aula. “Lecionar sempre foi meu sonho. Nunca tinha pensado em exercer outra profissão.” O encantamento foi desfeito logo que ingressou no Magistério, aos 20 anos.

“Mesmo dando aulas na rede pública e privada, dia e noite, pagava combustível do carro com cheque pré-datado. Vivia sobrecarregado, cansado e frustrado. Hoje trabalho metade do que trabalhava e ganho de quatro a cinco vezes mais”, conta o ex-professor, que se formou em Direito, acabou de passar na primeira fase do exame da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e se prepara para segunda.

A concorrência com as aulas no ensino superior também é outra ameaça para os níveis básicos. Para o biólogo Carlos Eduardo Amancio, 29 anos, mestrando em Botânica, a escola exige muito e retribui pouco: “O jeito é investir na formação para buscar um lugar na universidade, onde se paga mais”, diz. Depois de lecionar Ciências para alunos de 5ª a 8ª séries durante dois anos, Lagosta, como é conhecido, abandonou o Magistério, que tomava muito do tempo que ele precisava dedicar ao mestrado. “Gosto muito de lecionar, principalmente na rede pública. Mas se for para dar uma aula ruim, sem tempo de preparar, é melhor não dar”, opina. Ele diz que parte do problema poderia ser resolvida se os professores pudessem viver com menos aulas por semana. “Assim, muitos mestrandos ou doutorandos em Química, Física, Biologia ou Matemática poderiam lecionar paralelamente às pesquisas que desenvolvem.”

Paulo pepetabata
Apesar de todos os contras, Tabata quer seguir os passos da mãe, Denise, e ingressar no Magistério

Fio de esperança

O desfalque de professores que saíram ou estão em busca de outras oportunidades não se resolve facilmente. Além da necessidade de mais recursos, o tempo necessário para a qualificação é bem maior que para a formação de técnicos e funcionários escolares. Entre os estudantes de Matemática, Química, Física e Biologia, muitos estão interessados em ingressar no setor industrial ou de serviços. Pedagogos são assediados por outras áreas, até no próprio serviço público.

O secretário de políticas educacionais da CNTE, Heleno Araújo, conta que recentemente saiu um edital para preenchimento de vaga para pedagogo no Tribunal de Justiça de Pernambuco. Salário de 2.200 reais por uma jornada de 30 horas. “Pelo plano de carreira que temos hoje, até quem tem doutorado não consegue ganhar esse salário como professor”, afirma o dirigente.

A Secretaria Estadual de Educação de São Paulo, no entanto, não vê desinteresse dos educadores pelo ofício. Baseado nos três últimos concursos para preencher vagas de professores de 5ª a 8ª série e ensino médio, os chamados PEB II, o órgão diz que aumentou o número de candidatos. Há sete anos, 148.398 disputaram 47 mil vagas, algo próximo de 3 candidatos por vaga. Em 2004, foram 248.302 para 48.314 vagas, média de cinco. E no ano passado, havia quase oito candidatos na disputa para cada um dos 5.620 cargos oferecidos. Física e Química são as disciplinas menos procuradas.

Segundo o frei Davi, da Educafro, 60% dos estudantes carentes que freqüentam o cursinho da entidade pretendem estudar Geografia, História e Pedagogia. O interesse no Magistério, segundo ele, deve-se principalmente a questões de sobrevivência: “Com menos concorrência, fica mais fácil conseguir emprego”.

Apesar do desânimo, ainda existem fios de esperança. A estudante Tabata Christine Correa Sartório, de 17 anos, mesmo tendo enfrentado a falta de professores na Escola Estadual Engenheiro Francisco Prestes Maia, em São Bernardo, não se desencantou com a escola pública. Depois do insucesso no vestibular da USP, passou no curso de Pedagogia numa universidade particular. Ela quer se especializar e dar aulas para crianças com deficiência – como a mãe. “Sei que tem muita gente precisando de mim”, acredita Tabata.

Como enfrentar o desalento
O secretário de Educação Básica do Ministério da Educação (MEC), Francisco das Chagas Fernandes, reconhece que o setor passa por problemas, principalmente pela falta de investimentos por décadas seguidas. Para tentar enfrentá-los, o governo acredita em medidas como o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (Fundeb) e a Universidade Aberta do Brasil.

A emenda que coloca o Fundeb na Constituição foi promulgada no dia 19 de dezembro e aguarda regulamentação. Uma vez implementado, poderá beneficiar 48 milhões de estudantes – da pré-escola ao ensino médio e educação de jovens e adultos. Deve movimentar 43 bilhões de reais no primeiro ano e, em quatro anos, chegar a 56 bilhões. Já a Universidade Aberta, formada por instituições públicas de ensino, levará cursos de nível superior aos municípios brasileiros onde não há faculdades.

Para Cleidimar Barbosa, da Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação, faz diferença para o professor ou aspirante saber que terá oportunidade de se aperfeiçoar. “Com a graduação, quem tem nível médio vai ganhar um pouco mais. Com especialização, aumenta 15%. Haverá outros 15% se fizer mestrado e outros 15% com doutorado. Está longe de ser o ideal, mas já é um começo”, avalia. De acordo com a sindicalista, o piso salarial para todos os professores brasileiros, atualmente em discussão – uma das reivindicações da categoria que ganhou mais força depois da pesquisa que apontou para a falta de professores –, deve ser outro passo em direção ao sonhado resgate da qualidade do ensino público.