urbanismo

Mosaico de contradições

Crescimento desordenado ameaça traçado original de um sonho futurista

Marcel Gautherot/Acervo Instituto Moreira Salles

Operários caminham pelo cerrado ao redor das obras do congresso

Em 1960, quando Brasília foi inaugurada, tudo beirava o novo: o país vivia um sonho desenvolvimentista, o presidente Juscelino Kubitscheck procurava ampliar a economia por meio da interiorização e, para um governo que ansiava fazer o Brasil crescer 50 anos em 5, nada era mais propício do que uma capital com traços ousados, construída de modo a oferecer melhor qualidade de vida para as pessoas. Desde o período das obras, passando pela inauguração e as décadas seguintes, Brasília destacou-se, além da beleza dos seus prédios, por uma área central que insistia em ter jeito cosmopolita e uma região de entorno com características rurais, traduzidas nas cidades-satélites. Passados 50 anos, a realidade é outra. A cidade cresce de uma forma desordenada que ameaça seu formato original e revela, a cada dia, um mosaico de contradições.

Numa de suas visitas a Brasília, poucos anos atrás, seu arquiteto, Oscar Niemeyer, afirmou: “Jogar no tempo foi um pouco perigoso. Depois vem a surpresa, o espaço tem de ser maior, tem de construir anexos”. A declaração do mestre dos traços modernistas é fácil de ser entendida para quem chega à capital e dá uma volta pela Esplanada dos Ministérios, onde se localizam os prédios do Executivo federal. Hoje, quase todos eles contam com passarelas ou caminhos subterrâneos interligados a novas construções que tiveram de ser erguidas, ao longo dos anos, como adaptação ao aumento do número de servidores e da própria estrutura do governo.

O mesmo pode ser observado nos palácios e nas sedes dos principais tribunais superiores. A cidade de concepção moderna, que desde os monumentos mais conhecidos até o formato das quadras residenciais foi moldada de forma a facilitar a vida dos moradores, hoje precisa se adequar às mudanças.

Os números falam por si: Brasília foi construída para abrigar 500 mil pessoas no ano 2000. Em 2010, de acordo com o IBGE, o Distrito Federal tem 2,4 milhões de habitantes – número que ultrapassou, e muito, os planos do urbanista Lúcio Costa. O Congresso Nacional conta agora com 513 parlamentares, entre deputados e senadores – bem acima daquele período (menos de 400) –, e um sem-número de assessores (formais e informais), num movimento diário estimado em cerca de 20 mil pessoas. O prédio do Palácio do Planalto, atualmente em obras, previa pouco mais de 100 servidores em 1960. Hoje, abriga quase 700 assessores da Presidência da República.

A descaracterização também passa pelas quadras residenciais do Plano Piloto. Pensadas de forma a integrar a vida das famílias, próximas a escolas, igrejas e áreas comerciais, as Asas Norte e Sul foram construídas a partir de prédios com um máximo de seis andares e estrutura simples – que garantem ampla visão do horizonte do Planalto Central. Atualmente, vários desses prédios estão com suas frentes gradeadas e pilotis reformados para abrigar salões de festas. Como se não bastasse, muitas construtoras passaram a incorporar um andar a mais em apartamentos de cobertura, como forma de burlar o gabarito previamente definido no plano original de Brasília – gargalo que o governo do Distrito Federal vem tentando frear, mas caminha a passos lentos.

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Projeto original cedeu aos anexos dos ministérios, aos automóveis, à explosão de prédios no Plano Piloto e casas ao redor do lago

Novas satélites

Nas entrequadras, criadas para oferecer comércios locais aos moradores, a situação não é diferente: os “puxadinhos” viraram lugar-comum para abrigar mesas, quiosques e demais complementações de bares e restaurantes. Mas o maior problema que a cidade enfrentou ao longo das últimas décadas foi a questão da invasão de terras em áreas mais próximas. O que levou, primeiro, ao surgimento de mais de 70 favelas – pequenos bolsões de miséria em meio a uma ilha de prosperidade – e resultou na criação de novas cidades-satélites. 

O Distrito Federal tem 29 regiões administrativas. Isso porque, conforme estatísticas não oficiais, na tentativa de transferir a população das favelas para outras áreas, o governo distribuiu cerca de 200 mil lotes de terras públicas entre o final da década de 1980 e toda a década seguinte, o que gerou a construção de novas cidades-satélites (eram 16 nos anos 1970).

A distribuição de lotes terminou atraindo mais pessoas, provenientes de Estados próximos, como Goiás e Minas Gerais, num novo fluxo migratório para a capital do país. A cidade completará 50 anos, no dia 21, contabilizando 387 condomínios ilegais, onde residem cerca de 450 mil pessoas, incluindo muita gente da classe média. As consequências da desorganização são motivo de queixa por parte de moradores que chegaram à cidade ainda crianças e acompanharam todo esse processo.

Gente como o servidor do Ministério da Educação aposentado Antonio Cícero Almeida, de 65 anos. “Vim para Brasília na adolescência e vi a cidade crescer. Meu pai, servidor do Banco do Brasil, foi transferido para cá e trouxe toda a família. No começo tudo era muito distante, inóspito até. Mas hoje não conseguimos sair do Plano Piloto para almoçar numa cidade-satélite como Sobradinho, por exemplo, sem chegar atrasado a um compromisso no começo da tarde. O trânsito ficou impossível. O curioso é que, 15 anos atrás, esse mesmo percurso era feito em poucos minutos”, ressalta.

Uma reclamação que é acompanhada de perto pela professora aposentada Regina Helena Andrade, de 65 anos. Ela foi morar em Brasília aos 19 anos, acompanhando os pais e irmãs. “No início, vivíamos em Taguatinga, e era muito diferente. Tínhamos bastante área livre, um tipo de vida mais tranquilo. E o trânsito não era tão complicado.” 

Outra dificuldade causada pelo crescimento acima do previsto de Brasília se dá porque a ocupação desordenada dessas áreas pôs em risco as nascentes dos rios próximos, o que obriga urbanistas a pensar em novas soluções para o abastecimento de água para as próximas décadas. “Praticamente todos os condomínios rurais agridem de alguma maneira o meio ambiente, seja por estarem próximos às nascentes, seja pela invasão em áreas de proteção ambiental. Não se discute se acabaram com nascentes ou derrubaram muito cerrado. É uma questão grave”, reclamou, em entrevista, o geógrafo e professor aposentado da Universidade de Brasília (UnB) Aldo Paviani, autor do livro Brasília – Moradia e Exclusão.

Uma dessas ocupações prejudicou a nascente do rio São Bartolomeu, tido como estratégico para o Distrito Federal. Inicialmente, estava prevista sua ampliação para garantir o fornecimento de água para a população até o ano 2100. Como tal projeto ficou inviável com o passar dos anos, o “plano B” do governo passou a ser a captação de água a partir da represa de Corumbá IV, localizada em Goiás.

“Brasília sofreu com sua concepção diante do modelo que passou a ser adotado. As intervenções feitas pelas suas diferentes administrações, bem como os planos e normas implementados pelo governo local, prejudicaram o plano de preservação, a qualidade de vida oferecida e o exemplo de cidade sustentável e paisagística que deveria ser”, opinou, durante um fórum de debates, a doutora em Geografia Jane Jucá. “Caso essas práticas continuem, mesmo que nessa invenção de Lúcio Costa se reconheçam a força de seu risco original e a força de sua expressão paisagística, seu plano tenderá a se tornar somente um desenho memorável no papel”, complementou.

Perda de identidade

De acordo com profissionais que avaliam o crescimento da cidade, as mudanças motivaram iniciativas adotadas pela administração desde 1970, tanto no sentido de preservá-la como na procura por novas fórmulas de amenizar esse quadro. Prova disso é que Brasília teve uma sequência de planos estruturais para o seu traçado, e foram criadas alternativas para a classe média fora das áreas residenciais, em locais como Octogonal, Sudoeste e Águas Claras.

Outro alerta, feito pela historiadora Liana Albuquerque, é o fato de essa nova urbanização vir a afetar a identidade do perímetro tombado, ignorando diretrizes do Dossiê Unesco – um conjunto de documentos apresentados à Organização das Nações Unidas para a Ciência, a Educação e a Cultura (Unesco) sobre Brasília, na época em que foi tombada como patrimônio da humanidade, em 1987.

Em junho, um comitê da Unesco retorna para avaliar a situação da cidade. A preocupação dos especialistas é que o péssimo estado de conservação de muitos monumentos prejudique o diagnóstico a ser feito pela entidade. Para se ter uma ideia, entre prédios, espaços e equipamentos públicos de arte, lazer e cultura da cidade, precisam de reformas e restaurações o Museu de Arte Moderna, o Cine Brasília, o Teatro Nacional, a Concha Acústica, o Espaço Cultural Renato Russo e a Igreja Nossa Senhora de Fátima.

Isso sem falar em locais interditados. O Panteão da Liberdade, localizado em frente à Praça dos Três Poderes, por exemplo, está fechado desde abril de 2008 em razão do desabamento de parte do teto de mármore. O Espaço Lúcio Costa é outro monumento que se encontra cheio de infiltrações, e é constantemente citado em jornais e revistas como reduto de usuários de drogas. A Torre de TV e a Rodoviária, alvos de reparos permanentes, continuam com carências em suas estruturas.

“Precisamos fazer algo rápido, pois certamente os membros do comitê não vão gostar de ver o que está ocorrendo”, afirma a museóloga e antropóloga Ione Carvalho, atual subsecretária de Políticas Culturais da Secretaria da Cultura do Distrito Federal. O superintendente do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), Alfredo Gastal, é mais otimista. Ele acredita que, apesar da preocupação com a depredação dos monumentos, Brasília não corre o risco de perder o título de patrimônio da humanidade, por não estar descaracterizada em sua essência. Ele cita os prédios do Palácio do Planalto e do Teatro Nacional, que estão sendo restaurados para o aniversário de 50 anos, assim como a Praça dos Três Poderes. Mas acrescenta que um processo de destruição de Brasília começou quando JK saiu do governo. “Preservar uma cidade ou bem cultural é uma questão política”, frisa.

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Ezechias no Parque Olhos D’Água: pressão preservou nascentes e lazer

Pressão popular

Como tentativa de solucionar alguns dos problemas da cidade, o governo do Distrito Federal tem tocado o projeto do Veículo Leve sobre Trilhos (VLT), cuja proposta é ligar ao aeroporto a avenida W3, que corta as Asas Norte e Sul. Está previsto também um corredor de integração entre linhas de ônibus, no percurso entre o Plano Piloto e a cidade-satélite do Gama.

Outra novidade boa nessa preocupação em preservar a cidade é a ação da própria comunidade, por meio de associação de moradores e campanhas de mobilização. Foi com iniciativas do tipo que um grupo de moradores das Superquadras 413 e 414 Norte conseguiu manter o Parque Olhos D’Água, localizado no final da Asa Norte. Anteriormente abandonado, o lugar é fruto do esforço dessas pessoas em lutar pela área e pela construção do parque, numa região de nascentes que corria o risco de ser aterrada e dar vez a novos edifícios.

Distribuído em 21 hectares de área verde, cortados por uma pista de cooper de 2.100 metros e várias trilhas menores que percorrem o cerrado e a mata, em meio a uma lagoa, o parque é considerado exemplo de perseverança dos brasilienses. “Já tivemos muitos problemas com invasões, usuários de drogas e traficantes, mas isso é coisa do passado”, afirma o administrador, Ezechias Vasconcelos, acrescentando que o local “só resistiu porque a pressão da sociedade e a união dos moradores foram grandes”.

Experiência igualmente positiva é o programa “Adote uma Nascente”, do Instituto Brasília Ambiental (Ibram). Criado em 2002, sua meta é mudar a feição das quase 200 nascentes localizadas no Distrito Federal. Assim, empresas e grupos podem se inscrever como “adotantes” e ficar responsáveis pela proteção e recuperação das nascentes. Podem optar ainda por ser padrinhos e, dessa forma, apenas colaborar com os adotantes na execução das ações. 

A questão conta com o apoio dos moradores, num movimento que envolve de profissionais liberais aos antigos pioneiros, aqueles que foram a Brasília para trabalhar a construção da cidade e terminaram ficando de vez, criando raízes. Como Francisco das Chagas Ribeiro. Ele chegou em 1958. Trabalhou como carpinteiro na construção do Palácio do Itamaraty e das casas do Cruzeiro. “A vinda para Brasília arrumou a vida de muita gente, mas o caminho foi longo”, diz.

Situação semelhante é a de Luiz Pacífico dos Santos, aposentado da construção civil. “Vim para cá em 1958 para começar a vida, carreguei muito tijolo para ajudar a erguer o prédio do Congresso Nacional. No começo, achávamos que a cidade não ficaria pronta a tempo, de tanta coisa que tinha para ser feita. É estranho ver como ela está hoje”, afirma com jeito simples, ainda confuso, ao perceber que a capital erguida com a ajuda de suas mãos não apenas cresceu como se transformou.