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Música no sangue

Dos instrumentos que aprendeu a fabricar, Jonas tirou as notas de um futuro melhor para seus filhos e sua comunidade

rodrigo queiroz

Difícil acreditar na história do carioca Jonas Caldas. Aos 46 anos, ele mesmo diz custar a se convencer da própria trajetória e da de sua família. A mãe, Marly, era doméstica na casa do ator Ivon Curi. Ao saber que a empregada tinha quatro filhos e não dava conta de cuidar deles, Curi ajudou-a a conseguir vagas na antiga Funabem (Fundação Nacional do Bem-Estar do Menor) para todos eles. Jonas foi encaminhado, sozinho, para a unidade de Quintino, no subúrbio carioca.

Nos dias de hoje, provavelmente não teria tido essa sorte. Na Fundação, aprendeu a construir seu futuro: teve aulas de música e fez curso técnico de marcenaria. Na hora do recreio, aproveitava para pôr o aprendizado em prática e construía violões. “Apesar de ter dificuldade para tocar, aprendi a fazer violão sozinho, mais ou menos aos 13 anos. Só dois anos depois, numa parceria entre a Funabem e a Funarte, é que começou a ter um curso de luthierie (a arte de fabricar e consertar instrumentos leves de corda) e os professores me indicaram. Na época eu nem sabia o que era isso”, ri.

Passou quase 13 anos dentro da instituição e, quando saiu, foi convidado a trabalhar na oficina do luthier Joaquim Pinheiro, recebendo 25% do valor dos instrumentos que fazia. Percebeu ter jeito para a coisa e mudou-se para a Grota do Surucucu, em Niterói, onde abriu sua oficina. Um dia, um rapaz comprou uma viola sua e a levou para uma apresentação na Alemanha, fato que rendeu a Jonas o convite para aprimorar a técnica na oficina de um luthier alemão, em Stuttgart. “Foi uma euforia só. Fiquei um ano lá e aprendi muito.”

Quando voltou, reabriu seu comércio na Grota e percebeu que a atividade era uma referência também para os moradores, ainda um tanto distantes do mundo da música erudita. Mas Jonas logo viu o ambiente mudar. A comunidade antes carente e tranquila “evoluiu” para uma favela com tráfico e violência. “O público que lida com violinos em geral é de outro nível social. Logo eles começaram a ficar com medo de vir na minha oficina e tive de mudar para um bairro próximo.”

Mas foi na Grota que ele se casou e criou os cinco filhos. Nas horas de descanso, quando ele pegava o violino para estudar, as crianças ficavam de olho. Era só largar os instrumentos e lá estavam elas se familiarizando com o que era o ganha-pão do pai. Não demorou para Jonas e a mulher perceberem que aquilo não era só brincadeira e incentivarem os gêmeos Walter e Wagner a ter aulas de música.

Mas como pagar aulas tão caras? O luthier resolveu o problema com uma proposta à dona de uma escola de música da cidade: ele consertaria os instrumentos em troca das aulas para os dois filhos. Mais ou menos ao mesmo tempo, surgia um movimento que mudaria também a cara da comunidade.

Ruas eruditas

A professora Otavia Selles, que já desenvolvia atividades de reforço escolar, horta, costura e artesanato com as crianças da Grota, incentivou seu filho, o músico Márcio Selles, a incrementar o trabalho com aulas de flauta. Os gêmeos de Jonas começaram também a frequentar as aulas na comunidade, onde ainda reinava um clima de estranhamento com a novidade. “O bairro era dividido em três, o começo, o meio e o fim, e as crianças do meio não se davam com as do começo, e assim por diante. Logo a música unificou tudo e não tinha mais brigas”, lembra Jonas, que passou a conviver com as notas para além das paredes de sua casa e oficina.

As ruas da Grota do Surucucu ainda não tinham asfalto, mas já estavam invadidas pela música clássica – e não demorou muito para surgir a alegre movimentação de crianças e adolescentes com instrumentos nas costas. Assim se formou a Orquestra de Cordas da Grota.

Márcio garante que os benefícios ultrapassaram os limites do bairro: “Como todos que frequentam as aulas de música precisam ter bom aproveitamento escolar, isso motivou crianças e adolescentes a estudar. Hoje são mais de 200 alunos, e eles não vão mais ao teatro acanhados, exercitam a cidadania plena”.

A orquestra já se apresentou em Portugal, Estados Unidos, Nicarágua, El Salvador, Panamá, Costa Rica e Belize. Nove de seus integrantes estão cursando faculdade. Entre eles, os gêmeos Wagner e Walter, de 24 anos, que no concerto em Nova York receberam um convite para estudar no estado de Iowa. “Depois da nossa performance, mostramos interesse em estudar aqui e o presidente da Universidade de Iowa do Norte nos convidou. A gente não recebe dinheiro nenhum. Eles pagam nossa alimentação, estadia, lavanderia e os estudos, cerca de US$ 60 mil por ano para meu irmão e eu”, contou Wagner, por e-mail. Ele e o irmão relataram sua história no documentário Contratempo, filme de estreia de Malu Mader na direção, na companhia de Mini Kert.

Jonas também não imaginava que o futuro – e o exemplo de casa – seria tão generoso com a família. Além dos gêmeos, o filho Felipe, de 22 anos, está se profissionalizando, faz faculdade de Música, toca em eventos e dá aula no projeto de Márcio Selles. “Meus pais eram analfabetos e alcoólatras. Não imaginava que minha família ia dar essa guinada. Meus outros filhos, Carol, de 7 anos, e Bruno, de 20, também estudam música, mas vou sugerir que aprendam outra profissão além dessa, porque no Brasil existe dificuldade nessa área. Mas está no sangue: o filho do Wagner, de 3 anos, já quer aprender violino”, diverte-se o luthier.

Assim como o músico Márcio Selles, que diz nunca ter perdido um aluno para a criminalidade, Jonas Caldas acredita na música como potencializadora de inclusão: “Ela é musculação para o cérebro, mexe com a cultura das pessoas e dá estrutura para conseguirem fazer qualquer outra coisa, mesmo que não seja música. Por isso você nunca vai vê-los cair na criminalidade”.