entrevista

Nossa luta é pelas mesmas oportunidades

Ministra Nilcéa Freire garante que 2010 será marcado pela busca de tratamento igual para homens e mulheres no mundo do trabalho e por maior participação feminina nos governos

Augusto Coelho

A discriminação, o preconceito e o machismo levam a uma cultura de divisão do trabalho que reconhece no homem o provedor e na mulher a cuidadora

Apesar de representarem cerca de 50% da força de trabalho, as mulheres ainda não têm as mesmas condições oferecidas aos homens. Essa situação constrangedora é provocada pela discriminação, o preconceito e o machismo, que levam a uma cultura que reconhece no homem o provedor e na mulher a cuidadora, segundo a ministra Nilcéa Freire, à frente da Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres (SPM) desde janeiro de 2004.

O combate a essa realidade e a busca por igualdade de oportunidades e tratamento para as mulheres no mundo do trabalho são as prioridades deste ano na SPM, com ações intensificadas a partir do dia 8 de março, Dia Internacional da Mulher. A ministra recebeu a reportagem em sua sala de trabalho no Pavilhão de Metas, nas proximidades do Palácio do Planalto, em Brasília. Ali, tem se debruçado na elaboração de políticas públicas para mulheres de todo o país. Nesse esforço, depara com dramas persistentes em todo o país, como a violência doméstica.

A resposta a esses desafios tem sido a interlocução e a mobilização social. Como articuladora das políticas públicas, a ministra dialoga com a sociedade civil, o movimento de mulheres e os sindicatos. As dificuldades nesse diálogo, no entanto, ainda são significativas. Além da estrutura machista das empresas e instituições, existe a resistência das igrejas e da bancada religiosa no Congresso.

Ex-militante do movimento estudantil e ex-reitora da Universidade Estadual do Rio de Janeiro, a ministra defende a primeira versão do Programa Nacional de Direitos Humanos, que prevê a revisão legal do aborto e a manutenção das ações afirmativas. Diante das reações contrárias ao programa, ela lembra que o debate precisa ser apropriado pela sociedade neste ano eleitoral, seja para discutir os temas mais polêmicos durante as campanhas, seja para definir candidatos ou candidatas. “Vamos pensar em ter um Congresso menos conservador, menos impregnado do fundamentalismo religioso. Vamos pensar em eleger mais mulheres.”

Que tipo de ação a Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres fará no próximo 8 de Março?
A cada mês de março fazemos uma reflexão que resulta em uma política pública nova. Foi assim que lançamos em 2004 o Pacto Nacional pela Redução da Morte Materna e Neonatal. Em 2005, ampliamos o Programa de Agricultura Familiar para Mulheres e o Programa de Documentação para a Trabalhadora Rural. Já em 2006 tratamos a questão das trabalhadoras domésticas e, no ano passado, a ampliação do espaço das mulheres no poder. A cada 8 de março temos nos pautado segundo os eixos do Plano Nacional de Políticas para as Mulheres. Agora, nosso eixo central é a igualdade de oportunidades e tratamento no mundo do trabalho. A situação avançou muito no Brasil e no mundo, mas ainda há fronteiras a serem superadas. Hoje as mulheres representam cerca de 50% da força de trabalho, no entanto, não têm as mesmas condições no trabalho.

A CUT relançou campanha pela ratificação da Convenção 156. Os esforços da secretaria irão nesse sentido?

A Convenção 156 trata da questão de trabalhadores e trabalhadoras com responsabilidades familiares. Ela ainda não foi ratificada pelo Brasil. O governo criou em 2005 a Comissão de Igualdade de Oportunidades para Gênero e Raça no âmbito do Ministério do Trabalho. Participaram, além da nossa secretaria, a Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial e o próprio ministério, com representação de trabalhadores e empresários. Empregadores resistiam à ratificação. Por decisão da maioria, governos e empregados, foi solicitado ao Ministério do Trabalho que encaminhasse a convenção ao Congresso Nacional, e isso está sendo feito agora. Ela põe em discussão como se pode conciliar o trabalho com as tarefas ligadas à reprodução humana, cuidar dos filhos, dos idosos, dos enfermos, dos afazeres domésticos.

Essa é uma prioridade para o governo?
Sim, e é uma estratégia também. Queremos a ratificação. Vamos trabalhar para que rapidamente ela chegue e tramite no Congresso. Este é o ano da igualdade no trabalho para nós porque constatamos na Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio que a situação das mulheres quanto à desigualdade no trabalho melhorou, mas o ritmo dessa melhora não é o esperado. Portanto, é preciso acelerar. Fizemos um cálculo, e se deixarmos as coisas seguirem seu caminho natural vamos levar 87 anos para que homens e mulheres recebam remunerações médias iguais. Encaminhamos ao Congresso um projeto de lei sobre igualdade no mundo do trabalho, incorporado pela senadora Serys Slhessarenko (PT-MT), que vai passar agora no Senado e depois vai para votação na Câmara.

O que faz com que seja tão lento o processo de garantia de direitos para as mulheres no mercado de trabalho?
É lento porque é a prova mais cabal de que ainda existe discriminação contra as mulheres. Essa discriminação, o preconceito e o machismo levam a uma cultura de divisão do trabalho que reconhece no homem o provedor e na mulher a cuidadora. No entanto, homens e mulheres estão no mercado buscando prover a sua família, buscando igualmente o seu sustento. Mas só as mulheres se encarregam de todos os cuidados. Isso faz com que tenham dificuldade na progressão da carreira. Existe a crença de que são boas para ser professoras, enfermeiras, para prestar serviços; e os homens, para tarefas de raciocínio, de liderança. Por outro lado, como a mulher ainda hoje se incumbe de tudo, isso também lhe traz dificuldades quando se trata de  assumir determinadas posições. E o próprio mercado diz: não vou contratar uma mulher porque ela não vai poder viajar, tem filhos – e nem chega a oferecer a oportunidade para que ela mesma tome a decisão.

Com isso, a diferença salarial e de ascensão na carreira se acentua?
Exatamente. Quando olhamos para a base das carreiras, principalmente quando o ingresso se dá por concurso público, vemos um número grande ou até maior de mulheres. Mas, à medida que se avança até o topo da carreira, percebe-se a diminuição do número de mulheres nos cargos de chefia, nos cargos de tomada de decisão nas empresas. Isso provoca uma diferença na remuneração média, com as mulheres chegando a receber cerca de 70% do salário médio dos homens.

Como avalia os oito anos de governo Lula?
Muito positivos. Sabemos que o objetivo central da secretaria, que é a igualdade entre homens e mulheres, a eliminação dos preconceitos e da discriminação, não é tarefa fácil. Isso não é tarefa para um governo, isso é tarefa para várias gerações. Mas entendemos que nesse período nos aproximamos mais desse objetivo. Criamos as condições para a implementação de políticas públicas e a incorporação das demandas das mulheres nas políticas de uma maneira geral. Isso vai gerando um ambiente favorável à redução das desigualdades. Algumas discussões foram postas em foco pela sociedade, e isso ajuda muito, como a questão da Lei Maria da Penha.

Mas a implementação da Lei Maria da Penha, considerada um marco, ainda enfrenta desafios, não?
Essa lei, como outra qualquer, precisa de um tempo para ser completamente incorporada tanto pela sociedade quanto pelo aparato do Estado. Essa incorporação é necessária para que se faça a correta aplicação. A lei preconiza a criação, por exemplo, de novas estruturas, como os juizados especializados na violência contra a mulher. Essas estruturas não existiam antes. Portanto, é natural que haja um tempo para a instalação completa desses juizados. Hoje ainda temos dois estados que não implantaram juizados especializados.

Na prática, o que deve ainda ser feito?
Esse trabalho conjunto significa implantar serviços especializados para o atendimento das mulheres em situação de violência, capacitar os agentes públicos para a aplicação correta da lei e para o entendimento dessa situação complexa que é a violência contra as mulheres. Também é fundamental a realização de campanhas sistemáticas, educativas, que coloquem para sociedade de uma maneira geral a necessidade de uma mudança cultural. A violência contra a mulher não é uma violência como outra qualquer. Ela se baseia nessa desigualdade entre homens e mulheres e precisa ser olhada segundo uma outra ótica.

Nesse sentido, quais são as principais dificuldades no diálogo com o Judiciário?
As dificuldades foram diminuindo. Havia inicialmente uma dificuldade de aceitação da própria lei. Não em todas as instâncias, nem em todos os estados, mas em juizados de primeira instância, com juízes que alegavam a inconstitucionalidade da lei. Mas isso vem diminuindo por conta do trabalho feito com os sistemas de Justiça. Este ano vamos fazer a Quarta Jornada da Lei Maria da Penha, uma colaboração entre o Ministério da Justiça, a secretaria e o Conselho Nacional de Justiça. Juízes de todo o país são convidados a discutir a implementação e a aplicação da lei. Por meio das jornadas, foi criado o Fórum Nacional de Juízes de Violência Doméstica e Familiar, que também tem contribuído para a melhor aplicação da lei. À medida que as políticas avançam, vão sendo quebradas as resistências relativas especificamente à Lei Maria da Penha, que se devem ao machismo, à cultura de desigualdade que existe na sociedade brasileira, também presente no Judiciário.

No diálogo com as empresas, além do machismo, existe resistência de ordem financeira para a promoção da igualdade de gênero?
Sim, essas questões decorrem da estrutura desigual e do machismo. O cálculo financeiro que se faz muitas vezes não considera outras variáveis. Há determinados mitos no interior das empresas sobre o custo do trabalho feminino e sobre o custo da promoção do tratamento igual. Há que desconstruir esses mitos e mostrar que, quando se tem igualdade de oportunidades e tratamento, o rendimento no trabalho é muito maior.

AUGUSTO COELHOluta2
O aborto é uma questão de saúde pública. As mulheres não devem ficar com essa conta, sobretudo as pobres, que acabam pagando com suas próprias vidas

Ainda é possível avançar na discussão sobre o aborto, que frustra o movimento de mulheres?
No que diz respeito ao aborto temos uma questão específica agora, que é o 3º Programa Nacional de Direitos Humanos. Quando falamos desse assunto, é importante recuperar a história. Em 2004, a Conferência Nacional de Política das Mulheres deliberou pela revisão da legislação punitiva com relação ao aborto no país. Criamos uma comissão tripartite que trabalhou durante meses, fez um relatório com uma proposta de projeto de lei, que foi entregue ao Congresso Nacional. Portanto, o governo fez a sua parte, criou a comissão, entregou o trabalho da comissão tripartite ao Congresso Nacional. No entanto, mudou a legislatura e nós deparamos com um novo Congresso. Os avanços e recuos ou os não avanços se dão em função das conjunturas. Não dependem só da vontade dos indivíduos. Temos uma bancada que se autointitula a bancada pela vida, que faz demonstrações no âmbito do Congresso Nacional de fundamentalismo religioso.

Qual a força dessa bancada conservadora?

Essa bancada tem 199 deputados e deputadas e, com essa força, conseguiram pôr em pauta na Comissão de Seguridade Social e Família o projeto de lei que tratava da questão da discriminalização do aborto, e esse projeto foi derrotado na comissão. Então há um histórico, uma conjuntura muito desfavorável do ponto de vista da composição do Congresso, onde esse tema finalmente tem de ser deliberado. É o Congresso que deve ou que tem a atribuição de rever essa legislação que está no Código Penal de 1940.

Como o governo pode agir diante dessa conjuntura?
Eu tenho me manifestado, o ministro Temporão (José Gomes, da Saúde) também. Lutamos no Congresso Nacional, estivemos lá em audiências públicas, discutindo essa questão. No entanto, o ambiente se tornou absolutamente desfavorável a que se promovesse com a sociedade uma discussão qualificada sobre o aborto. Nos manifestamos por meio de artigos em jornais de grande circulação quando cerca de 10 mil mulheres corriam o risco de ser processadas em Mato Grosso do Sul, depois que uma clínica de aborto foi estourada pela polícia. E nos manifestamos agora com uma posição clara: entendemos o aborto como questão de saúde pública, que as mulheres não devem pagar essa conta, sobretudo as mulheres pobres, que acabam pagando com a própria vida essa falta de discussão.

Em 2010, ano eleitoral, é possível avançar nesse e em outros temas fundamentais para as mulheres?
Não é porque é ano eleitoral, não é porque existe uma candidatura feminina competitiva. A situação é que a correlação de forças dentro do Congresso Nacional é absolutamente desfavorável desde o início dessa legislatura. E se a sociedade quiser mudar a legislação ela terá de mudar e influenciar a mudança dessa correlação de forças dentro do Congresso Nacional. Temos eleições este ano, vamos pensar nisso, em ter um Congresso menos conservador, menos impregnado do  fundamentalismo religioso, vamos pensar em eleger mais mulheres. Somos apenas 8% de mulheres no Congresso Nacional. Se queremos avanços devemos fazer com que a composição do Congresso seja mais avançada.

Em que outras questões se poderia avançar com um Congresso mais progressista?
Não é só a questão do aborto que tem dificuldade de tramitação. Outras questões ligadas aos direitos dos homossexuais tiveram dificuldades de tramitação, como a Lei de Adoção. Na reformulação da lei, houve um bloqueio por parte da bancada religiosa a um artigo que tratava da possibilidade de adoção por casais homoafetivos. Essa posição está atrás, inclusive, de decisões da Justiça, que já tem concedido a adoção a casais do mesmo sexo. Acho que seria um equívoco olharmos para a discussão do aborto, dos direitos dos homossexuais, da promoção da igualdade racial sem olharmos para essa conjuntura no Congresso Nacional. Se não fizermos isso, não vamos atuar para mudar. E a gente só muda com o voto.

Como avalia a representação da mulher na mídia?
Temos trabalhado intensamente a representação da mulher na mídia. Fizemos em 2009 o 6º Seminário Mulher e Mídia. Foram dois dias de preparação para a Conferência Nacional de Comunicação, e esse foi um tema central. Muitas meninas estão sofrendo problemas de saúde por perseguir modelos inatingíveis de beleza. Há que criar mecanismos para coibir exageros e fazer essa discussão na sociedade. Temos feito esforços com as escolas para que meninos e meninas tenham outros valores. É difícil fazer isso quando você já trabalha com pessoas adultas. Portanto, desenvolvemos o Programa Gênero e Diversidade nas escolas. Entre 2005 e 2010, nossa meta é capacitar 30 mil professores da rede pública de ensino. As universidades se candidatam para replicar esses cursos para as escolas. Buscamos orientar os professores a lidar com questões como desigualdade de gênero, orientação sexual, igualdade racial. Temos alcançado um sucesso enorme.