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Notas que choram

Primeira música popular urbana típica do Brasil, com história contada em discos, filmes e rodas musicais, o choro não pára de ganhar adeptos. Em clubes, bares e praças onde é personagem, não falta público

Augusto Coelho

Para historiadores, tudo começou com a chegada da família real portuguesa ao Brasil, há 200 anos. Junto com a corte vieram da Europa instrumentos como piano, clarinete, violão, saxofone, bandolim. E ritmos como valsa, mazurca, modinha, xote e polca. A mistura deu em choro. Com a reforma urbana e o fim do tráfico de escravos surgiu, nos subúrbios da então capital federal, o Rio de Janeiro, uma nova classe social, formada por funcionários públicos, instrumentistas de bandas militares e pequenos comerciantes. É nesse segmento que nasceriam conjuntos dados a improvisar os novos ritmos, músicos logo apelidados de chorões. “Foi a primeira linguagem instrumental desenvolvida aqui. O nome me parece que vem da maneira chorada de tocar: a forma como os músicos populares ‘amoleciam’ as polcas européias. Daí serem chamados de chorões”, explica Henrique Cazes, autor do livro Choro – Do Quintal ao Municipal.

Outra hipótese é o termo derivar de um tipo de baile que reunia escravos das fazendas, o “xolo”, que aos poucos teve a pronúncia variada para “xoro”. Pode ser originário, ainda, da sensação de melancolia que era transmitida pelo som do violão. O que é consenso é que um dos precursores foi o flautista Joaquim Antônio da Silva Calado. Por volta de 1870, o músico passou a ser acompanhado de seu conjunto, formado por dois violões e um cavaquinho improvisando em torno do som da flauta. Surgia o conjunto regional, geralmente composto por instrumentos de solo, como flauta, bandolim e cavaquinho, responsáveis pela execução da melodia, e outros de improviso e acompanhamento, como o violão de sete cordas.

De lá para cá, despontaram outros grandes talentos do choro, como Ernesto Nazareth, Anacleto de Medeiros, Pixinguinha, Jacob do Bandolim, Radamés Gnattali e Chiquinha Gonzaga. Depois da maestrina e compositora, outras mulheres também brilharam e brilham no ritmo, caso de Tia Amélia, Ludovina Villas Boas, Maria Teresa Madureira, Simone Guimarães, Maria do Céu, Zélia Duncan, Sueli Costa, Lucinha Lins e Luciana Rabello.

A música brasileira tem clássicos e obras-primas do estilo, como Tico-Tico no Fubá, de Zequinha de Abreu, Brasileirinho, de Waldir Azevedo, Noites Cariocas, de Jacob do Bandolim, Carinhoso, de Pixinguinha, Choro Bandido, de Chico Buarque, Choro Chorado para Paulinho Nogueira, de Toquinho, e Choro Negro, de Paulinho da Viola. “O choro continua atraindo novas gerações, pois dá ao músico oportunidade de brilhar, improvisar, mostrar serviço”, observa Cazes, que formou o tradicional grupo instrumental Camerata Carioca.

O Clube do Choro

Henrique Lima Santos Filho era Jimi Reco, integrante da banda de rock Carência Afetiva até 1976, quando ouviu Moraes Moreira tocar Noites Cariocas. “Jamais tinha escutado um choro, que está na base da música brasileira, é anterior ao samba e faz o nosso perfil como povo rico e criativo. Encontrei LPs e arrumei um bandolim. Aprendi ouvindo os discos de Jacob. Diante das dificuldades com a afinação e as harmonias complexas, meti na cabeça que um dia abriria uma escola”, lembra Henrique Lima. E tornou-se o Reco do Bandolim, desde 1993 presidente do Clube do Choro de Brasília, um dos primeiros do país, ao lado dos de Recife, São Paulo, Belo Horizonte, Goiânia e Porto Alegre, que, em sua maioria, não existem mais.

O clube foi fundado em 1977 pelo flautista Bide, o percussionista Pernambuco do Pandeiro, o violonista Hamilton Costa e o saxofonista Nilo Costa. Passou por momentos delicados por não dispor de boas condições para a apresentação dos músicos e para a platéia, ficou fechado de 1983 a 1993 e chegou a se tornar abrigo de sem-teto.

Enquanto procurava patrocínios, Reco do Bandolim viu algum entusiasmo dos chorões de Brasília. Aproveitou o público incipiente e teve a idéia de homenagear a cada ano um mestre. Começou em 1997, com Pixinguinha, cujo nascimento então completaria 100 anos, seguido de Jacob do Bandolim, Waldyr Azevedo, Chiquinha Gonzaga, Garoto, Ary Barroso. O resultado: nos últimos dez anos, cerca de 800 artistas, como Altamiro Carrilho, Paulo Moura, Cristóvão Bastos e Silvério Pontes, se apresentaram no clube para mais de 450 mil pessoas.

“Paralelamente, iniciei a luta para criar a primeira escola de choro. Lembrei meu início, perdido com um bandolim nas mãos. Comparado à forma como nos Estados Unidos escolas e universidades cultivam e ensinam blues, country, rock e jazz, atraindo talentos de todo o mundo e gerando prestígio, o choro continuava anônimo em sua terra natal”, avalia Reco. A Escola Brasileira de Choro Raphael Rabello (violonista carioca e “militante” do Clube do Choro falecido em 1995) foi inaugurada em 1998. Tem mais de 400 alunos matriculados, que pagam R$ 70 de mensalidade, e outros 700 em lista de espera. Em breve, deve ganhar uma sede de 2 mil metros quadrados projetada por Oscar Niemeyer, próxima de seu atual endereço, no Eixo Monumental.

“Em 2007, o Clube do Choro assinou um Acordo de Cooperação Científica e Tecnológica com a Universidade de Brasília (UnB) para criar, no nível de graduação do Departamento de Música, o curso de extensão de choro. A iniciativa abre as portas da academia, normalmente restrita à música erudita, para a música popular”, comemora Reco, que ainda tem programa dedicado ao choro na Rádio Nacional FM e trabalha com a UnB na criação de um museu e um centro de referência do choro, com documentos, vídeos, fotos e partituras. O Clube do Choro está prestes a se tornar Patrimônio Cultural Imaterial de Brasília.

Sampa, reduto do choro

São Paulo, mesmo não tendo um clube como o de Brasília, respira o ritmo, reunindo chorões da nova e da velha guarda em inúmeras rodas, semanalmente. “A cidade é um dos maiores redutos de choro do Brasil. Embora muitas pessoas não saibam, não esteja na mídia e não tenha ajuda do governo, há aqui vários grupos de jovens e de pessoas mais velhas”, destaca Izaías Bueno de Almeida, o Izaías do Bandolim, que realiza uma tradicional roda de choro com seu grupo todas as sextas-feiras, em Perdizes. Outro ponto tradicional do choro paulistano é a Praça Benedito Calixto, em Pinheiros, aos sábados.

Aos 10 anos, Izaías começou a tocar bandolim e, aos 15, já integrava grupos regionais. O sucesso teve início no rádio e na televisão, onde seria visto em programas da TV Record, como O Fino da Bossa e Bossaudade. Atualmente é o representante em São Paulo do Instituto Jacob do Bandolim, que busca preservar e criar meios de disponibilizar ao público o acervo de um dos melhores músicos instrumentais brasileiros de todos os tempos. Izaías é um ativista da recuperação e da proteção da memória do choro. Ao lado de seu irmão Israel, lançou um box, O Choro e Sua História, em que conta em três CDs a trajetória do ritmo de 1870 até os dias de hoje. “Como sou pesquisador, sempre tive vontade de resgatar compositores importantes mas não tão conhecidos como Jacob e Pixinguinha”, destaca o músico.

Trabalho semelhante ao de Izaías do Bandolim é realizado por Henrique Cazes, que até adapta sucessos da música mundial ao choro. “Não é um ritmo, mas uma maneira de tocar. Já traduzi música de vários países para essa linguagem. Como é um dialeto cheio de possibilidades, pode ser aplicado aos mais diferentes tipos de música”, ensina. “São caminhos para mostrar a riqueza dessa música a quem ainda não a conhece”, assegura Cazes, um dos mais aclamados e respeitados chorões da nova geração. O melhor exemplo é Beatles’n’Choro, coleção com quatro CDs (2002-2004), divididos com Carlos Malta, Hamilton de Holanda, Paulo Sérgio Santos, Rildo Hora e Marcello Gonçalves, inspirado em trabalho semelhante realizado por Izaías do Bandolim durante a década de 1960.

Com Marcello Gonçalves, Henrique Cazes também realizou Pixinguinha de Bolso (2004) e Vamos Acabar com o Baile (2007), este dedicado às composições de Garoto (Aníbal Augusto Sardinha, 1915-1955, cujo clássico Gente Humilde receberia anos depois de sua morte letra de Vinicius de Morais e Chico Buarque). Seu trabalho mais recente é um CD duplo Uma História do Choro, de 2007. “Quisemos mostrar que o choro tem muitos sons, e não somente o do chamado regional, violões, cavaquinho, pandeiro etc. O resultado é que cada faixa tem uma formação instrumental diferente”, explica Cazes, que dividiu a produção com o japonês Katsunori Tanaka.

O Japão, aliás, é um dos países que mais admiram o choro, tanto que foi o primeiro destino internacional da Camerata Carioca, em 1985, quando começou uma paixão internacional pelo estilo. Um dos ápices da mundialização desse gênero genuinamente brasileiro é o documentário Brasileirinho, dirigido pelo finlandês Mika Kaurismäki, com participação de Yamandu Costa, Paulo Moura e Trio Madeira Brasil. “Cada vez mais e mais estrangeiros estão se interessando pelo assunto. É bom e triste ao mesmo tempo. Bom porque divulga. Triste porque se faz tanto filme ruim no Brasil e, para fazer um sobre choro, precisa ter um produtor suíço e um diretor finlandês”, reclama Henrique Cazes.

Por sugestão do bandolinista Hamilton de Holanda, o 23 de abril, data de nascimento de Pixinguinha, foi reconhecido como o Dia do Choro.

Mestres

Chiquinha Gonzaga (1847-1935)
Pioneira no reconhecimento dos direitos autorais e na afirmação das lutas das mulheres. Alegria, simplicidade e beleza são as marcas de seu ritmo e de suas construções harmônicas.

Joaquim Antônio da Silva Calado (1848-1880)
Flautista virtuoso, compositor e pioneiro em apresentar uma visão particular dos gêneros europeus, sobretudo valsas e maxixes, abrindo uma janela fecunda para outras possibilidades.

Ernesto Nazareth (1863-1934)
Abriu o lado erudito ao choro. Foi compositor de obra extensa e de qualidade. Vinicius de Moraes pôs letra em seu clássico Odeon.

Anacleto de Medeiros (1866-1907)
Foi ótimo compositor e ajudou a espalhar a musicalidade “chorística” através de bandas de música. Dirigiu, entre outras bandas, a do Corpo de Bombeiros do Rio de Janeiro.

Pixinguinha (1897-1973)
O gênio do choro. Deu vida e calor a tudo que escreveu. Espalhou a arte do choro.

Radamés Gnattali (1906-1988)
Foi o “modernizador” do choro, na segunda metade do século 20. Abriu possibilidades harmônicas, a partir de seu conhecimento e sua enorme experiência de arranjador.

Jacob do Bandolim (1918-1969)
Lançou o estilo brasileiro de tocar bandolim, pois, até então, as escolas anteriores eram as italianas.

Waldir Azevedo (1923-1980)
Possibilitou a introdução do cavaquinho como instrumento solista. Seu Brasileirinho é um dos hinos nacionais da cultura brasileira.

Sirva-se de choro

Brasília
Clube do Choro de Brasília. Os shows ocorrem de quarta a sábado, às 21h. Eixo Monumental, próximo à Torre de TV. Tel. (61) 3327-0494. R$ 10.

São Paulo
Ó do Borogodó. Sábados, a partir das 15h, o grupo Cochichando recebe várias canjas. Rua Horácio Lane, 21, Pinheiros, tel. (11) 3814-4087. R$ 15.

Praça Benedito Calixto. Sábados, a partir das 14h30 às 18h30, a velha guarda do choro paulistano se apresenta a céu aberto, na “praça de alimentação” local. Pinheiros.

Estúdio de Perdizes. Toda sexta-feira, a partir das 21h, roda de choro com o grupo Izaías e seus Chorões. Rua Capital Federal, 186, Perdizes. Grátis.

Cuiabá
Bar Choros e Serestas. Todos os sábados às 16h. Rua João Lourenço de Figueiredo, 163. Tel. (65) 634-4914. R$ 5.

Rio de Janeiro
Choro da Feira. Roda de choro todos os sábados, a partir das 14h, na feira da Rua General Glicério, Laranjeiras. Grátis.

Porto Alegre
Clube do Choro. Todas as quintas-feiras, a partir das 21h. Ypiranga Futebol Clube, Bairro Santana, tel. (51) 3340-1114. R$ 3.

São José dos Campos (SP)
Clube do Choro Pixinguinha. Todas as segundas-feiras, a partir das 19h30. Espaço Cultural Vicentina Aranha, Rua Prudente Meireles de Moraes, 302. Tel. (12) 3340-2000.