cidadania

O avesso do Pelô

Por trás das paredes dos casarões do Centro Histórico de Salvador, patrimônio do mundo, milhares de pessoas travam uma luta diária contra o preconceito, por moradia e um pouco de humanidade

João Correia Filho

Na década de 1990, parte do Pelourinho foi desocupada na marra para restauração. Os casarões seculares viraram lojas para turistas

Lidiane foi a primeira moradora a entrar nos novos apartamentos da Rua 28 de Setembro, antiga Rua do Tijolo. Não havia móveis nem lâmpadas. Entrou no escuro. Precisava sentir-se em casa, depois de tanto viver no improviso em casarões em ruínas. Isso foi em 3 de outubro de 2007, quando foram entregues 11 unidades reformadas de um prédio do Centro Histórico de Salvador, como parte do projeto de revitalização da região. Hoje, Lidiane Correia dos Santos, 25 anos, mora com as filhas Clara e Júlia, 1 e 6 anos. As paredes estão pintadas com texturas e desenhos, há móveis, TV, sofá, lençóis combinando, decoração infantil. Tudo muito arrumado.

Antes, vivia na Rua São Francisco, também no Centro Histórico, em um cômodo de três por cinco metros, com Júlia, a mãe, dois irmãos, o marido da mãe, a sogra da mãe e a cunhada. “Éramos oito.” Enquanto relembra, Lidiane mostra com gestos a configuração da antiga casa. “Imagine que ali era o fogão, uma pia, ali as camas e vários colchões e uma mesa, que tinha que desarmar pra dormir todo mundo.” Agora imagine que esse passado é ainda o presente de milhares de pessoas, vitimadas por um projeto de revitalização excludente, iniciado na década passada, no governo de Antonio Carlos Magalhães, para tornar esse Patrimônio da Humanidade perfeito para turistas, impensável para seus moradores.

Durante as seis etapas anteriores do projeto foram indenizadas 1.800 famílias, empurradas para regiões mais afastadas do centro ou para a periferia. Executadas ao longo de 16 anos, essas etapas de “requalificação” do Centro Histórico nunca incluíram a população pobre. No lugar, ocupando apenas o térreo dos prédios, foram colocados restaurantes e lojas, com suas fachadas restauradas e bem pintadas. Ninguém morando. O Pelourinho virou um “shopping a céu aberto”.

Resultado dessa revitalização desumanizada, prédios foram ocupados pelo Movimento Sem Teto da Bahia (MSTB). Famílias que foram “indenizadas” para sair permanecem morando em prédios históricos em ruínas. Algumas resistiram à pressão e não saíram. Outras, mesmo realocadas em outros bairros, mantêm seu comércio no local. E uma favela, a Rocinha, segue enfrentando os problemas do tráfego e da falta de saneamento básico. Em meio a tudo isso, 104 famílias se uniram, resistiram e conquistaram na Justiça o direito à moradia no centro. E aguardam a conclusão dessa sétima etapa de revitalização, abrangendo imóveis localizados numa área de cerca de 10 quarteirões próximos à Praça da Sé e ao Elevador Lacerda. Onze apartamentos já foram entregues, 93 famílias esperam. Ainda neste ano outras 21 devem ser contempladas. O projeto, do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), enfim pôs os olhos na questão da habitação.

geral pelourinho

Cama de valetes

Para a vendedora ambulante Adriana Nunes Mendonça, de 27 anos, esse sonho ainda é apenas um amontoado de entulhos e uma parede coberta por plantas, no final da Rua do Bispo. Seu apartamento deve ficar pronto em 2009, mas olhando para essas ruínas ela já consegue imaginar cada cômodo de seu futuro lar, embora ainda viva com a mãe e mais 12 famílias num casarão bastante deteriorado a duas quadras dali. As paredes estão emboloradas, há rachaduras, às vezes falta água, às vezes luz. Falta espaço. “Está ruim, mas tenho paciência. Todas as vezes que passo por essa rua, me dá mais esperança. Nasci e me criei aqui, não quero sair”, diz.

No mesmo prédio, José da Silva Batista, o Keno, espreme-se num quartinho de 1 por 2,3 metros que divide com o primo Luiz Lázaro. Cabem uma pequena estante com

TV, um fogão de duas bocas, uma panela e um aparelho de som, tudo encaixado na mesma parede. Do outro lado, roupas penduradas, toalhas e caixas. No centro, a cama que dividem. “Dormimos como valetes, um pra cada lado”, brinca. Luiz é DJ numa casa noturna na Praça da Sé, a Fantasy Night Club. Keno trabalha montando palcos para eventos, “quando tem trabalho”.

A história dos dois também está ligada ao processo de retirada das pessoas do Centro Histórico, em que a Companhia de Desenvolvimento Urbano do Estado da Bahia começou a indenizar os moradores que concordaram em sair, Keno e Luiz entre eles. “Diziam que tinha que assinar, que precisavam do imóvel. Ou pegava o dinheiro ou saía sem nada. Na época, em 2004, recebi R$ 1.946. Como estava me separando e tinha um filho, tive de cumprir com minhas obrigações. Comprei material escolar, uma televisãozinha e com o resto me mantive por cinco meses”, conta Keno, que nunca saiu do Centro Histórico. “Fiquei sem nada e acabei vindo pra cá, improvisado”. Luiz também se desesperou. Morava numa casa que estava para cair e cedeu às pressões do órgão estadual, tido, devido a histórias como essas, como o grande vilão da história.

Laila Nazem Mourad, coordenadora de Urbanismo da companhia, diz que ainda sente o estigma de um órgão que durante décadas atuou “com uma visão higienista, de limpar o centro histórico de pobre, de negro”. Para ela, isso decorreu de uma concepção errada de revitalização, que não entende que para revitalizar precisa ter gente. “Muita coisa ainda tem de mudar, mas hoje pelo menos existe um diálogo entre nós e a população”, afirma. E admite que as mudanças mais importantes ocorridas até agora partiram da iniciativa de movimentos populares.

“Em 2004, por meio da Associação dos Amigos do Centro Histórico (Amach) e outras entidades, as pessoas se organizaram, foram ao Ministério Público e venceram uma importante batalha, com a reestruturação do projeto, através do Programa de Habitação de Interesse Social (PHIS)”, aponta.

“Cada família vai pagar em torno de R$ 30 por mês durante 10 anos e depois será proprietária. Será o único lugar do Brasil com trabalhadores de baixa renda vivendo em patrimônio tombado”, comemora a líder comunitária Jecilda Maria da Cruz Mello, presidente da Amach e importante líder na luta por moradia. Aos 54 anos, ela também sonha com sua nova casa, na Rua 28 de Setembro. “Em 94 expulsaram as pessoas como alguém que se livra da sujeira de casa. Não aceitei aquilo e me meti com o movimento. Hoje temos muitas conquistas, graças à nossa resistência.”

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Jecilda: “Em 94 expulsaram as pessoas como alguém que se livra da sujeira de casa. Não aceitei aquilo. Hoje temos muitas conquistas, graças à nossa resistência”

Na palavra resistência, a vida de Jecilda se confunde com a de Jussara Santana, produtora cultural, de 48 anos, que mora há 28 no Centro Histórico e viu toda a retirada dos moradores. O prédio em que vive hoje, no número 48 da Rua do Paço, foi um dos poucos onde as pessoas resistiram e não saíram. Jussara lembra-se da pressão da polícia e narra cenas que demonstram a união do grupo: “Nessa época muito prédio pegou fogo, sendo que antes esses incêndios, bem suspeitos, não aconteciam. Assim, as pessoas eram obrigadas a sair e no outro dia metiam cimento na porta. Com medo, tínhamos que vigiar o prédio 24 horas para evitar que entrassem e desocupassem”.

Quem visita hoje os apartamentos do 48 vê que nada lembra o improviso. Tem instrumentos musicais (e músicos), discos, fotos de Bob Marley, equipamentos para silk-screen e sala com computador, onde funciona a Associação Cultural Aspiral do Reggae, ligada ao movimento negro e ao movimento rastafari. Reivindicam agora uma reforma geral do prédio, que tem problemas estruturais. “Como entramos com pedido de usucapião, o Instituto do Patrimônio Artístico e Cultural da Bahia (Ipac), responsável pela preservação dos imóveis, diz que não tem como reformar”, diz Jussara.

No casarão ao lado, Sandra Coelho fala de sua negritude, e de Jussara. “Foi ela quem me levou pro movimento. Parei de alisar o cabelo e passei a ter orgulho do que eu sou. Negra de verdade. Enfrentei preconceito até da minha família, mas resisti, como venho resistindo em muita coisa”, diz, referindo-se à ocupação do MSTB, do qual é coordenadora estadual. Conta que em 1996, com mais 18 famílias, se organizaram e ocuparam o lugar. Ficaram quinze dias até serem retiradas a força pela polícia. Em 2006, nova tentativa foi frustrada. “Fomos ao comando da PM e falaram pra gente ceder que o Ipac ia nos cadastrar. Não cadastraram e em dezembro fecharam tudo com bloco de concreto.”

Sandra conta que em 2007 houve nova tentativa, agora com sucesso. “Tinha um guarda que cuidava dessas casas, e quando ele foi ao banheiro nós ocupamos”, brinca, tentando aliviar o peso do assunto. O movimento mantém outras 21ocupações na cidade de Salvador, num total de 70 famílias. “Parece haver uma nova postura. Fomos ao Ipac e estamos negociando. Estamos esperançosos, pois agora pelo menos há diálogo”, completa. Maura Cristina da Silva, também do MSTB e moradora no mesmo prédio, concorda: “Estamos numa fase boa de negociação, embora estejamos em alerta, pois os quatro anos podem passar, nada se consolidar e o próximo governo tentar tirar a gente de novo”. Maura diz que os prédios foram reformados, mas falta acabamento: “A reforma do Centro Histórico foi assim, bonito por fora”.

Uma prova disso são os barracos da Rocinha, localidade do Centro Histórico à margem de qualquer melhoria e à mercê do tráfico de drogas. Ironicamente, é um local de natureza preservada, ao lado da Faculdade de Medicina mais antiga do Brasil e de um batalhão da polícia, sem contar a ótima visão que se tem de toda a orla. Sob a sombra das árvores, está a casa de Mariza Pereira de Carvalho, de 30 anos, oito deles vividos na Rocinha. “Aqui nunca aconteceu nada, não tenho porta, não tenho janelas. Só lamento que minhas amigas tenham medo de me visitar. E não vejo meu filho mais velho, de 14 anos, porque o pai não deixa, diz que aqui não é lugar de criar filho.” Emociona-se.

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Maura acompanha tudo de perto: “A reforma do Centro Histórico foi assim, bonito por fora”

Mesmo assim, orgulha-se da casa improvisada, precária, mas nem por isso desarrumada. Garrafas de vidro viraram ladrilhos, garrafas PET viraram vasos, pedaços de madeira viraram parede, que se apóiam nas ruínas do que já foi uma residência colonial. “Fizemos tudo com material reciclado. Meu marido, Josevaldo, sai pela manhã e sempre volta com um pedaço de telha, um tijolo, uma lata. Ele trabalha com reciclagem e faz artesanato.” Mariza e Josevaldo têm quatro filhos. “Estamos na expectativa de que venha uma melhoria, saneamento básico, área de lazer, novas casas. Não quero sair. Acho que estou num paraíso, num espaço abençoado”, diz a moça, evangélica.

Há alguns quarteirões dali, Bárbara Adriana Conceição Magalhães, de 22 anos, também se mudou para os apartamentos inaugurados em outubro passado. Conquistou o que para Mariza é só um sonho. Antes morava com a mãe, o padrasto, o primo, a mulher do primo e a filha do primo, em dois cômodos. Lembra que chegou a passar fome. Pouco antes da morte da mãe – a quem desde os 12 anos ajudava a vender cosméticos – o padrasto a expulsou de casa. “Ele disse pra minha mãe que era eu ou ele. Apaixonada, ela escolheu ele.” Na mesma época, perdeu o pai também. “Foi preciso muita fé em Deus”, diz. Hoje Bárbara é revendedora “estrela de ouro”, como faz questão de frisar, o que significa que vende muito bem. É simpática e comunicativa.

Sua vida difícil vinha sendo contada em forma de poesia e prosa desde que aprendera a escrever, com 8 anos. O resultado foi uma coleção de brochuras, “mais de 10 cadernos”, motivo de discórdia entre ela e a mãe. “Ela me batia por ficar escrevendo. ‘Vai ser escrivã? Vai ser poeta?’, me dizia. ‘Menina, escrever não enche barriga de ninguém’, repetia sempre.” Quando se mudou para o novo apartamento, jogou os cadernos no lixo. Não queria lembrar os dias difíceis, apenas começar vida nova, com Marcos, que mora no mesmo prédio. Seu apartamento ainda não tem móveis. Somente um colchão no piso frio e alguns objetos espalhados, como um ventilador que ganhou de prêmio da empresa em que trabalha. Agora, em novos cadernos, começa a escrever outra história.