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O império dos coronéis

Livro-reportagem sobre matador expõe história recente de execuções sob encomenda de mandantes que confiam na impunidade

mendonça

No Pará, o matador Júlio Santana executou um menino de 13 anos, a mando de um fazendeiro. Os pais do garoto tinham “fugido” da fazenda, onde trabalhavam em situação de escravidão, e a execução era um recado para que voltassem. Mas Santana não pensava nos motivos. Era pago para matar. Assim foi com 492 pessoas, em pelo menos 13 estados brasileiros. A maioria no Norte e Nordeste, e por conflitos da terra.

Essa história está contada em O Nome da Morte, do jornalista Klester Cavalcanti (Editora Planeta). Júlio Santana deixou o ofício no ano passado, e mora agora em algum sítio em estado não identificado pelo autor. Só revelou o nome após anos de insistência do repórter. O relato sobre sua vida de matador foi facilitado pelo hábito que o maranhense tinha de anotar, em um caderno com capa do Pato Donald, o nome de cada uma das vítimas e de cada um dos mandantes.

Santana não perguntava o motivo da morte, mas em todos os casos o mandante, ou seu intermediário, fazia questão de falar. Foram motivos passionais ou fúteis (como briga de futebol), disputa por herança, calotes em agiotas, mas chamam a atenção os assassinatos motivados pela questão fundiária, a maioria encomendados por fazendeiros. “Pelo menos 100 pessoas que ele matou foi por conflitos de terra”, diz Cavalcanti. “A mando de fazendeiros, madeireiros e políticos.”

O jornalista detalhou 32 das 492 mortes contabilizadas pelo matador, pois foram as que ele conseguiu checar por outras fontes. Uma encomenda ficou de fora do livro: a do assassinato da missionária norte-americana Dorothy Stang, no dia 12 de fevereiro de 2005, em Anapu (PA).

Santana teria recusado o trabalho por dois motivos. Um religioso e outro pragmático: ele sabia que o caso teria repercussão e temia ser apanhado. “O delegado do caso Dorothy disse a um repórter do Estadão, após a publicação do livro, que o fazendeiro falou mesmo de um tal de Santana”, conta o jornalista.

A distribuição de 32 das mortes mostra o raio mais freqüente de atuação do matador: Pará e Maranhão, seis cada; Tocantins, quatro; Piauí, três; Rondônia, Mato Grosso, Goiás e São Paulo, duas; e no Acre, Ceará, Bahia, Mato Grosso do Sul e Paraná, uma.

O caderno no qual Júlio Santana anotava as vítimas e os mandantes está agora no fundo de um rio. Mas o livro de Cavalcanti, que é editor da revista VIP, é no mínimo uma enciclopédia de denúncias a serem apuradas. “A polícia faz de conta que nada está acontecendo”, diz o jornalista. “O que o Julio temia, que a polícia corresse atrás, não ocorreu.” Não se trata apenas de localizar e punir o matador. Mas também os bandidos com poder econômico, capazes de repetir crimes com outra mão-de-obra.

Um dos assassinatos cometidos por Santana, que começou no ofício aos 17 anos em Porto Franco (MA), foi o do sindicalista Nativo da Natividade, presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Carmo do Rio Verde (GO), cidade próxima de Brasília. O mandante, segundo o pistoleiro, foi ninguém menos que o prefeito, nos anos 80.

Cavalcanti chega a nomear o prefeito, mas informa que ele foi absolvido, anos depois. A partir do momento em que aparece uma testemunha com nome e sobrenome, ainda que sem paradeiro conhecido, não seria obrigação do Estado e da Justiça tentar localizar o assassino confesso e reabrir o processo contra o suposto mandante?

O caso de Carmo do Rio Verde é apenas um daqueles que envolvem pessoas com uma certa posição social: um sindicalista que se projetava politicamente numa cidade goiana e o prefeito do município. Em vários outros casos, para utilizar uma expressão recorrente entre os mandantes dos crimes, são brasileiros “infelizes”, cujas famílias não tiveram poder nem influência para emplacar investigações sérias.

Na única vez em que Santana foi preso, um delegado de Tocantinópolis (TO) o teria liberado em troca de uma motocicleta. Isso em 1987. O crime (do delegado) está prescrito? A ver. Mas no mínimo a imprensa local poderia apurar a história, emblemática de uma conduta miliciana no país.

Klester Cavalcanti já escreveu também Direto da Selva – As Aventuras de um Repórter na Amazônia (Geração, 2002) e Viúvas da Terra (Planeta, 2005). Em O Nome da Morte, o jornalista destaca o início da vida de matador de Júlio Santana, na região do Araguaia. Ele participa decisivamente, em 1972, da prisão do deputado José Genoino (PT-SP), na época guerrilheiro do PCdoB, imobilizando-o com um tiro no ombro, após localizá-lo no meio da mata. E é o autor do disparo que atinge Maria Lúcia Petit da Silva, a única guerrilheira do Araguaia que teve o corpo exumado e identificado.

Em um país sem memória, que ainda esconde os arquivos do Araguaia, da Guerra do Paraguai, da diplomacia e dos atos de todos os seus ditadores, esse caso do Araguaia exclama sua importância. Mas que não sejam esquecidas as centenas de trabalhadores executados pelo mercenário oportunista por ordens de “clientes” que ainda estão por aí, desfrutando seus negócios com o mesmo poder econômico, de vida e de morte sobre outras pessoas.