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O ônus do ócio

Mais do que garantir o pão de cada dia, o trabalho é uma referência pessoal e social. Parar é uma ruptura tão grande que, se não houver preparo e planejamento, a sonhada aposentadoria pode virar pesadelo

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Sem Crise – Marilene Conceição: “Quando sentir falta da sala de aula, volto como voluntária”

Os 30 anos de trabalho insalubre pela exposição ao ruído intenso e a óleos solúveis foram insuficientes para garantir a aposentadoria do fresador Miguel de Almeida, de Sorocaba (SP). Em 1999, ele entrou, sem sucesso, com requerimento no INSS. Recorreu do indeferimento, perdeu o recurso e há mais de dois anos fez nova solicitação. Terminou 2009, e nada. Miguel sonha em viajar com a esposa, ajudar os dois filhos na compra da casa própria, ter tempo para o voluntariado na igreja e no sindicato, praticar esportes e atividades artísticas. “Gosto de trabalhar, mas está na hora de passar minha vaga para os jovens que chegam a um mercado tão pobre em oportunidades”, diz. Menguele, como é conhecido, é um dos milhares de brasileiros que aguardam a concessão do benefício.

A maioria da população convive com naturalidade com seu ciclo de trabalho, mantendo-se ocupada no presente e tendo o direito de se aposentar no futuro como recompensa. Livre da correria, das cobranças, e com mais tempo para os prazeres da vida. Mas, quando a hora de parar vai chegando, vem um frio na barriga. “A aposentadoria leva à perda dos papéis desempenhados até então, à ruptura com relações sociais, à redução do status e até ao empobrecimento”, observa Luiz Carlos Canêo, professor do Departamento de Psicologia do campus Bauru da Universidade Estadual Paulista, a Unesp. “Isso gera impacto porque vivemos numa sociedade definida pelo trabalho. A pessoa é valorizada enquanto produz e conforme o que faz.” Nessa perspectiva, ao perder sua capacidade produtiva, a pessoa sente-se socialmente desvalorizada. 

Pesquisadora do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP), a psicóloga Anette Souza Farina afirma que a época de se aposentar leva também à reestruturação da identidade, durante muitos anos confundida com o trabalho e com a representação social que a empresa simboliza. Por isso é comum, em rodas de amigos, alguém se apresentar dizendo seu nome seguido do nome da companhia em que trabalha. “A perda dessa referência altera profundamente o cotidiano. A exclusão do sistema no qual a lógica capitalista aprisionou o homem ao sucesso ou à luta pela subsistência ‘esvazia’ de sentido a vida do trabalhador, inclusive pelo fim dos vínculos afetivos formados no contato diário com colegas de escritório, da fábrica, do banco, da escola. Afinal, nesses locais ele passou mais tempo do que com a família”, diz a psicóloga.

“Por essa razão, esse é um momento de refazer a identidade, buscar novos papéis para si e encontrar novos significados”, acrescenta Canêo. Entre as mulheres, apesar da crescente presença no mercado de trabalho, ainda não é incomum valorizar igualmente outros papéis sociais, como de mãe, esposa, dona de casa. Como estes ainda serão mantidos depois de aposentadas, o impacto negativo será menor que o sofrido pelos homens.

Maria da Glória Abdo, presidente da Associação dos Bancários Aposentados de São Paulo, conta que há algum tempo fez uma pesquisa com gerentes aposentadas separadas para saber o motivo da separação. A maioria respondeu que o marido, também aposentado e sem ter o que fazer, ficava em casa aborrecendo e dando palpites. “Ou seja, durante a vida na ativa eles estavam envolvidos com os compromissos do trabalho, e a família sempre relegada a segundo, terceiro plano. Depois da aposentadoria queriam assumir o controle da casa”, conta. Glória diz ter vivido experiência parecida, embora às avessas. Assim que se aposentou, logo se cansou de tanto descansar. “Fiquei tão ranzinza que uma empregada que trabalhava comigo havia mais de 20 anos me disse que não me aguentava mais e pediu demissão.” O jeito foi voltar à ativa.

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Desanimador Silvia: professores perdem pelo menos R$ 400 na aposentadoria

Dois pesos

Para especialistas, períodos pré-aposentadoria evidenciam também desigualdades sociais. O inativo com melhores condições financeiras não só mantém suas atividades sociais como consegue amortizar a ruptura com o mundo do trabalho, investindo o tempo livre na satisfação pessoal e no desenvolvimento de outras potencialidades. E aquele com menor renda geralmente enfrenta a chamada morte social, o tédio das horas vazias e dos dias que não passam.

O ócio legitimado por anos de trabalho é um direito que para ser usufruído depende de viabilidade econômica. É por isso que mais de 20% dos brasileiros com mais de 60 anos ainda trabalham, mesmo aposentados. Sem contar os informais, que trabalham como autônomos ou estão na informalidade, muitas vezes para compor a renda familiar.

Em 2007, segundo a Confederação Brasileira de Aposentados e Pensionistas (Cobap), cerca de 2,6 milhões de aposentados voltaram a trabalhar. “Muitos, que não tinham vontade nem saúde para retornar, começam a considerar a ideia quando veem o valor dos benefícios cair para a metade do que ganhavam na ativa, suficiente para pagar apenas um plano de saúde”, diz Nelson Osório, diretor da Cobap. “Fora os remédios, que se tornam de uso contínuo e nem sempre estão disponíveis nos postos de saúde”, acrescenta.

Silvia Pereira, diretora do sindicato dos professores da rede estadual paulista, a Apeoesp, diz que o impacto financeiro é o que mais desencoraja os educadores a se aposentar, apesar da rotina estressante das salas de aula. “De cara, os que se aposentam perdem pelo menos R$ 400 com a retirada das gratificações, que são a base do salário dos professores há 14 anos no Estado”, diz. Por essa razão, uma das principais brigas da entidade é pela criação de mecanismos que protejam a renda na aposentadoria.

Preparo

Segundo especialistas, muitas vezes a saída do mercado de trabalho coincide com o envelhecimento. No caso das mulheres, o final do período reprodutivo e a redução da atratividade física podem afetar a autoestima conforme sua capacidade de lidar com essas perdas. Para ambos os sexos, o fim da fase laboral e da carreira acaba sendo associado ao fim da vida. “As respostas às mudanças nessa época dependerão da maneira como cada pessoa se relaciona com a vida”, explica Luiz Carlos Canêo.“Quando a aposentadoria vem associada à percepção de estar velho, a velhice geralmente lembra perda, finitude. Sentimentos dessa natureza podem trazer angústia, questionamentos, sensação de impotência.”

Para o professor da Unesp, se o futuro se desenha repleto de incertezas, a pessoa pode recorrer ao passado numa tentativa de se alimentar do que já viveu e justificar sua existência carente de significado. Tudo depende da capacidade de adaptação a situações novas. Muitos não conseguem construir um novo projeto que lhes proporcione uma vida melhor fora do trabalho.

Para Wilson Roberto Ribeiro, presidente da Associação dos Metalúrgicos Aposentados do ABC, há trabalhadores que até aproveitam bem os primeiros dias de aposentadoria. Viajam, passeiam, compram bens. “Mas logo entram em depressão quando se dão conta de que ficaram sem o convívio com os colegas e o status de ‘produtivo’”, relata. Como o problema tem se agravado, a entidade incluiu o tema nas discussões do congresso da categoria, no ano passado. O objetivo é sensibilizar empregadores e o poder público a cumprir o disposto no artigo 10, inciso 4, alínea C da Lei nº 8.842, de 1994, a Política Nacional do Idoso.

Ainda pouco conhecido até mesmo entre dirigentes sindicais, esse trecho do texto determina que o governo deve criar e estimular programas de preparação para a aposentadoria, no setor público e no privado, no mínimo dois anos antes de o trabalhador se aposentar.

Presidente do Sindicato Nacional dos Trabalhadores Aposentados, Pensionistas e Idosos, Epitácio Luiz Epaminondas, o Luizão, diz que como o país ainda não acordou para a questão do idoso, pouco se importa também com questões relativas à aposentadoria. Aposentado do setor petroquímico há 17 anos, ele conta que no início ficou oito anos sem receber um benefício sequer. A dificuldade financeira numa época em que tinha filhos adolescentes, aliada à distância dos colegas e da rotina, desencadeou uma depressão. “Sei que teria sido pior ainda se eu não tivesse participado de um programa de preparação para a aposentadoria”, conta Luizão.

Ainda incipientes no país, esses programas são oferecidos em algumas empresas e setores públicos. Segundo Maria Silvestre Gomes, coordenadora do setor de serviço social da Petrobras, o curso preparatório faz parte dos benefícios da companhia desde 1989. A metodologia consiste na abordagem de temáticas como qualidade de vida, planejamento financeiro, saúde, tempo livre e lazer, direitos sociais e legislação, convivência familiar, resgate de potencialidades e da espiritualidade. De acordo com a coordenadora, muitos empregados acabam prorrogando sua permanência na empresa.

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Tensão Lourival: falta garantia de emprego para quem está prestes a se aposentar

Danos

Pioneira no desenvolvimento de programas de preparação para a aposentadoria no Brasil, a psicóloga Ana Fraiman, de São Paulo, acrescenta que muitas angústias começam bem antes da liberação do primeiro pagamento pelo INSS. Afinal, é ainda na ativa que os trabalhadores são vítimas de assédio moral e de outros tipos de discriminação, como a exclusão de cursos oferecidos nas empresas.

Ana, que pesquisa os danos morais sofridos por profissionais em vias de se aposentar, constatou que o problema é mais acentuado no setor público, em que questões políticas determinam a troca de chefia quase sempre de maneira truculenta. “O problema tende a se agravar. A vida está mais cara, o mercado de trabalho mais competitivo, e o Estado atua cada vez menos em defesa das necessidades dos mais idosos”, diz.

Lourival Batista Pereira, coordenador de Saúde e Meio Ambiente do Sindicato dos Químicos de São Paulo e Região, lembra que os trabalhadores a dois anos de se aposentar são os primeiros da lista de demissão. “Não há lei que garanta que eles terão emprego até que se aposentem”, diz.

Para a assistente social Maria Eugênia Souza de Athayde Nunes, do Instituto Agilità de Psicologia, de Brasília, que em setembro realizou o 2º Congresso Brasileiro de Saúde e Aposentadoria, a questão deveria ser pensada a partir do ingresso no mercado de trabalho, na juventude. No entanto, o tema é tabu para muitas pessoas, que dizem até preferir morrer a se aposentar. “É preciso pensar na carreira, sim, afinal o mundo é de incerteza. Só que é preciso pensar também em prazer, saúde e realização em todas as áreas da vida.” O voluntariado, segundo ela, é uma opção de exercício de potencialidades de toda natureza e também de manutenção da rede de vínculos.

É o que pretende fazer a paulistana Marilene Conceição Psopsos, professora da rede pública em São Paulo. Ela conta que não vive nenhum conflito com a possibilidade de parar de trabalhar, embora saiba de muitos colegas que enfrentam crises financeiras e de identidade. “Quando tiver descansado e viajado mais e sentir falta da sala de aula, volto como voluntária.”

Muito gás
A bancária Maria do Socorro Cavalcante Bandeira, de Fortaleza, já passou dos 30 anos de contribuição e dos 50 de idade. Separada e mãe de três filhas, Socorro acha que ainda “tem muito gás” e quer trabalhar mais cinco anos na mesma função que ocupou no banco. “Mas, como não sei como serão as regras para me aposentar quando essa época chegar, quero assegurar desde já o meu direito”, diz. Por isso ela já entrou com o pedido no INSS. Depois de parar definitivamente, planeja voltar a estudar. Formada em Letras num curso noturno, ela pretende se dar ao “luxo” de cursar uma faculdade no período diurno, frequentar academia de ginástica e dedicar mais tempo ao lazer. Pensando em poder bancar tudo, Socorro conta que já se prepara para isso há mais de dez anos. “Fiz meu pé de meia e paguei aposentadoria complementar para compensar, pelo menos em parte, a queda que terei nos rendimentos quando deixar de trabalhar.”

Fator que desencoraja
A menos que o trabalhador se aposente com 65 anos de idade ou 35 anos de contribuição (60 ou 30 anos, no caso das mulheres), o benefício será sempre correspondente a uma combinação que leva em conta idade, expectativa de vida e tempo de contribuição, além de um número mínimo de contribuições mensais. Isso se deve ao fator previdenciário, restrito ao setor privado, com a finalidade de desestimular as pessoas a se aposentar precocemente.

No ano passado, as centrais sindicais chegaram a ensaiar um acordo que ao menos reduzisse o impacto negativo do fator previdenciário no futuro benefício. Hoje, por exemplo, um homem que se aposenta com 55 anos de idade e 35 de contribuição e recebe R$ 1.000, terá o benefício calculado em R$ 726. Para ter direito ao benefício integral, tem de trabalhar mais cinco anos.

Como alternativa a um projeto do Senado que acaba de vez com o fator previdenciário, que o governo vetará se for adiante, foi costurada na Comissão de Tributação e Finanças da Câmara uma proposta chamada fórmula 85/95. Com ela, esse mesmo trabalhador passaria a se aposentar com benefício integral com pouco mais de dois anos de contribuição.

Resultado de um ano de negociação, a proposta de mudança nas regras dificilmente será votada devido a um impasse na Câmara, segundo o relator do projeto, deputado federal Pepe Vargas (PT-RS). “Esse acordo será difícil, porque há quem queira a proposta do Senado. Nesse caso, o ótimo está impedindo o bom”, diz. “A tendência hoje é não votar e ficar no sistema atual, o que seria lamentável. Desde a Constituição de 1988, as alterações na legislação foram feitas para dificultar para o trabalhador.”

A proposta negociada prevê a extinção do fator do cálculo da aposentadoria quando a soma da idade mais o tempo de contribuição for igual a 95 para o homem e 85 para a mulher; congelamento da tábua de expectativa de sobrevida quando o segurado atinge o tempo mínimo para a aposentadoria por tempo de contribuição e decide ficar na ativa para atingir a soma 85/95 (hoje, um trabalhador de 60 anos tem uma expectativa de sobrevida de 21,2 anos); e corte de 30% das piores contribuições, em vez de 20%. Além disso, períodos de avisos prévios indenizados e de seguro-desemprego passariam a contar como tempo de contribuição.

“A maioria dos trabalhadores se aposenta por idade, e não por tempo de contribuição”, lembra Pepe Vargas. Em 2008, por exemplo, segundo o Ministério da Previdência, de 1,016 milhão de aposentadorias concedidas, 552 mil foram por idade (54,3%), 269 mil por tempo de contribuição (26,5%) e 195 mil (19,2%), por invalidez. Para ele, as mudanças beneficiariam quem entra mais cedo no mercado de trabalho. “Na prática, reduz pela metade o tempo de contribuição adicional, chegando a dois terços para as mulheres.”

A situação deve se agravar nos próximos anos, devido ao envelhecimento da população. De 1996 a 2006, o aumento da expectativa de vida ao nascer foi de 3,5 anos. Estima-se que o contingente de pessoas com 60 anos ou mais, atualmente em pouco mais de 10% da população, chegue a 13% em 2020; 17% em 2030 e a praticamente um quarto do total (24,6%) em 2050.

E o número de trabalhadores que contribuem ainda é baixo, embora tenha aumentado no período recente. Em 2008, de 92 milhões de ocupados, pouco mais da metade (52%) contribuíram para algum instituto. Já o total de aposentadorias pagas pela Previdência atingiu 15,076 milhões em dezembro, crescimento de 4,3% em um ano. 

“O desequilíbrio financeiro dos sistemas de previdência não constitui uma exclusividade do Brasil. Na verdade, é uma realidade contra a qual a maioria dos países luta”, diz o Ministério da Previdência. “Expandir a Previdência à totalidade dos trabalhadores é um objetivo que caminha em compasso com a obtenção do equilíbrio nas contas públicas.”