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O poder da economia solidária

Empreendimentos coletivos autogestionários ainda penam para conseguir crédito e vender sua produção. Mas já dão lições de desenvolvimento sustentável e geram trabalho e renda para 1,5 milhão de brasileiros

Roberto parizotti

Arildo, da Uniforja: “O mercado não acredita que o trabalhador consiga administrar”

Elione é artesã. Antonio é jornalista. Izabel, costureira. Ariane, socióloga. Vicente, produtor rural. Eles atuam em regiões distintas e têm em comum a opção pelo cooperativismo como alternativa de gestão e de geração de trabalho e renda. O conceito de economia solidária engloba vários tipos de organização, como associações, clubes de troca, empresas autogestionárias, redes de cooperação, que realizam de atividades industriais a rurais, de produção de bens a prestação de serviços, finanças solidárias e comércio justo.

O Brasil tem 22 mil empreendimentos – formais e informais –, que movimentam R$ 8 bilhões ao ano e mantêm ocupadas 1,5 milhão de pessoas, segundo a Secretaria Nacional de Economia Solidária (Senaes) do Ministério do Trabalho. De acordo com a Senaes, embora as cooperativas sejam as organizações mais conhecidas, há apenas cerca de mil estruturadas no país. A maioria dos empreendimentos ainda atua na informalidade, mas já embasada de fato nos princípios da economia solidária e criada para garantir a inclusão social a partir da vocação econômica local – como no caso das comunidades formadas por indígenas, quilombolas, caiçaras, ribeirinhos – ou de empresas recuperadas pelos trabalhadores. “Você sabe quantas quebradeiras de coco existem no Brasil?”, indaga o professor Paul Singer, secretário Nacional de Economia Solidária. “Quatrocentas mil!”

As organizações autogestionárias ainda enfrentam dificuldades em duas pontas do processo: na obtenção de crédito para incrementar a produção e na comercialização de seus produtos. As exigências dos bancos são o principal impeditivo para o crédito. “O sistema bancário não foi feito para pobre”, diz Singer. E a inexperiência em comércio e gestão dificulta o escoamento da produção. Apesar disso, as cooperativas mudam vidas, resgatam culturas e dão dinâmica diferente à economia das regiões onde estão instaladas.

A pouco mais de 200 quilômetros de Salvador, um grupo de 122 mulheres de Valente, Araci e São Domingos – cidades castigadas pela seca – ganhou nova perspectiva ao resgatar a cultura do artesanato com fibras de sisal e caroá, plantas típicas da região. Elas organizaram, em 2001, a Cooperativa Fibras do Sertão (Cooperafis), numa região onde as mulheres são as mais prejudicadas pela falta de trabalho. Com a produção de bolsas, chapéus, colares, tapetes e cestos as cooperadas mudaram seu destino. “Ganhamos autonomia financeira e sabemos que estamos no caminho certo”, destaca a presidente, Elione Alves de Souza. A retirada média mensal é de R$ 250. A maior parte do artesanato é vendida no Sul e Sudeste. “Nosso desafio é conquistar mais mercados.”

Essa é também a meta da Coopergema, em Quaraí (RS), vizinha a Artigas, no Uruguai, maior exportadora mundial de pedra bruta de ametista. A Coopergema tem 36 associados. Depois de passar por curso de lapidação e joalheria no Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (Senai), eles se uniram para fabricar joias a partir de pedras como ametista, cornalina e quartzo montadas em folhados de ouro e prata. Segundo Rogério Dalle, assessor da cooperativa, a produção é vendida na Grande Porto Alegre e no sul de Santa Catarina.

divulgaçãoCoopergema
Coopergema: 36 associados e vendas para a Região Sul

Unindo potenciais

O estado do Piauí tem a segunda maior produção de castanha-de-caju no país, boa parte vinda de agricultura familiar. Vicente Rufino Cortez passou a cultivar caju quando se aposentou. Aos 61 anos, ele está entre as 480 famílias de nove municípios na região de Picos organizadas em torno de minifábricas de castanhas, uma em cada cidade e todas ligadas à Central de Cooperativas de Cajucultores do Piauí (Cocajupi), que cuida da classificação, embalagem e comercialização. As castanhas são vendidas para dez estados e a Cocajupi, com sede em Picos, já prospecta o mercado externo. Esse pool de empreendimentos gera trabalho para 230 pessoas quando opera com sua capacidade máxima e já tem conquistas a comemorar. “Não há mais atravessadores e temos garantias de que nossa produção será vendida”, diz o cajucultor. “O comércio local também melhorou, porque há mais pessoas ocupadas e dinheiro circulando”, ensina seu Vicente, ligado à minifábrica do município de Ipiranga e diretor comercial da Cocajupi.

O “inverno” prolongado e as chuvas atrasaram a safra de caju deste ano. De acordo com o gerente de produção da Central, Luiz Eduardo Rodrigues, apenas três minifábricas estão em operação. As demais aguardam matéria-prima nas próximas semanas. Luiz Eduardo herdou do pai o ofício de cajucultor no município de Francisco Santos e estuda Agronomia. Ele vê grande potencial de expansão da Cocajupi, mas admite: “Os empreendimentos ainda precisam do apoio de organismos como a Fundação Banco do Brasil”.

Também foi a convicção no cooperativismo que uniu há uma década profissionais de nível superior de várias áreas – agronomia, sociologia, economia, biologia, geologia, comunicação social, direito, administração e pedagogia – na Plural Cooperativa de Consultoria, Pesquisa e Serviços. Com sede em São Paulo, a Plural atua em todo o país, especialmente em projetos de desenvolvimento sustentável focados na agricultura familiar, a partir de convênios com instituições públicas. “Os profissionais executavam trabalhos individuais e caminhavam para a prestação de serviços como pessoas jurídicas. A cooperativa uniu experiências e conciliou trabalho e capital de forma autogestionária”, afirma a advogada Ana Maria de Andrade.

divulgaçãoFibras do Sertão
Fibras do Sertão: com autonomia financeira, desafio é conquistar mais mercados

Mercado de preconceito

Segundo o coordenador de Comércio Justo e Crédito da Senaes, Antonio Haroldo Pinheiro Mendonça, um dos grandes gargalos dos empreendimentos solidários é a baixa escolaridade. “Dificulta a administração e coloca os trabalhadores em posição subalterna na comercialização de seus produtos”, explica. Além disso, há desconfiança e preconceito no mercado. A socióloga Ariane Favareto diz que os projetos coletivos representam a maioria dos trabalhos prestados pela Plural, mas assinala que o fato de estar estruturada como cooperativa “espantou” oportunidades de trabalho.

A desconfiança é maior quando cooperativas são formadas a partir de empresas que faliram e foram assumidas por trabalhadores. É o que a Cooperativa de Jornalistas e Gráficos de Alagoas vem experimentando desde que trabalhadores das duas categorias assumiram, há pouco mais de dois anos, as instalações da antiga Tribuna de Alagoas, em Maceió, depois que a empresa fechou as portas devendo R$ 5 milhões em salários e direitos a mais de cem funcionários. “Ficamos acampados quatro meses em frente ao jornal. Um dia percebemos que não havia mais nenhum diretor lá. Entramos e colocamos o jornal em circulação”, recorda o jornalista Antonio Pereira Filho, presidente da cooperativa, que tem 63 membros. Durante algum tempo, o jornal teve circulação semanal. Em agosto de 2007 passou a diário, rebatizado Tribuna Independente, hoje tem 32 páginas e é o segundo maior no estado. “Sentimos na pele a desconfiança de anunciantes e fornecedores, vítimas de calote dos antigos proprietários. A principal matéria-prima, o papel, temos de comprar à vista”, relata Pereira Filho.

Quando assumiram a antiga Conforja, metalúrgica de Diadema (SP), os trabalhadores também vivenciaram preconceito de clientes e fornecedores. Os metalúrgicos haviam experimentado, em 1996, o modelo de cogestão, mas não deu certo. No ano seguinte, arrendaram o parque fabril e fundaram a primeira cooperativa. A empresa estava em concordata e, com a produção retomada, outras três cooperativas foram criadas. Em 2002, quando adquiriram a fábrica em leilão – com financiamento do BNDES –, uniram as quatro na nova Uniforja.

“Foi um processo desgastante”, recorda Arildo Mota Lopes, diretor e um dos sócios-cooperados. “O mercado não acredita que o trabalhador consiga administrar.” Hoje a Uniforja está consolidada, produz anéis, flanges, conexões tubulares e outros itens. É fornecedora da Petrobras e do setor sucroalcooleiro. De seus 510 trabalhadores, 335 são cooperados. Em 2008, faturou R$ 244 milhões.

Cada cooperado recebe de acordo com a função exercida e a retirada obedece a um sistema chamado de um por oito. “Se a menor retirada for de R$ 2.000, a maior não passa de R$ 16.000”, explica Arildo. O lucro tem destino certo: 15% são distribuídos entre os sócios; 23% são reservados para a aposentadoria; 40% para investimento; 7% para ajudar outras cooperativas; e o restante custeia cursos de graduação e pós-graduação. Funcionários podem se tornar cooperados depois de três anos passando por assembleias e cursos sobre cooperativismo, gestão, código civil, contabilidade. Lopes lembra que a valorização do ser humano é princípio do cooperativismo e a solidariedade rege as relações na fábrica. “Mas da porta para fora é a competitividade do mercado que conta.” 

Central

Izabel

Para dar visibilidade aos empreendimentos solidários e viabilizar rodadas de negócios, a ADS inaugura a Conexão Solidária – 1ª Mostra Nacional de Comercialização dos Produtos e Serviços da Economia Solidária. O evento ocorrerá de 28 a 31 de outubro, no Centro de Exposições Imigrantes, em São Paulo. O objetivo é reunir mais de 300 organizações de todo o país. “Queremos que empresas e empreendedores solidários façam negócios. O evento é a porta de entrada para juntar as pontas do processo”, ressalta Ari Aloraldo do Nascimento, coordenador geral da ADS.

Além da mostra de produtos, a Conexão Solidária promoverá debates e conferências com governos, empresários, instituições bancárias e organizações civis. “Queremos despertar a atenção do mercado para produtos oriundos do trabalho decente e da preocupação com o meio ambiente e o desenvolvimento sustentável”, afirma Ari. Uma central permanente de comercialização de produtos deverá ser inaugurada pela ADS em breve, também em São Paulo.

Superar dificuldades

A manutenção de empreendimentos também é dificultada quando uma parcela dos participantes os vê como iniciativa passageira, enquanto segue em busca de emprego formal. A Cooperativa Mãos Amigas, de Porto Alegre, passa por um período desses. Teve 20 cooperadas unidas em 2002 na confecção de uniformes, camisetas e jalecos, e hoje só quatro. “As demais arrumaram emprego e saíram”, afirma Izabel Algares, presidente da cooperativa, dizendo que a média mensal de retirada atual é de R$ 500.

“Ainda predomina a lógica de preferir ser empregado a empreendedor”, avalia Gilmar Carneiro dos Santos, ex-presidente do Sindicato dos Bancários de São Paulo, um dos fundadores do Sistema Nacional de Cooperativas de Economia e Crédito Solidário (Ecosol) e coordenador de Crédito da Agência de Desenvolvimento Solidário (ADS) da Central Única dos Trabalhadores. “O capitalismo continua impregnado. O trabalhador ainda quer carteira assinada”, completa Antonio Carlos Spis, coordenador administrativo e financeiro da ADS. A inexperiência em gestão de negócios também é ponto sensível para a manutenção dos empreendimentos. “As escolas não ensinam as pessoas a ser empreendedoras”, destaca Gilmar. Por isso, desde que foi criada, há dez anos, a ADS dá apoio técnico e político a cooperativas. “Era uma dívida da CUT com essa parcela dos trabalhadores”, destaca Spis.

A partir da ADS foram fundadas a Central de Cooperativas e Empreendimentos Solidários (Unisol), que tem 453 empreendimentos filiados em 23 estados, e a Ecosol, que representa cooperativas de crédito na área rural. Além de parcerias com o governo federal, ambas contam com o Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae), Fundação Banco do Brasil, Petrobras, Rede Interuniversitária de Estudos e Pesquisas sobre o Trabalho (Unitrabalho) e Dieese. Juntas, ADS, Unisol e Ecosol conseguiram no BNDES linhas de financiamento de R$ 200 milhões para empreendimentos solidários, segundo Arildo, da Uniforja e presidente da Unisol.

Fontes solidárias
Senaes
A Secretaria Nacional de Economia Solidária faz o mapeamento das organizações e elabora políticas e ações interministeriais para o setor. O site do Ministério do Trabalho tem orientações e endereços das Superintendências Regionais do Trabalho (SRTs, antigas DRTs) em todo o país, que fazem a ponte entre as organizações e o poder público. www.mte.gov.br.

Fundação Banco do Brasil
Desenvolve ações voltadas para educação, capacitação, identificação e ligação de cadeias produtivas, obtenção de crédito e integração de tecnologias sociais. www.fbb.org.br.

Fórum Brasileiro de Economia Solidária
Reúne movimentos sociais e tem histórico de articulação no empreendedorismo solidário. www.fbes.org.br.

ADS
A Agência de Desenvolvimento Solidário/CUT articula movimentos autogestionários e atua para seu fortalecimento num processo de desenvolvimento sustentável e solidário. www.ads.org.br.