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O Rio de Janeiro continua…

Num cenário de maravilhas manchado pela violência, o carioca resiste com sua auto-estima, sua riqueza cultural e sua vocação para a alegria ao medo que já abala sua alma

Rodrigo Queiroz

Praia, Maracanã, Jardim Botânico… Melodia: “A gente tem que tentar driblar essa situação”

Os mil encantos da cidade maravilhosa já não bastam. É impossível ficar imune ao cenário de violência que agride o Rio de Janeiro. De um lado o Cristo, a praia, o futebol, as ruas musicais e a riqueza cultural ainda enchem os cariocas de orgulho. De outro, tiroteios, balas perdidas, jovens armados com fuzis em bairros controlados por facções criminosas cada vez mais dominam a cena. Tantas contradições afetam desde os que relutam a admitir os riscos aos que pensam em arrumar as malas. Como a estudante Vivian Guimarães, de 19 anos. Mesmo recém-aprovada no vestibular da PUC-RJ, com que tanto sonhava, ela já cogita seguir os passos da mãe em direção ao exterior.

Moradora do Leblon, bairro nobre da capital fluminense, Vivian já perdeu a conta de quantas vezes foi assaltada. Numa ocasião ela e a família ficaram quatro horas reféns de bandidos durante assalto à casa da avó, na Tijuca, zona norte. No início do ano, outro susto, quando foi perseguida a caminho do trabalho em São Cristóvão por um carro com vidro escuro, em plena luz do dia. “O carro colava, não me deixava mudar de faixa, parecia me forçar a entrar na Linha Vermelha. Graças a Deus vi um posto de gasolina e consegui encostar. Aí eles saíram em disparada. Eu amo o Rio, aqui é lindo, mas vivo com medo o tempo todo”, descreve a estudante, para quem a intenção de operações policiais como a no Complexo do Alemão é correta, mas é terrível para os moradores das favelas que formam o complexo.

Já a cantora, apresentadora de tevê e surfista Dora Vergueiro, de 31 anos, garante que nunca deixou de fazer nada por causa da violência, apesar de já ter presenciado tiroteios. “Acredito que a vida é um risco em qualquer lugar o tempo todo. O controle não está na nossa mão. Claro que é preciso ter bom senso, mas nada escravizante. A vida é feita de pontos de vista antagônicos desde que o mundo é mundo. Conviver com isso não é novidade, é um exercício diário”, opina.

O ex-lateral do Flamengo e da seleção brasileira Leovegildo Lins Gama Júnior, o Júnior, de 53 anos, concorda. O craque do futebol de areia, que se mudou ainda menino da Paraíba para o Rio de Janeiro, absorveu o espírito do carioca. Não deixa de ir aos sambas, ao Maracanã nem de andar com seus cordões e relógios. “Ao mesmo tempo que procuro evitar alguns trajetos.” Como vive na Barra da Tijuca, está acostumado a passar pela Rocinha ou pelo Vidigal. Ele persiste com suas saídas, mas nota alguns dos redutos da boemia mais vazios nos últimos tempos.

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Repeteco – Parece conversa de paulista, mas Vivian, moradora do Leblon, zona sul carioca, já perdeu a conta de quantas vezes foi assaltada

Pulou o muro

O sociólogo Geraldo Tadeu Moreira Monteiro, professor da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), reforça, com pesquisas, a percepção do craque de que o comportamento do carioca passa por mudanças. “A violência urbana e a criminalidade já foram incorporadas em seu cotidiano. O espírito brincalhão e acolhedor vem dando lugar à desconfiança, ao receio”, avalia. Segundo levantamento feito no ano passado pelo Instituto Brasileiro de Pesquisa Social, presidido por Monteiro, 63% dos cariocas dizem ter mudado de hábitos em função da violência – como deixar de sair de casa à noite, chegar mais cedo, evitar algum lugar que costumavam freqüentar, trocar itinerários, sair em grupo ou mudar o meio de transporte. Mesmo quem não sofreu diretamente alguma violência adota postura mais defensiva. Questionados sobre a possibilidade de se mudar da cidade maravilhosa, 51% dos cariocas admitiram que, se tivessem chance, o fariam.

Entretanto, o psiquiatra Antônio Manoel de Araújo Barata, da Associação Brasileira de Psicanálise, pondera que a violência no Rio de Janeiro é semelhante à de outras grandes cidades do mundo e que o receio da criminalidade não tem sido problema freqüente levado pelos pacientes.

Paulo Lins, de 49 anos, autor de Cidade de Deus, livro que deu origem ao filme, vê a auto-estima do carioca em baixa. “A classe média e as elites estão mais abaladas porque a criminalidade pulou os muros das favelas, e acho que, ao atingir as camadas mais elevadas da sociedade, deverá resultar em medidas mais eficazes no combate à violência”, avalia. Lins viveu até os 30 anos na favela Cidade de Deus, mora em Copacabana e conta que não dorme nas noites em que os filhos saem – e eles idem, quando o pai volta tarde. “Ao mesmo tempo que o carioca é um povo que anda e gosta da rua, o medo cresceu e está sempre junto da gente. Não chega a ser um medo que paralisa, mas é muito diferente você viver com medo”, afirma o autor.

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Estado Ausente Hélio: “Por que as autoridades não oferecem cursos, posto de saúde?”

Complexidade

Nascido e criado na favela de São Carlos, no Estácio, o compositor Luiz Melodia, de 56 anos, também diz que sua maior preocupação não é consigo, mas com seus filhos. “Qualquer telefonema mais tarde já assusta. Fico deprimido, por mim, pela minha família e por todos os moradores desta cidade tão bonita e, de repente, tão feia pela atitude do homem. Mas não dá para entrar na paranóia. A gente tem que tentar driblar essa situação porque o Rio é tão bonito. Não dá para deixar de ir às praias, ao Jardim Botânico ou ao Maracanã. Não podemos ficar à mercê da violência e viver numa prisão”, resume Melodia.

Gustavo Ferreira, de 39 anos, corretor de seguros, morador de um condomínio na Gávea, reconhece a complexidade de lidar com os contrastes do Rio. “A violência está próxima à minha porta, isso porque sou um privilegiado por morar na zona sul. Há pouco tempo um amigo foi assassinado. Procuro não me expor e tento manter a normalidade. A gente tem que tocar a vida para frente.”

Para Michel Misse, sociólogo e coordenador do Núcleo de Estudos da Cidadania, Conflito e Violência Urbana da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), o excesso de informação violenta e a dramatização que os meios de comunicação fazem em suas coberturas aumentam o temor. “O sentimento das pessoas nada tem a ver com a realidade. O morador de Copacabana se sente mais inseguro do que os de Bangu e Campo Grande, onde as taxas de homicídio são maiores. As pessoas têm acesso à informação sem experimentar a situação. Ou seja, existe a diferença entre a percepção real, que é como a realidade é interpretada, e a violência real. Por exemplo, a noite da Lapa está sempre cheia”, contesta Misse.

Zuenir Ventura, jornalista e autor de vários livros, entre eles Cidade Partida, não considera invenção da mídia. “Vamos até admitir que a mídia dramatize, exagere, mas ela não cria a realidade. A taxa de violência na cidade do Rio de Janeiro é insuportável. Existe um apartheid social em que as distâncias sociais são indecentes. Vivemos numa cidade partida do ponto de vista social que vem de muitos anos, desde a abolição da escravatura, por causa da forma como foi feita”, afirma o jornalista, que mora em Ipanema, distante de favelas, e já encontrou uma bala em sua varanda. “Bala perdida não escolhe cabeça”, diz.

A economia separa, a cultura une

Para escrever Cidade Partida Zuenir acompanhou durante 10 meses o dia-a-dia da favela de Vigário Geral, após a chacina que deixou 21 mortos em agosto de 1993. Ele destaca que hoje não seria possível passar dez meses entrando na favela, aproximando-se do chefe do tráfico, como fez na década de 90. “O tráfico mudou de escala, tem poderes econômicos e políticos. A criminalidade se aprimorou, possui armamentos modernos, não há mais a relação com a comunidade”, observa. “Estão mais cruéis, ousados. Trata-se de uma guerra econômica pós-moderna em que há produto altamente rentável. É como se você pudesse combater o mercado dando tiro”, analisa. Critica ainda a política de segurança destinada aos morros, que é sempre a da repressão. Exemplo disso: a megaoperação no Complexo do Alemão, onde “polícia entra na favela para matar” e que já resultou em dezenas de mortos e feridos, entre eles uma estudante que estava na sala de aula e uma criança.

No morro ou no asfalto, vive-se uma privação de liberdades. O taxista e compositor de samba Hélio Gonçalves Pinto Júnior, de 43 anos, mora próximo ao Complexo da Providência e conta que a escola da filha, de 8 anos, já cancelou as aulas por três vezes porque a polícia entraria num morro próximo. “É triste ver que só a polícia chega às favelas. Por que, em vez da polícia, as autoridades não oferecem cursos de teatro, de circo, de música, posto de saúde?”

Eliane da Silva, de 46 anos, que há 13 mora na Rocinha, diz que o medo da violência está em todos os lugares e não é diferente no Rio. “Sou caseira, não deixo de fazer nada na vida e não passo por apuros. Evito ir ver confusões. Gosto da Rocinha, tenho tudo daqui. Mas quando tem confronto com a polícia, o que é raro, não saio de casa nem para trabalhar. Acho que a minha situação vai ser pior quando minha filha de 13 anos começar a sair à noite”, afirma Eliane.

Para Zuenir Ventura, a cidade conta com uma dinâmica própria de compensação para suportar os inúmeros casos de violência: “Seja por meio da energia vital da natureza da cidade maravilhosa, seja por conta de um povo com uma vocação para alegria. O carioca e os brasileiros em geral são ciclotímicos. Temos a tendência de ir ao fundo do poço, ficar na maior depressão, e logo após na euforia. Da mesma maneira que vemos a indignação depois de um episódio trágico, temos a festa do réveillon com concentração de 2 milhões de pessoas na rua. No Rio, a cultura da cidade une o que a economia separa, porque a nossa vocação cultural é para o encontro, para a celebração.”

Cabral: “Vou até o fim”
A RdB procurou o governador do Rio de Janeiro, Sérgio Cabral Filho (PMDB), para que comentasse a relação entre o ambiente de violência e a auto-estima dos cariocas. Por e-mail, Cabral respondeu que o carioca sempre soube driblar as adversidades com muito bom humor e mantém sua auto-estima elevada e positiva. “Nós vamos vencer a violência e estamos trabalhando firmemente nisso e já com resultados concretos. A operação no Complexo do Alemão está sufocando o tráfico, que está com menos armamentos e menos dinheiro. Vou até o fim. Nada me fará recuar da opção clara pelo caminho civilizatório”, afirmou.

Cabral disse que o governo trabalha dentro de uma política de segurança que valoriza a estratégia, a inteligência e o trabalho integrado entre Polícia Militar, Polícia Civil e Força Nacional de Segurança. “Posso garantir que vamos agir de maneira responsável, que não vamos nos deixar intimidar e que vamos resgatar a dignidade de muitas comunidades carentes do Rio de Janeiro, hoje entregues aos bandidos. O presidente Lula, por meio do PAC, liberou recursos no valor de 3 bilhões de reais, que serão aplicados em obras de urbanização das favelas cariocas. Vamos criar acessibilidade nesses locais, para que os cidadãos dali se sintam parte integrante da cidade. Há três pilares na política de segurança: a presença policial, a urbanização e as ações sociais nas comunidades.”