Crônica

O teatro das mãos

Tricô e crochê, torno mecânico, carpintaria, jardinagem, culinária, rabiscos distraídos que fazemos quando conversamos... O trabalho manual concentra, cria sensação de paz, e traz alguma felicidade

Vicente Mendonça

Uma das atividades que mais me preenchem é a de trabalhos manuais. Gosto de desenhar, de dedilhar um violão, de costurar um botão de camisa, de lavar folhas, uma a uma sob a torneira, de descascar batatas… Entregar-se, pertencer às próprias mãos, traz um sentimento reconfortante.

Tive uma blusa de renda toda bordada por mim, quando eu era adolescente. Sobre cada flor eu pregava cinco contas brancas em círculo e, nas folhas, mais cinco, em fileiras reviradas. Não terminei o trabalho, e a blusa ficou perdida numa de minhas mudanças. Mudei-me constantemente, durante toda a minha vida mudei de casa, ou cidade. Talvez tenha me esquecido de uma casa onde morei. Mas a blusa jamais saiu de minhas recordações mais nítidas. Tenho diversos cadernos de desenho preenchidos. Até hoje desenho, rabisco, minuciosos traços e coloridos vão deli­neando meus seres imaginários: um gato de asas, uma sereia com chifres, bailarinas ou hermafroditas, um peito aberto por uma fenda de onde nasce uma flor, uma mulher-árvore com as mãos enterradas como se fossem raízes, ou um corpo de mulher composto de vários rostos, coisas assim.

Costumo fazer para as crianças aquele teatro de sombras com as mãos juntas; também, medir as coisas com os dedos estendidos, a contar quantos palmos. Dizem alguns cientistas que somos desenvolvidos tecnologicamente apenas porque temos nosso polegar, que nos permite a preensão.

Quando me entrego ao trabalho manual, parece que esqueço os problemas, me transporto para outros recantos do mundo, outras esferas muito mais bucólicas, puras, prazerosas, próximas às minhas origens ligadas à natureza, à memória animal. É como se me recordasse dos primeiros gestos humanos. Os gestos mais naturais são os manuais. Os mais sofisticados e civilizados são os olhares com significados específicos.

Segundo certas teorias antropológicas, talvez o primeiro gesto tenha sido, com um pequenino impulso lírico, o côncavo da mão para colher uma fruta; ou a concha, para beber água. A manuelage, como os franceses chamam a linguagem das mãos, é universal e milenar. Tem a idade do ser humano. Ninguém precisa aprendê-la.

Nascemos providos dos gestos, desde os primeiros impulsos obstinados de procurar o seio materno para sugar o leite, a mão fechada que revela o instinto de posse, o gesto radicular e profundo de pôr a mão sobre algo para se afirmar possuidor, a nossa obstinação em levar tudo à boca antes de ser capazes de escolher o que podemos comer… Parece que todos os demais gestos derivam dessa caudal original e autêntica.

O gesto nos revela, e, embora seja comum a todos, nos torna diferenciados e únicos. O gesto do qual resulta alguma coisa é, quase sempre, uma espécie de realização de nosso mundo inconsciente.

Todas as pessoas deveriam realizar trabalhos manuais, mesmo aquelas que não possuem o dom. Essas tarefas aperfei­çoam os gestos como expressão insubstituível da mente, como, por exemplo, tricô e crochê, torno mecânico, bordados, escultura em argila, carpintaria, pintura, jardinagem, culinária, miniaturas, caligrafia, ou mesmo um manuscrito garranchoso, ou aqueles rabiscos distraídos que fazemos quando conversamos ao telefone. O trabalho manual nos ensina a nos concentrar, cria em nós uma sensação de paz, e traz alguma felicidade.