ponto de vista

Para que todos trabalhem

O lema dos sindicatos europeus resgata valores que a onda neoliberal quis enterrar. Emprego é demanda social, não individual. Rever a jornada é promover solidariedade e qualidade de vida

A flexibilização laboral era fenômeno típico dos países da periferia do capitalismo. Enquanto no centro eles tinham pleno emprego, nós já éramos vítimas de várias formas de superexploração do trabalho, entre elas a flexibilização: trabalho sem contrato, sem carteira de trabalho e todos os outros direitos. Na verdade, isso se chama trabalho precário.

A substituição do mundo bipolar pela unipolaridade de hegemonia estadunidense e a passagem do modelo de regulação e de bem-estar social para o modelo neoliberal foram resultado e provocaram mudanças radicais na relação de forças entre capital e trabalho, entre empresários e trabalhadores.
Na Europa ocidental isso significou passar de 30 anos de pleno emprego para taxas de desemprego altíssimas. Além disso, as transformações no processo produtivo e nas relações internacionais acentuaram a imigração de trabalhadores entre países da periferia e do centro do capitalismo.

O projeto do governo francês pretendia, supostamente, diminuir o desemprego, acentuando a precarização laboral. O argumento tem sido o mesmo: barateando o custo da mão-de-obra, haveria mais contratações. Sabemos, por experiência, que é falso. Por aqui gerou mais dispensas de contratos formais e substituição por contratos temporários, o que não afetou o nível de emprego, mas piorou sua qualidade.

Na França, a novidade veio da tentativa de extensão da situação passível de contratações de empregos precários até os 27 anos. Significaria que trabalhadores poderiam ser contratados com custos bem mais baixos e sem direitos elementares – como indenização por dispensa, férias, 13º salário, previdência social, licença-maternidade. Isso representaria uma porcentagem bem alta do mercado de trabalho, pois há na Europa ocidental um contingente de jovens que nunca trabalharam, vivendo de seguro-desemprego. Mas lá também não há um contingente muito idoso nesse mercado, porque a aposentadoria se dá com idades relativamente menores do que nas outras regiões do mundo.

O movimento de resistência foi desatado a partir do movimento estudantil, alastrando-se depois para jovens trabalhadores, até chegar aos sindicatos, às centrais sindicais e aos partidos de esquerda. Tornou-se um movimento suficientemente amplo para vetar a possibilidade de o projeto ir adiante, apesar das declarações iniciais do governo de que não aceitaria negociar.
Os argumentos neoliberais vão na direção de alegar que a Europa ocidental teria menor competitividade do que os EUA. Esse seria o caso de França, Itália, Alemanha e de outros países, por apresentarem custos da mão-de-obra mais altos que os EUA, onde a precarização é maior.

O argumento é falso, porque é o dinamismo tecnológico e, principalmente, a exploração de mão-de-obra em países da periferia do capitalismo – como China, México, Indonésia, Paquistão, Índia, Brasil – que mantêm a competitividade das empresas dos EUA. E, por outro lado, o barateamento da mão-de-obra local pelo uso do trabalho dos imigrantes – tolerados, mas sem direito algum – e pela extensão da jornada de trabalho, porque os trabalhadores estadunidenses pegam novos empregos para recompor suas enormes perdas salariais.

Como resultado, os EUA passaram a ter a jornada de trabalho mais longa do mundo, superando o Japão. Enquanto isso, a Europa ocidental equilibra muito mais desenvolvimento econômico e social, com jornadas relativamente mais curtas, com mais direitos garantidos que nos EUA.

O lema das centrais sindicais européias sai fortalecido das manifestações que derrotaram o projeto de precarização das relações de trabalho do governo Chirac: “Trabalhar menos para que todos trabalhem”. O que significa retomar a bandeira da diminuição da jornada de trabalho, abandonada pelos governos de direita.

Emir Sader, articulista da agência Carta Maior, é professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), coordenador do Laboratório de Políticas Públicas da Uerj e autor, entre outros, de A vingança da História (Boitempo, 2004)