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O drinque das oito

Novelas do horário nobre exageram em cenas nas quais muitos personagens bebem muito. Para o autor de Viver a Vida, a ficção imita a realidade. Para especialistas, a ficção estimula

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Parte da paisagem: assim como o cigarro o foi em tempos passados, o copo virou elemento cênico indispensável

Capítulo 1. O céu azul é de Búzios (RJ). À beira da piscina, copos nas mãos, amigos conversam alegremente. À noite, antes de sair para um desfile de moda, Marcos (José Mayer) se aproxima de uma mesa repleta de bebidas. Enche o copo. Ao fundo, o trânsito de suas filhas na sala. Em primeiro plano, por mais de dez segundos, a mesa coberta de garrafas é a estrela da cena. Em outro ambiente, festa regada a muita bebida, encontros descontraídos. Capítulo 2. Helena (Taís Araújo) e Marcos aparecem em longas tomadas, longas como suas taças de champanhe. Capítulo 3. O copo protagonista é o de Renata (Bárbara Paz). Capítulo 4. Duas médicas (Daniele Suzuki e Christine Fernandes) encerram a noite com vinho. Os gêmeos Miguel e Jorge (Mateus Solano) tomam cerveja com amigos na pizzaria. Sandra (Aparecida Petrowsky), irmã de Helena, grávida, vai no gargalo mesmo. Capítulo 5. Helena aparece chapada. Marcos, dessa vez, está em sua mesa de trabalho, o copo também. Numa reunião, regada a loira gelada, outros personagens discutem projetos de arquitetura, nem parece que trabalham. Betina (Letícia Spiller), prá lá de alegrinha, dá carona para Tereza (Lília Cabral), que de tão embriagada cai ao desembarcar. Dona Noêmia (Lolita Rodrigues), mãe de Marcos, é advertida duas vezes por sua dama de companhia para ir devagar com o champanhe. Seria exagero dizer que Viver a Vida é, antes de tudo, um porre?

Conhecido por abordar temas relevantes em suas tramas, o autor Manoel Carlos considera o alcoolismo um dos maiores flagelos sociais. “O álcool, para desgraça nossa, é droga lícita. Por essa razão tenho abordado o alcoolismo, de uma maneira ou de outra”, diz. O tema apareceu em Por Amor (1997), Laços de Família (2000), Mulheres Apaixonadas (2003), Páginas da Vida (2006). O novelista vem lendo durante os últimos anos sobre o crescente número de jovens, grande parte composto de mulheres, que se entregam ao vício, justificando-o como uma necessidade social. “Em Viver a Vida, a personagem será Renata. O nome que se dá a esse tipo de alcoolismo é drunkorexia. A jovem pensa que diminui, neutraliza ou elimina calorias do álcool deixando de se alimentar, para manter-se magra”, explica. “É um tremendo engano, já que estudos provam que o álcool engorda mais que os alimentos. Acho que a novela pode dar um alerta, sem precisar sem didática.”

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Em Duas Caras, Eri Johnson era Zé da Feira. Para compor seus sambas, o personagem precisava antes calibrar o teor alcoólico

Clima de tolerância

Especialistas, no entanto, veem com preocupação uma trama na qual muitos personagens bebem muito. Para começo de conversa, gera no público a falsa impressão de que a maioria das pessoas costuma beber. E não é verdade. Ilana Pinsky, coordenadora do ambulatório de adolescentes da Unidade de Pesquisa em Álcool e Drogas (Uniad), da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), diz que metade da população brasileira não toma nada. Na outra metade, porém, 50%, ou seja, um quarto da população, têm algum distúrbio ligado ao álcool. Os dados são do 2º Levantamento Domiciliar sobre Uso de Drogas Psicotrópicas no Brasil, de 2005. O estudo revelou que 12,3% das pessoas com idade entre 12 e 65 anos são portadoras de alcoolismo e cerca de 75% já beberam alguma vez na vida. Os resultados também indicam o consumo cada vez mais precoce e sugerem a necessidade de revisão das medidas de controle, prevenção e tratamento. 

“Esse excesso é ruim principalmente para adolescentes, que são induzidos a acreditar que todos bebem, que beber é normal, que a bebida não causa danos e é a responsável pela alegria em encontros de amigos. Convencer o público de que todos, ou quase todos, bebem só interessa aos fabricantes do setor”, diz Ilana. Outro complicador, segundo a especialista, é que as novelas sempre têm personagens problemáticos, violentos ou dependentes químicos. O público então tende a absolver os demais, “normais”, que podem beber à vontade. Afinal, não causam confusão, não dão vexame e são bem-sucedidos. “Um agravante relacionado a isso, que o folhetim não aborda, é que a maioria dos acidentes de carro acontece com quem não é alcoolista”, diz. Ou seja, é gente “normal”, que bebe socialmente e sempre acha que está sob controle. “Se querem tanto fazer marketing social, porque não mostram amigos discutindo sobre quem vai voltar dirigindo depois que beberem?”, sugere a psicóloga.

Ana Cecília Marques, coordenadora do Departamento de Dependência Química da Associação Brasileira de Psiquiatria, explica que o alcoolismo é uma doença crônica, incurável, determinada por fatores biológicos e psicossociais. “Entre os aspectos psicossociais que desencadeiam o beber está a propaganda, que por meio de técnicas diversas, como colocar o produto para ser bem vendido em uma novela, influencia principalmente os adolescentes”, diz. Para ela, cenas que exibem álcool num contexto que envolve sonhos, desejos, fantasias e estilos de vida emocionalmente atraentes têm o mesmo efeito da propaganda, embora sejam peças de ficção. O consumidor é influenciado não apenas por anúncios comerciais – sempre com pessoas e estilos de vida associados a riqueza, prestígio, poder, aprovação social, sucesso, fama, beleza, sensualidade etc., como se fossem modelos a ser seguidos –, mas pela propagação e glamorização do hábito por meio da indústria cultural.

Para o psiquiatra Ronaldo Laranjeira, coordenador da Unidade de Pesquisa em Álcool e Drogas da Unifesp, a propaganda do álcool busca, além de fazer com que os consumidores tenham preferência por determinada bebida, criar um clima social de tolerância, visando nitidamente aumentar o consumo. 

Coordenador da Unidade de Dependência Química do Hospital Mãe de Deus, de Porto Alegre, e conselheiro da Associação Brasileira de Estudos sobre o Álcool e Outras Drogas (Abead), Sérgio de Paula Ramos observa que a mídia só consegue alavancar o consumo porque a indústria do álcool é uma grande financiadora e porque a lei é permissiva. Em 2007, o governo federal aprovou a Política Nacional sobre o Álcool. O Decreto nº 6.117 explicita a preocupação governamental com o alcoolismo e define ações para inibir e prevenir danos à saúde e situações de violência e criminalidade associadas ao uso de bebidas alcoólicas. Para isso sair do papel, porém, são necessárias várias medidas, como leis restritivas à propaganda. Um projeto apresentado pelo Executivo no começo do ano passado para limitar a propaganda, que deveria ser votado com urgência, sucumbiu ao lobby da indústria. Pela lei em vigor, só é considerada alcoólica a bebida com mais de 13º GL (Gay-Lussac). Cervejas e vinhos ficam de fora. Há também um projeto de lei do Senado que propõe a proibição de anúncios de bebidas. 

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Renata, vivida por Bárbara Paz, substitui a comida pelo álcool

Alto teor de merchan

Sérgio de Paula Ramos conta que numa reunião da Organização Mundial da Saúde em Genebra, na Suíça, para discutir estratégias de redução do consumo de álcool, mostrou aos colegas de outros países slides de comerciais de bebidas produzidos no Brasil. “Eles ficaram boquiabertos, porque em nenhum lugar do mundo a publicidade de bebidas é tão intensa e escancarada”, diz. Segundo ele, a irresponsabilidade dos fabricantes e da mídia já ultrapassou os limites éticos e trouxe a percepção de que era possível ampliar o nicho de mercado ao colocar na mira adolescentes, crianças e idosos. “Não por acaso, pesquisas revelam pessoas de todas as idades bebendo cada vez mais”, diz. 

Ramos refuta o efeito conscientizador da novela: “Se a novela tem 100 capítulos, o personagem alcoolista bebe em 90 deles. Nos 10 finais ele se recupera. Mas não são mostradas cenas com as dificuldades enfrentadas durante o processo de recuperação”. A longa lista desses personagens inclui Zé da Feira (Eri Johnson, em Duas Caras, de Aguinaldo Silva); Heleninha Roitman (Renata Sorrah, em Vale Tudo, de Gilberto Braga); Santana (Vera Holtz, em Mulheres Apaixonadas); Orestes (Paulo José, em Por Amor); Bira (Eduardo Lago, em Páginas da Vida).

O psiquiatra ressalta ainda que, se a saúde pública não sensibiliza os gestores, o alcoolismo chama a atenção por suas consequências às contas públicas. O gasto nacional com saúde representa cerca de 7,6% do PIB, enquanto a indústria da bebida movimenta recursos equivalentes a 3,5%, segundo dados do Ministério da Saúde e da Associação Brasileira de Bebidas. Será que a receita compensa as despesas com tratamento e doenças, problemas gerados pela violência doméstica, pagamentos de pensões devido a acidentes, tentativas e homicídios consumados etc.? Os gastos públicos do Sistema Único de Saúde (SUS) com tratamento de dependentes de álcool e outras drogas em unidades extra-hospitalares, como os Centros de Atenção Psicossocial Álcool e Drogas (CAPSad), atingiram, entre 2002 e junho de 2006, a cifra de R$ 37 milhões. No mesmo período, outros R$ 4 milhões foram gastos em procedimentos hospitalares de internações relacionadas ao uso de álcool e outras drogas.

Coordenador do Programa de Orientação e Assistência a Dependentes (Proad), vinculado à Unifesp, o psiquiatra Dartiu Xavier da Silveira desconhece estudos que associem novelas ao hábito de beber da população, mas acredita na influência. O glamour da mulher bonita e bem-sucedida segurando a taça de champanhe exerce o mesmo fascínio que, no passado, o cigarro exerceu no cinema. “Quanta gente não começou a fumar imitando divas e heróis dos filmes?” Silveira conta que conheceu na Europa iniciativas de produtores de cinema e vídeo que, antes de gravar e levar ao ar suas produções, submetem o roteiro à análise de especialistas. “É preciso ter a certeza de que aquela cena, da maneira como foi pensada, não levará mensagens destrutivas ao público”, diz. Manuel Carlos não discorda: “Todo o assunto (drunkorexia) foi levantado pelas minhas três pesquisadoras. Tenho todas as informações de que necessito”, garante. 

Criativo, simpático, extrovertido

Hugo

O publicitário Hugo Leal tem 59 anos e está há 25 sem beber. Sua história, aliás, poderia ser resumida e apresentada no final de um capítulo de Viver a Vida. Começou aos 12 anos, quando ganhou um garrafão de vinho numa quermesse e o “enxugou” rapidamente com os amigos. Os meninos passaram mal, precisaram ser levados para casa. Hugo se sentiu “forte” para a bebida por não ter ficado ruim. Sob efeito do álcool, começou a perceber-se mais criativo. E mais simpático, bonito, desinibido, extrovertido…

Cursou matemática, filosofia e comunicação, sempre “bebaço”, como diz. Para ficar acordado à noite e manter os efeitos do álcool, juntou anfetamina e cocaína. Logo começou a escrever roteiros de filmes, vídeos, eventos, trabalhou em jornais e agências. Por causa da bebida – hoje ele sabe – sentia-se gênio e era líder em todo lugar que chegava. Começou a achar que podia tudo: já não pagava impostos, desobedecia regras e chutava o balde nas redações e por onde passasse. Virou frila e casou 11 vezes. Aos 31 anos tinha uma casa noturna, mas bebeu tudo o que faturou, e faliu. Não arranjou mais trabalho e vivia de bar em bar recitando poemas em troca de bebida. Chegou a achar que vida estável não era para ele. Achava-se um poeta. “Até que um dia, num bar, um cara falou: ‘Pode beber, mas nada de poesia!’” Bebeu calado.

A ficha começou a cair. Foi para casa chapado, como sempre, e a mulher anunciou que iria embora. Foi dormir sentindo-se um gênio incompreendido e acordou com a certeza de que era um doente. Foi para os Alcoólicos Anônimos e fez consigo um pacto de que sairia dessa. Chegou a passar mal por causa da falta do álcool no cérebro. Mas nunca precisou de ajuda médica. “Tenho de fazer por merecer estar vivo”, diz. Hoje trabalha, vive bem e dá palestras sobre sua história, alertando que as armadilhas do álcool estão por toda parte, até na novela das oito.