história

Passado que não passa, futuro que não chega

Centenário das mortes de Machado de Assis e de Artur Azevedo traz reflexões sobre o fim do século 19, se é que ele findou

acervo iconographia

O século 19 brasileiro só terminou em 1910. Já sob o governo do marechal Hermes da Fonseca, foi deflagrada a Revolta da Chibata, liderada pelo marinheiro João Candido, que graças ao episódio ganharia a alcunha de “O Almirante Negro”. Na Marinha os castigos corporais com chibata foram abolidos em 1889, com a proclamação da República. Mas foram restabelecidos em 1890. Diante da marinhagem, na maioria constituída por negros, mulatos, caboclos, a oficialidade, predominantemente de ascendência européia, só se sentia segura se tivesse tal instrumento para impor disciplina. As penas falavam em pelo menos 25 chibatadas em público. Ao fim de novembro daquele ano um marinheiro recebeu 250. O castigo deflagrou a revolta.

Os amotinados apoderaram-se de alguns navios em frente à capital federal e ameaçaram bombardeá-la. Pediam o fim da chibata, melhorias na alimentação e nas condições de trabalho. Enquanto o restante da esquadra preparava-se para atacar os amotinados, o Parlamento votou uma anistia e o fim dos castigos corporais. Mas o triunfo dos revoltosos foi breve. Muitos foram confinados na Ilha das Flores, onde a pretexto de nova rebelião foram atacados e massacrados mesmo depois de se terem rendido. Centenas foram deportados para províncias do norte, onde nunca chegaram, mortos que foram pelo caminho. Quase uma vintena foi jogada num calabouço subterrâneo e sufocada com cal viva. Apenas dois não morreram, um deles João Candido, que, expulso da Marinha, viveu de pequenos expedientes até a década de 1960.

O episódio é baliza da vida brasileira, esse contínuo choque de um passado que não passa e de um futuro que não chega. É verdade que pôs fim à última cicatriz formal da escravidão. O Brasil comprara modernos cruzadores e couraçados na Europa. Os marinheiros, muitos ex-escravos ou filhos de escravos, adestravam-se na Europa para lidar com o maquinário. Por outro lado, mostra como o pacto surdo entre as elites brasileiras logo se reafirmou na perseguição e extermínio dos que ousaram “ir além do seu galho”, reivindicando com as armas de que dispunham um tratamento mais humano.

Mas o término do século 19 (se é que se completou até hoje…), na verdade, dera sinais um pouco antes. Dois deles em Paris: em 1901 Santos Dumont fez a primeira circunavegação da Torre Eiffel com seu balão dirigível; e em 1906 fez o vôo do 14-Bis no Campo de Bagatelle. Transformou-se num dos personagens que o crítico de cinema Paulo Emílio Salles Gomes chamava de “Bodes Exultórios” da brasilidade, e foi saudado pela marchinha que fez história: “E a Europa curvou-se ante o Brasil…”. Tudo ainda sob o clima da belle époque parisiense que antecedeu a Primeira Guerra Mundial.

Letras e palcos

Mas como “sentimento do tempo” mais propriamente o século 19 começou a terminar em 1908. É que nesse ano dois representantes eminentes do “espírito do século”, tão grandes quanto contrastantes, desapareceram da vida carioca e brasileira. Em 29 de setembro morria Machado de Assis, aos 69 anos, já reconhecido como primeiro nas letras brasileiras, presidente da Academia. E em 22 de outubro desaparecia o dramaturgo maranhense Artur Azevedo, aos 53 anos, reconhecido como o primeiro nos palcos brasileiros. Eram amigos. Artur dedicara a Machado seu primeiro livro de contos, de 1889. Juntos, participavam das rodas literárias da capital e fundaram a Academia Brasileira de Letras, modelada pela francesa, entre 1896 e 1897. Machado de Assis ocupava a cadeira de número 23, cujo patrono era José de Alencar, e Artur Azevedo a de número 29, e o seu patrono era Martins Pena.

Eram e foram dois escritores muito diferentes, no temperamento e no destino, durante suas vidas e depois de suas mortes. Mas tiveram em comum a faceta de reinar em seus respectivos domínios, embora a fortuna crítica de ambos seja muito diversa. Machado de Assis vinha de família muito pobre, do subúrbio carioca. Começou a vida intelectual como tipógrafo, depois como colaborador dos jornais da Corte. Sua primeira realização de vulto foi tornar-se o melhor crítico de teatro brasileiro do século 19. Mas fez carreira literária como cronista e, sobretudo, como contista e romancista.

A fortuna crítica (conjunto de artigos e livros escritos sobre a obra de um escritor) atravessa o século 20 com abundância. Todos os grandes críticos e pensadores da ficção brasileira se mediram, alguma vez, com sua obra: Sílvio Romero, José Veríssimo, Alcides Maya, Augusto Meyer, Lúcia Miguel Pereira, Astrojildo Pereira, Afrânio Coutinho, Mário de Andrade, Eugenio Gomes, Brito Broca, Raimundo Faoro, Antonio Candido, Roberto Schwarz, Alfredo Bosi, Jean-Michel Massa, John Gledson, apenas para citar alguns. Sua obra chegou ao século 21 envolta numa aura de contemporaneidade perene e incluída na pauta dos estudos acadêmicos europeus e norte-americanos.

Mais ainda: sua obra tornou-se pedra fundamental na reflexão não só sobre a literatura brasileira, mas sobre o próprio Brasil. Machado de Assis é hoje tido e lido como o escritor do século 19 que mais bem interpretou essa maldição que se abate sobre a vida de nossa sociedade de modo ao mesmo tempo intermitente e permanente: como no caso da Revolta da Chibata, o passado que não passa e o futuro que não chega.

Acervo academia brasileira de letrasPanelinha
Criado em 1901, o grupo realizava encontros de escritores e artistas. De pé: Rodolfo Amoedo, Artur Azevedo, Inglês de Sousa, Olavo Bilac, José Veríssimo, Sousa Bandeira, Filinto de Almeida, Guimarães Passos, Valentim Magalhães, Rodolfo Bernadelli, Rodrigo Octavio, Heitor Peixoto. Sentados: João Ribeiro, Machado de Assis, Lúcio de Mendonça e Silva Ramos

Alicerces íntimos

Tradicionalmente, a crítica dividiu a obra machadiana em duas fases, a de um romantismo tardio e a de um realismo que permanece até hoje de vanguarda. Para ficarmos na ficção, à primeira pertenceriam os romances e contos escritos antes de 1881, como Contos Fluminenses, Ressurreição, A Mão e A Luva, Helena e Iaiá Garcia, entre outras obras. Na segunda estariam os grandes clássicos machadianos, como o conto O Alienista, os romances Memórias Póstumas de Brás Cubas, Histórias sem Data, Quincas Borba, Dom Casmurro, Várias Histórias, Páginas Recolhidas, Esaú e Jacó, Relíquias da Casa Velha, Memorial de Aires, este último publicado depois da morte da mulher, Carolina, e um pouco antes da sua. Machado de Assis passou em revista todo o Segundo Império, algumas vezes atravessando seus limites, seja para antes (raramente), seja para depois (como em Esaú e Jacó). Lido a partir de hoje vê-se que, embora levasse vida pública modesta e recatada, embora fosse monarquista liberal, ou melhor, republicano desiludido, em sua literatura não ficou pedra sobre pedra daquele mundo do século 19 e de sua “continuação” no 20.

Machado recorta o universo ético contraditório da elite brasileira, e expõe os alicerces íntimos da construção de um mundo onde tudo e nada valem ao mesmo tempo. Não há princípios, não há indivíduos, não há vontades fortes em conflito em nome de valores que julgam universais ou eternos. O que há é só e sempre acomodação, favor, clientelismo, oportunismos. Sem desmerecer os demais livros, pode-se ressaltar dois extremos, Memórias Póstumas de Brás Cubas e Dom Casmurro. No primeiro, o ponto de vista é o de um defunto que escreve suas memórias, evocando uma vida insossa, só movimentada por uma relação de adultério com sua paixão Virgília. Assim mesmo a paixão se realiza mitigada, pois a uma fuga romântica para a Europa ou para a roça, ambos preferem compartilhar o seu brilho na Corte (todos sabem do caso, até o marido “enganado”) com os encontros obscuros numa casinha suburbana, onde vegeta uma pobre senhora que acaba morrendo miseravelmente.

Em Dom Casmurro temos as memórias escritas por um rico herdeiro das propriedades maternas que se casa com a moça pobre (Capitu, uma das personagens mais fascinantes da literatura brasileira) que ele ama de verdade mas não compreende, em sua busca de ascensão e brilho na crepuscular Corte do século 19. Termina acusando-a de um adultério, num gesto onde se confundem observação e fantasia, onde a primeira fantasia e a segunda observa. O resultado é a trágica mas quieta dissolução de duas vidas, sem alardes, sem estrépito, sem vontades que se arrostam, apenas conveniências que se acomodam.

Esse mesmo “desossamento” ético fez parte dos contos, crônicas e do teatro de Artur Azevedo. Chegando à Corte em 1873, ele imperou num gênero que faria história até meados do século 20: o teatro de revista, que relia os acontecimentos do ano anterior, com números feéricos de dança, canto e correrias com dezenas de personagens. Além de, entre 1878 e 1908, produzir essas revistas anuais, Azevedo criou dezenas e dezenas de comédias, operetas, dramas, artigos e crônicas. Seus melhores testamentos teatrais são A Capital Federal, de 1897, em que atravessa o Rio de Janeiro com seu olhar clínico, mas bonachão e alegre, ao contrário do vetusto de Machado; e O Mambembe, de 1904, declaração de amor ao teatro, com a qual um grupo do Rio percorre o interior do Brasil.

Com a morte de ambos, cujo centenário é lembrado neste ano, começou a fanar-se o mundo intelectual do século 19, embora suas cicatrizes culturais, sociais, políticas e econômicas permaneçam vivas. Em 1909 morria tragicamente, num tiroteio movido a ciúme, Euclides da Cunha, autor de Os Sertões, espécie de summa teológica de interpretação do Brasil do ângulo do pensamento positivista do fim do século 19, inspirador do movimento republicano que desaguou na República Velha, dos Coronéis, que subjugou os marinheiros de 1910 e perdurou até 1930. Em 1910, no começo do ano, morrera em Washington, onde era embaixador, aos 50 anos, Joaquim Nabuco, o “Tribuno da Abolição”. Não testemunhou a traição do fim do ano que exterminou os marinheiros cujo sacrifício aboliu de vez a chibata.

Sobre o Brasil de herança escravista e emperrado, Machado e Azevedo deixaram, cada um a seu modo, seu legado – aquele mais engalanado hoje, este mais modesto. Seu brilho foi seu tribuno para a posteridade. Os marinheiros não tiveram seu tribuno. Mas nem por isso seu legado tornou-se menos importante, inclusive como marca tão indelével quanto a boa literatura e o bom teatro sobre esse Brasil do passado que não passa e do futuro que não chega.