Brasil

Pobre município rico

Dominada por grandes proprietários que nem sequer vivem na cidade, Campos Lindos tem a maior sojicultura do Tocantins, e o maior índice de pobreza do país – 84%

Jane Cavalcante

Pobreza: ignorando a miséria o ex-governador colocou o seu nome na cidade

Aos olhos dos grandes produtores de municípios como Campos Lindos (TO), soja é sinônimo de riqueza. O cultivo do grão pelo Projeto Agrícola Campos Lindos movimentou R$ 74,3 milhões no ano passado, 3.377% mais do que há uma década. No período, a produção do grão cresceu de 9.300 para 126 mil toneladas, aumento de 1.346%.

Multinacionais como Bunge e Cargill contribuíram para a expansão da monocultura com a instalação de silos de armazenamento, compra antecipada de produção e fornecimento de insumos. A cidade se tornou campeã estadual no cultivo e exportação de soja.

Essa posição, no entanto, não se reflete na realidade dos cidadãos “comuns”. Campos Lindos ocupa o primeiro posto entre os municípios do país no Mapa de Pobreza e Desigualdade, do IBGE, divulgado no final de 2008. O estudo revelou que 84% da população vive na pobreza, dois terços dela na condição de extrema indigência, ou seja, sem ingerir o mínimo de calorias diárias para sobreviver.

A cidade mudou o nome original de Montes Lindos para ganhar o sobrenome do primeiro governador do Tocantins, José Wilson Siqueira Campos (PSDB). Quando ainda fazia parte do estado de Goiás, no início dos anos 1980, a área do projeto em questão passou pela primeira “titulação” suspeita, com terras alienadas sem os ritos legais. Na ocasião, processo conduzido pelo Instituto de Desenvolvimento Agrário de Goiás (Idago) congratulou 27 proprietários vindos de outras regiões do país (parte produtores de grãos, parte especuladores imobiliários), com áreas de mais de 2 mil hectares.

O Projeto Agrícola Campos Lindos surge na segunda “titulação”, em 1997, na qual o governador homenageado declara como de utilidade pública (sob a alegação de improdutividade) os 105,6 mil hectares de terras da antiga Fazenda Santa Catarina, então desapropriada. Pequenos agricultores, cerca de 80 famílias com média de 40 anos de posse da área, receberam indenizações de R$ 10 por hectare.

Em 1999, a Federação da Agricultura e Pecuária do Estado do Tocantins (Faet) indicou alguns de seus representantes para tomar parte dessa reforma agrária às avessas. À época presidente da Faet, a hoje senadora e presidente da Confederação de Agricultura e Pecuária (CNA), Kátia Abreu (DEM-TO), e seu irmão Luiz Alfredo receberam lotes de 1.200 hectares. O presidente da Companhia de Promoção Agrícola (Campo) àquela época, Emiliano Botelho, recebeu 1.700 hectares. Pessoas próximas ao Instituto de Terras do Tocantins (Itertins) também foram atendidas. Procuradas pela reportagem, não responderam às indagações.

Sem nunca obter licenciamento ambiental, o primeiro pedido da Faet, de 2000, encaminhado ao Instituto Natureza do Tocantins (Naturatins), não previa impactos socioambientais. No mesmo ano, áreas de desmatamento ilegais foram flagradas pelo Ibama e pelo Ministério Público Federal no Tocantins. Nenhum dos pontos dos planos de manejo foram cumpridos. Atualmente o requerente da licença é a Associação de Plantadores do Alto Tocantins (Planalto), formada pelos fazendeiros. “Para fazer o projeto funcionar, houve um atropelamento de suas fases”, afirma o prefeito de Campos Lindos (TO), Jorlênio Menezes Santos (PMDB). “Até hoje não conseguiram resolver bem a questão ambiental.”

Em novembro de 2003, fiscais do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) encontraram 20 pessoas em condições análogas à escravidão no Lote 64 da Fazenda Santa Catarina (conhecida como Fazenda São Simeão). O responsável, Iakov Kalugin, está na atual “lista suja” do trabalho escravo.

Canjica por R$ 1

Cada copo de canjica tirado da panela quente de Lucinda Campos Rodrigues, 47 anos, ex-trabalhadora rural, é vendido por R$ 1. Na região desde 2001, ela mantém nove crianças (quatro filhos em idade escolar, três netos e dois sobrinhos) com renda reforçada pelo programa Bolsa Família.

Lucinda mora numa região em que o único posto de saúde, na área central, não tem estrutura para partos ou cirurgias, laboratório ou leitos. Sem médicos suficientes, a cidade encaminha casos graves para municípios vizinhos. “Não há sequer os remédios mais simples contra vermes”, descreve a freira Ilda Maria de Oliveira, que atende os moradores desamparados que a solicitam em busca de fórmulas caseiras e de massagens. Parte das doenças é fruto da falta de saneamento básico e da desnutrição. “Quem vem para cá vem atrás do dinheiro. Os filhos daqui não recebem os benefícios que deveriam receber”, desabafa.

Com 7.600 habitantes, Campos Lindos também sofre com falta de água tratada e escolas insuficientes (são duas, uma de ensino fundamental e outra de médio). A energia elétrica é inacessível financeiramente à maioria da população e a arrecadação municipal chega a R$ 600 mil por ano, segundo o secretário de Finanças, Genelito de Morais.

A isenção do Imposto de Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) para as empresas de soja obriga a gestão estadual a repassar pequena parcela dos outros impostos ao município. A Cargill alega que não recebe benefícios fiscais (federal, estadual ou municipal) e não dispõe de financiamentos públicos. “O principal problema é que a maioria dos produtores não mora no município e, com isso, não temos o efeito multiplicador que temos visto em outras regiões”, justifica a empresa. A Bunge não respondeu à reportagem.

Maurício Hashizume é jornalista da Repórter Brasil. Colaborou Jane Cavalcante