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Pode parar

Depois de anos vendo seu tempo, sua saúde e sua vida se perder no trânsito e nos engarrafamentos, os cidadãos das grandes cidades tentam se mexer para superar o caos

paulo pepe

Algumas das principais metrópoles do mundo tentam, neste dia 22 de setembro, organizar mais um puxão de orelhas coletivo, que serve para autoridades e populações. Será a 11ª edição do Dia Mundial Sem Carro, mobilização que começou na França há uma década e, gradualmente, vem conquistando adeptos pelo mundo, em quase uma centena de cidades. No Brasil, prefeituras importantes como as de São Paulo e do Rio de Janeiro aderiram modestamente à iniciativa. Neste ano, porém, a capital paulista terá reforços da própria sociedade civil.

O objetivo é fazer a população refletir sobre os danos causados pelo emprego descontrolado do transporte individual. No último ano, somente na maior cidade da América do Sul, acidentes de trânsito tiraram a vida de 1.400 pessoas, enquanto 2.500 morreram por problemas causados pela poluição – dano que levou outras 50 mil aos hospitais. Este ano, o 22 de setembro cai num sábado, o que pode criar um clima de “festa” que ajude a fixar a existência da data. Mas, num dia normal, São Paulo funcionaria sem carro? O empresário Oded Grajew, do Movimento Nossa São Paulo: Outra Cidade – uma das entidades que realizarão atividades no dia –, diz que o objetivo não é “demonizar” o uso dos carros. “Eles têm sua função, só não poderia ser a principal”, explica ele (leia entrevista em destaque).

A situação caótica não é obra do acaso, mas sim de sucessivos governantes que jamais tiveram olhar para o futuro. Nos últimos 40 anos, por exemplo, São Paulo passou por uma triste inversão de meios de mobilidade. Há quatro décadas, 68% dos modos de transporte eram coletivos, contra 32% do transporte individual. Hoje, o individual já responde por quase 55% dos deslocamentos, enquanto o serviço de transporte coletivo está longe de acompanhar a expansão econômica e demográfica.

Luana Moraes Vieira, 23, moradora de Guaianases, zona leste de São Paulo, dedica cerca de três horas do seu dia para ir e voltar do trabalho, na Luz, região central. “Pego todo dia o metrô cheio, se venho de trem é a mesma situação”, conta. A volta é pior: “Na estação Sé, você mal consegue entrar, é um empurra-empurra dos infernos”. A rotina tumultuada, além do estresse e do cansaço, guarda riscos. Luana já chegou a cair no vão entre o trem e a plataforma da estação Guaianases, em meio à agitação provocada pela superlotação. “A sorte é que as pessoas me tiraram antes do trem começar a andar. E já vi isso acontecer com muitas pessoas. É uma barbárie.” Em meio ao caos, quem pode anda de carro, por pior que seja o tráfego. E, quanto mais carros nas ruas, mais generalizados são os prejuízos aos deslocamentos.

Paulo Pepeluana
Precisa crescer – Luana: metrô pequeno para o tamanho da cidade

Metrô, óbvio

Com ruas e corredores de ônibus cada vez mais intransitáveis, a expansão do metrô deveria ser solução. E essa percepção não é apenas de técnicos, mas também da maioria dos paulistanos, segundo pesquisa divulgada em julho pelo Datafolha. E situações como a de Luana mostram que o metrô de São Paulo já não dá conta de carregar tanta gente. Apesar de sua boa avaliação entre os usuários e de transportar até 3 milhões de passageiros por dia, possui várias deficiências – a maior delas sua pequena extensão.

No total, são 61,3 quilômetros, divididos em quatro linhas, que somam 55 estações. Cidades como Nova York, Paris e Londres, que têm metrô desde o século 19, agregam centenas de quilômetros de linhas, e não é exagero afirmar que há uma estação em cada esquina. Comparação mais realista pode ser feita com a Cidade do México, cuja região metropolitana tem população semelhante à de São Paulo: são 198 estações, 225,3 quilômetros de trilhos (260% mais que São Paulo). Santiago do Chile, com metade da população paulistana, tem 85 estações e 84,4 quilômetros de trilhos (37% mais).

Ou seja, os governos não levaram muito a sério a importância do metrô nas últimas décadas. Subordinada ao governo do estado, a Companhia do Metropolitano inaugurou sua primeira linha na cidade (1-Azul, trecho Norte−Sul) em 1974. A linha 3-Vermelha (Leste−Oeste) começou a operar em 1979. Uma nova linha (2-Verde, que passa sob a Avenida Paulista) só foi entregue – parcialmente – em 1991. O metrô mexicano, que iniciara suas obras praticamente na mesma época que o da capital paulista, em 1981 já contava com 60 quilômetros de trilhos, atual extensão do paulistano.

As promessas de que essa realidade vai mudar estão sempre presentes. O Plano 2007-2010 da Secretaria de Transportes Metropolitanos do estado prevê investimentos de cerca de 16 bilhões de reais no setor – o que equivale a uma média de 4 bilhões por ano –, tendo como eixo principal a rede sobre trilhos (ou “Rede Metroferroviária Urbana”). No caso do metrô, a previsão é chegar a 110 quilômetros até 2025 – longe dos padrões mexicanos e ainda com execução a conferir, dados os recentes contrastes entre o planejado e o praticado.

Para o metrô, o estado prevê destinar 9 bilhões de reais para compra de trens, obras e equipamentos. Entre as previsões está estender em 4,6 quilômetros e três estações a Linha 2-Verde e concluir 12,8 quilômetros e 11 estações da Linha 4-Amarela. Essa média anual “planejada”, por exemplo, é quatro vezes maior que a média anual apurada entre 1995 e 2006, período em que o estado é governado pelo mesmo PSDB-PFL. O problema é que em todo esse tempo o orçamento previsto nunca foi efetivamente executado. De acordo com análises feitas na Assembléia Legislativa, o pior desempenho do período foi em 2003, quando o estado previu gastar 180 milhões de reais e despendeu efetivamente 61 milhões. No ano passado, outro grande contingenciamento: foram executados 551 milhões de reais, de 981 milhões previstos.

O mesmo sucedeu na Companhia Paulista de Trens Metropolitanos (CPTM), alternativa complementar ao metrô. Em 2006, dos 390 milhões de reais previstos para investimentos, 117 milhões foram liquidados, bem menos que os 400 milhões de 2005. Vale assinalar que, além dos recursos do orçamento do estado, tanto metrô quanto CPTM contam com geração própria de recursos para fazer investimentos. Do 1 bilhão de reais de receita prevista para o metrô este ano, segundo a secretaria, 70% vai para folha de pagamentos, 20% para manutenção do sistema e 10% para investimentos em expansão.

Além do histórico duvidoso da execução orçamentária, a reconhecida qualidade dos serviços do metrô paulista também pode estar ameaçada, na avaliação de Wagner Fajardo, presidente da Federação dos Metroviários de São Paulo. Segundo ele, o setor tem sofrido um processo de terceirizações e concessões que prejudica seu desenvolvimento. “Eram 9 mil funcionários em 1995, hoje são cerca de 7,5 mil e a expansão de quadros agora é feita mediante terceirizações”, afirma.

Fajardo ressalta também que a adoção de sistema de concessão – a exemplo do atual para construção e futura operação da Linha 4-Amarela – compromete o controle público do metrô. A Linha 4 ficou mais famosa pelo acidente que matou sete pessoas em janeiro – “e até hoje não explicado”, lembra o dirigente –, do que pela agilidade das obras. “Falta controle do metrô sobre o consórcio”, critica.
 

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Décadas de Erros – Além de não investir como deveria em transportes coletivos, São Paulo ainda aposta no transporte individual. Essa megaponte tem custo estimado em 100 milhões de reais

Irracionalidade

Estudiosos do caos do trânsito em São Paulo costumam citar a última gestão de Paulo Maluf à frente da prefeitura (1993-1996) como pródiga na prioridade ao transporte individual. Em 11 grandes obras viárias, Maluf investiu – ou deixou como dívida para as gestões seguintes – 7 bilhões de dólares.

Os dados são da professora titular da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU-USP) Ermínia Maricato. De acordo com ela, considerando-se um investimento médio de 100 milhões de dólares para cada novo quilômetro, a quantia seria suficiente para mais do que dobrar a rede do metrô na capital.

Na falta de transporte coletivo, a indústria automobilística agradece. Nos últimos 20 anos, a “população” de veículos na cidade saltou de 1,5 milhão para 5,6 milhões de carros, motos, utilitários e caminhões, segundo o Detran.

Para cada dez moradores existem quatro carros. A relações-públicas Juliana Barros, de 28 anos, evita ao máximo se deslocar pela cidade. Mas, quando sai, é sempre de carro. “Não sou muito fã dos ônibus lotados”, diz ela, que mora no elegante bairro Real Parque, zona sudoeste da cidade.

Bem próximo ao prédio de Juliana, a Prefeitura de São Paulo – reproduzindo o mencionado modo malufista de governar – está investindo 100 milhões de reais num complexo viário sobre as marginais do Rio Pinheiros com 138 metros de altura. “São pontes enormes para uma região onde todo dia se erguem novos prédios”, critica ela, que prevê mais carros, mais trânsito e mais poluição.

Davi Fernandes da Cunha Exposto, 35 anos, é gerente de uma equipe de consultores de uma empresa de produtos de higiene. Trabalha “100% do tempo” com o carro e não calcula mais as visitas a clientes em função da distância, mas do tempo que possivelmente consumirá parado no trânsito. “Os compromissos estão limitados ao máximo de dois por dia, e as rotas alternativas estão ficando saturadas também”, diz.

O professor de Economia Ladislau Dowbor, da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), lembra que quando o cidadão se vê obrigado a ter “seu carrinho” para resolver o problema da mobilidade a cidade paga o preço dessa (falta de) opção. De acordo com o Movimento Nossa São Paulo: Outra Cidade, do qual o professor também faz parte, o número de viagens motorizadas por dia em São Paulo chegou, no ano passado, a 15 milhões. “A velocidade média no horário de pico é de apenas 17,7 quilômetros por hora”, observa.

Segundo estudo da Associação Nacional de Transportes Públicos (ANTP), utilizando-se dados relativos ao número de passageiros por quilômetro transportado, conclui-se que o automóvel representa um gasto 12,7 vezes maior de energia do que o ônibus e gera 17 vezes mais poluição, além de ocupar 6,4 vezes mais espaço nas vias e onerar em oito vezes o custo de transporte.

Com os carros parados nos congestionamentos, contratam-se os motoqueiros, que circulam entre os carros. “Estamos a um passo de ocupar toda a cidade”, alerta Dowbor. A frota de motos na capital dobrou em uma década, atingindo hoje quase 600 mil. Mas o que poderia ser uma boa solução muitas vezes vira mais um ingrediente do estresse urbano. Os acidentes envolvendo motos, em média dez diários, mais que piorar as condições do trânsito têm provocado a morte de um motoqueiro por dia.

O quadro assusta Cleber Ferreira da Silva, de 25 anos. Morador do Capão Redondo, bairro carente da zona sul, foi com um certo temor que resolveu encarar a função, na qual, além de se acidentar, já viu amigos ser substituídos no pior estilo gente descartável. “Muitos falam mal do motoqueiro, mas todo mundo precisa dele. Todas as pessoas que estão no trânsito dependem umas das outras, então todo mundo tem que se unir e se respeitar.”

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Respeito – Cleber: “Todas as pessoas que estão no trânsito dependem umas das outras”

Poluidores
Emissores de monóxido de carbono (CO) em S. Paulo (2006)

veículos leves – 73%
veículos pesados – 24,5%
produção industrial – 2,5%
Fonte: Cetesb

Bem menor
Comparado a cidades da América Latina, o metrô de S. Paulo fica para trás. O paralelo com o mexicano é ainda pior, pois os dois começaram a ser construídos na mesma época

São Paulo – 61,3 km
Santiago (metade da população paulistana) – 84,4 km
Cidade do México (população igual à paulistana) – 225,3 km

Contramão
A pesquisa Origem-Destino do metrô mostra que a Grande São Paulo entrou no século 21 privilegiando o transporte individual

 

Fonte: Companhia do Metropolitano

Oded GrajewMenos carro, outra cidade
O empresário Oded Grajew é um dos idealizadores do Movimento Nossa São Paulo: Outra Cidade, que reúne integrantes de 250 organizações da sociedade civil e difunde o Dia Mundial Sem Carro na capital paulista, a ser marcado por diversas atividades no próximo dia 22 de setembro – veja mais em www.nossasaopaulo.org.br. Grajew é um dos fundadores da Fundação Abrinq pelos Direitos da Criança e do Adolescente e do Instituto Ethos de Empresas e Responsabilidade Social. Foi assessor especial do presidente Lula em 2003 e é um dos idealizadores do Fórum Social Mundial. Ele alerta sobre os perigos de um modelo de mobilidade urbana que prioriza o carro a qualquer custo.

Para o cidadão de São Paulo deixar o carro em casa mais vezes por ano, o que precisa mudar?
Numa cidade dessa magnitude, é evidente que o transporte público deveria ser priorizado, com metrô, ônibus e lotações. Mas a mobilidade urbana envolve muitas outras coisas que também precisam ser melhoradas, como andar a pé e de bicicleta. As calçadas são de baixa qualidade e a faixa de pedestres não é respeitada. A idéia do Dia Mundial Sem Carro é justamente essa, discutir o modelo como um todo.

Que problemas a cidade tem ao priorizar o carro como meio de transporte?

A qualidade de vida das pessoas diminui, perde-se tempo demais parado no trânsito e a poluição aumenta. Em média morrem dois pedestres e um ocupante de carro por dia, envolvidos em acidentes. Fora a perda de espaços públicos, em parques e praças de esporte, para a construção de estacionamentos.

Passado o Dia Mundial Sem Carro, o que fica para a cidade?

A idéia é que as pessoas fiquem mais conscientes. Também preparamos uma emenda à Lei Orgânica do Município. Queremos que os próximos prefeitos, 90 dias depois de assumir, apresentem metas a ser cumpridas, as quais poderão ser fiscalizadas a partir de indicadores que serão criados, de congestionamento, poluição, acidente, saúde. Com isso, a sociedade poderá acompanhar ano após ano a evolução desses números e cobrar os administradores públicos. Em princípio, o atual prefeito, Gilberto Kassab, e os vereadores apóiam o projeto.

Como o senhor reduz os danos causados pelo trânsito em sua vida?

Moro no Pacaembu e meu escritório fica em Pinheiros, dois bairros próximos. Eu gosto muito de cultura, teatro, cinema, e costumo andar a pé até eles. De vez em quando uso metrô e táxi, e, quando preciso, pego o carro.

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