Renato Pompeu

Possibilidades para uma nova era do futebol mundial

Redução das diferenças entre sul-americanos e europeus; crescimento da torcida dos EUA; novos perfis de campeões; a Copa num país de fanáticos por times, não pelo futebol. Entre a África e 2014, tempo de mudanças

Paulo Whitaker/Reuters
Paulo Whitaker/Reuters

O fim da Copa do Mundo da África do Sul abriu uma nova era no futebol mundial e no futebol brasileiro em particular. Encerrou-se a época em que os quatro grandes – Brasil, Itália, Alemanha e Argentina – sempre tinham pelo menos um representante na final, a época em que só o Brasil erguia a taça fora de seu continente. Outra mudança significativa foi a confirmação de que não há mais supercraques do nível de Pelé, Beckenbauer­, Cruijff e Maradona, à medida que a progressiva e hoje milimétrica ocupação dos espaços do campo, tornada possível pelo desempenho físico mais intenso, dificulta maiores desempenhos técnicos. Enquanto isso, agora os melhores craques europeus têm nível comparável aos melhores sul-americanos, os quais sobressaíam no trato da bola até pouco tempo atrás. A diferença técnica entre Kaká e Iniesta é bem menor do que a que havia, digamos, entre Pelé e Beckenbauer.

No Brasil, acabou a Era Dunga. A substituição desse treinador por Mano Menezes abre um período cheio de novas possibilidades. Mano tem uma mentalidade mais profissional do que a do corporativo e grupista Dunga; está longe de ser teimoso e é menos influenciado pelos esquemas táticos europeus. Mano dificilmente será apanhado de surpresa por surpresas… previsíveis, ao contrário de Dunga, que não deu ouvidos às unanimidades de que não havia um substituto, nem mesmo um companheiro, para Kaká, e de que o esquema tático, se funcionava no caso de vantagem no marcador, não tinha muitas alternativas para o caso de placar adverso.

Para os brasileiros e, por que não dizer, para o mundo inteiro, é particularmente importante o fato de que a próxima Copa, em 2014, vai ser disputada em nosso país. Deixando de lado a questão da preparação do Brasil em termos de estádios e de infraestrutura, e pensando apenas no futebol, será uma experiência inédita para a esmagadora maioria da população. Apenas aqueles que estão hoje com mais de 65 anos têm alguma lembrança do que foi a Copa de 1950. De qualquer modo, deverá ocorrer uma movimentação de massas em escala nunca vista no país. Isso apesar de, já nos anos 1950, técnicos de futebol estrangeiros que visitaram o Brasil terem notado que “o brasileiro não gosta de futebol, e sim de torcer para o futebol”.

Em outras palavras, no Brasil, se Corinthians e Flamengo estiverem mal, e times fora dos grandes centros estiverem muito bem, os dois primeiros continuarão atraindo mais espectadores e mais telespectadores e radiouvintes do que os times pequenos, tecnicamente muito melhores e mais bem situados nas classificações. Do mesmo modo, os times de maior torcida continuarão tendo mais atenção da mídia do que os melhores times.

Não podemos afirmar com certeza se, com exceção das respectivas colônias, haverá tantos brasileiros como havia sul-africanos assis­tindo a uma final Espanha x Holanda. Afinal, muito menos gente no Brasil viu, por exemplo, a final Argentina x Holanda em 1978 do que havia visto o jogo Argentina x Brasil naquela Copa.
Também teremos oportunidade de constatar, se o Brasil não cumprir a verdadeira “obrigação” de ganhar a Copa em casa, se a reação da torcida vai ser tão tranquila quanto em 1950, quando o público no Maracanã simplesmente aplaudiu os uruguaios ao final do jogo. Tudo indica que uma eventual derrota não vai ser recebida com tanta serenidade. Isso apesar de, do ponto de vista estritamente futebolístico, contar como mérito para o Brasil o fato de ser o país com mais Copas conquistadas e, entre os que as conquistaram, o único, ao lado da Espanha, que nunca a ganhou em casa.

País do soccer

Mas, em termos mais globais, a maior novidade que a próxima Copa pode trazer é uma incorporação um tanto mais permanente da torcida americana à torcida mundial. Para entender o que está ocorrendo no futebol dos Estados Unidos, precisamos levar em conta que, se o futebol é um espetáculo dramático, em que cada time, além de si próprio, é um símbolo sociocultural – no caso do Corinthians, o “povão”; no caso do Roma, os esquerdistas; no caso dos Celtics de Glasgow, os católicos –, o fato é que isso não é específico do futebol, mas ocorre também com o vôlei, o basquete, o beisebol, o futebol americano.

O que é específico do futebol é o grande uso do pé e a proibição do uso da mão. Ou seja, o futebol vai atrair aqueles que usam pouco os pés e usam muito as mãos, trabalhando em fábricas ou escritórios, como inversão de sua postura usual. Mais exatamente, o futebol vai atrair as classes trabalhadoras que continuam se sentindo classes trabalhadoras fora do local de trabalho.

Ora, as classes trabalhadoras não existem fora do local de trabalho nos Estados Unidos, não têm sindicatos fortes e muito menos partidos políticos próprios, por exemplo. Os trabalhadores americanos se identificam muito mais com o basquete, muito parecido com uma linha de montagem, ou com o beisebol, em que a cada momento apenas um de “nós” está enfrentando o mundo hostil, que é como os americanos se sentem em geral fora do local de trabalho.

Lembremos que, no Japão, até poucas décadas atrás o futebol não era importante, e o sistema de emprego vitalício fazia cada trabalhador se sentir muito mais membro de sua empresa, como se fosse uma família, do que membro das classes trabalhadoras. O interesse pelo futebol cresceu à medida que aumentou o número de trabalhadores japoneses não protegidos pela vitaliciedade do emprego.

A mesma coisa está para acontecer nos Estados Unidos. O interesse pelo futebol nunca foi tão grande lá, como aconteceu na última Copa, que lá atraiu, por exemplo, mais internautas do que as finais de futebol americano. Com a crise econômica, se vêm alterando radicalmente as visões que as classes trabalhadoras americanas têm de si próprias, de um lado, e do futebol, de outro.

Não foi à toa que a direita americana mais conservadora passou a bradar que o futebol é um “esporte estrangeiro” e “de pobres”, enquanto um parlamentar republicano apresentou um projeto de proibição de prática do futebol nas escolas. Mas atenção: o fato de os trabalhadores americanos poderem se tornar mais fãs do futebol não implica necessariamente um maior progressismo deles. Pois as massas de torcedores de futebol podem muito bem ser fascistas.