trabalho

Quando eu crescer…

A relação das novas gerações com o mundo do trabalho não é questão de livre escolha, mas de oportunidades. O país só resolve esse dilema com crescimento econômico

jailton garcia

Nery seguiu carreira e se aposentou no banco. Seu filho nem pensou nessa possibilidade. Hoje trabalham juntos no próprio negócio

Nery da Silva Oliveira trabalhou 32 anos no Unibanco antes de se aposentar. Gildásio Cândido está na Magneti Marelli Cofap, em São Bernardo do Campo, há 20 anos. Edílson Ferreira da Silva cumpre expediente há 32 anos na Daimler Chrysler, antiga Mercedes-Benz, também em São Bernardo.

Esses brasileiros são filhos de um Brasil que não existe mais. Quando eles começaram sua vida profissional, o sonho de cada um era encontrar um trabalho e ser feliz. A felicidade era representada por um emprego assalariado, com carteira assinada, diretos garantidos pelo acordo coletivo e perspectiva de ascensão profissional.

Nesse Brasil de antigamente, o trabalho assumia um caráter celestial do qual o templo terreno era a própria empresa. Edílson explica: “Para mim, empresa é uma instituição como a igreja. O padre pode morrer, mas a igreja fica”. Nery, Gildásio e Edílson conquistaram seus objetivos. Cumpriram a meta de sua juventude, formaram famílias e criaram filhos. E isso não foi fácil. Muitas vezes, a luta pela reafirmação de direitos conquistados foi fundamental, seja no sindicato ou em atividades direcionadas à comunidade. Até porque a geração deles deparou com a guinada mais drástica do mercado de trabalho desde a aceleração dos processos de industrialização e de urbanização, após os anos 30 do século passado.

A partir da década de 80, uma série de transformações impulsionadas pela informática, a robótica e a globalização dos mercados alterou as características do mercado de trabalho no país. Conforme explica  o economista da Unicamp Marcio Pochmann, as características do emprego passaram a ser determinadas por fatores como o enxugamento das empresas, novos padrões de gestão de mão-de-obra, implantação de novas hierarquias profissionais, fusão de empresas, reengenharias e terceirizações.

O rosto desse novo Brasil de pouco mais de 20 anos pode ser traçado pelas pesquisas do Dieese e da Fundação Seade. Entre 1985 e 2005, a parcela de trabalhadores no setor industrial despencou de 32,8% para 19,5%, na região metropolitana de São Paulo. Boa parte desse contingente migrou para o setor de serviços, que ampliou sua participação de 40,7% para 53,1%. Ao mesmo tempo, o nível de desemprego na mesma região subiu de 12,2% para 16,9% da população economicamente ativa no período, enquanto o rendimento mensal médio caiu de 2.048 para 1.060 reais.

Por opção ou falta de

Diante dessa nova realidade, novos e maiores desafios surgiram para o trabalhador brasileiro. Diante da escassez de vagas no mercado de trabalho, da gigantesca precarização e do achatamento dos salários, os filhos de Nery, Gildásio e Edílson  certamente almejam o sucesso que seus pais obtiveram, mas com sonhos e caminhos diferentes. A empresa vista como uma igreja eterna, o trabalhado assalariado e a estabilidade profissional são hoje paradigmas postos em dúvida pela juventude.

Não poderia ser diferente. Ao analisar a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) de 1982 e 1996, Pochmann detecta a crise que atingiu a classe média e sua perspectiva de mobilidade social. Se antes era comum um filho prever que superaria seu pai, a realidade transformou isso mais em um desejo. Segundo o economista, durante aqueles 14 anos, a classe média foi a mais atingida desfavoravelmente em termos de mobilidade social.

Isso é fruto das transformações no interior do mercado de trabalho, que atingiu fortemente os empregos intermediários na estrutura ocupacional, e da perda de eficácia da educação em se transformar em passaporte para o emprego melhor. Em 1996, um a cada quatro filhos de famílias de classe média conseguiu melhor posição que a do pai. Em 1982 essa situação era para a cada três.

Alexandre Loloian, economista da Fundação Seade, diz que os jovens enfrentam muito mais dificuldades de inserção no mercado de trabalho do que seus pais. Nem sequer o velho discurso de que a educação é passaporte para um emprego melhor permanece em pé. Nos últimos anos, os postos de trabalho com maior qualificação têm sofrido mais com o achatamento de salários e outros rendimentos do que aqueles de menor qualificação. Essas novas características do mercado de trabalho determinam mudanças definitivas sobre as expectativas dos jovens de inserção profissional.

raquel camargoGildásio e Edson
Gildásio trabalha na Magneti Marelli Cofap, em São Bernardo do Campo, há 20 anos. Seu filho, Edson, prefere a vida de autônomo: “Tem algumas vantagens, você está livre, não está preso”

Os filhos

Edson Cândido, filho de Gildásio, ameaçou seguir a profissão de metalúrgico do pai. Fez curso de desenho mecânico no sindicato, que mantinha parceria com o Senai, mas desistiu. Almeja, em vez da carteira assinada por uma empresa, arriscar-se como autônomo. Trabalha como ambulante, vende de porta em porta panelas, tapetes e filtros em Mauá, onde vive com a família. “Tem algumas vantagens, você está livre, não está preso.” O ideal da liberdade vale mais para Edson do que a estabilidade de uma carteira assinada. Aos 21 anos, ele tem a perspectiva de ganhar 2 mil reais em breve. A consciência do nível de precarização em sua atividade não o desanima.

Diante das transformações do mercado, da reestruturação das empresas e da dificuldade de acesso ao “bom” emprego, a liberdade tornou-se um valor defendido por muitos jovens que iniciam sua vida profissional. Nery Júnior, filho do bancário, concorda. “Trabalhar por conta própria é interessante. É claro que tem vantagens e desvantagens. Acho que consigo ganhar mais do que se estivesse empregado numa empresa. Sou dono do meu tempo, posso me organizar como eu quero. Mas tenho de ter mais reponsabilidade para garantir o salário no final do mês”, relata.

Nery Júnior também já trabalhou em banco, mas jamais alimentou sonho de fazer carreira. O emprego de meio período e um salário razoável lhe era conveniente para que terminasse os estudos universitários. Chegou a cursar alguns anos de física, mas acabou se formando em administração. Hoje trabalha com seu pai, que, após se aposentar, fundou uma corretora de mercadorias em São Paulo. Sua trajetória profissional segue passos próprios.

Para Eliane Cunha da Silva, filha de Edílson, o próximo objetivo é fazer uma pós-graduação. Diferentemente de seu pai, ela conseguiu grau universitário e formou-se em biomedicina. Trabalha em um grande laboratório de análises clínicas de São Paulo – com carteira assinada. Exemplo de outra característica do mercado de trabalho atual – a feminilização –, Eliane afirma que em sua área seria muito difícil um vôo solo. Nesse caso, parece concordar com o valor que seu pai dá à estabilidade: “Quando o camarada tem juízo, ele fica na empresa em vez de ficar pulando de galho em galho”, afirma Edílson.

Outra grande diferença entre o Brasil de antes e depois de 1982 é o nível de crescimento econômico que separa essas duas gerações. Nos 20 anos anteriores a 1982, o PIB brasileiro cresceu, em média, quase 7% ao ano. Nos vinte anos seguintes, encerrados em 2002, a média de crescimento foi de pouco mais de 2%. E se o país não cresce o bastante para absorver sua força de trabalho, o dilema “trabalhar por conta versus emprego fixo” fica em segundo plano. Não se trata de questão de escolha, mas da falta dela: a geração em curso fará o que estiver ao seu alcance para tocar a vida.