Crônica

Reciclagem da crítica

Marx não pensou na possibilidade de a maioria das pessoas não se interessar pela coisa pública

mendonça

Interessante como o tempo é lento e rápido… ao mesmo tempo. Da redação da Crítica ao Programa de Gotha, em 1875, pelo pensador alemão Karl Marx, nos separam 135 anos, o que parece muito, mas eu tenho 68, metade disso, então a mim, hoje, me parece que essa crítica foi escrita há não muito tempo. E a cada dia me parece mais claro que ela deva ser mais conhecida do que jamais foi e deve ser pelo menos tão divulgada quanto o Manifesto Comunista.

Afinal, Marx tinha menos de 30 anos quando escreveu com Friedrich Engels o Manifesto e estava perto dos 60, muito mais experiente, quando escreveu a carta que Engels publicou depois como a Crítica ao Programa de Gotha. Esse programa estava sendo discutido pelas duas facções que depois se fundiriam para criar o Partido Socialdemocrata alemão, até hoje existente. Marx fez várias observações sobre o programa, mas elas não foram levadas em conta pelos fundadores do novo partido.

Quatro coisas me chamam a atenção na crítica de Marx. Em primeiro lugar, ele me parece dar menos ênfase ao caminho insurrecional e mais ênfase ao caminho eleitoral para o socialismo do que, por exemplo, no Manifesto. Em segundo lugar, prega a necessidade absoluta da liberdade de expressão e da liberdade de imprensa. Aqui temos de levar em conta que, em sua época, a imprensa era muito mais crítica dos poderes vigentes do que é hoje em dia. Não sabemos se, hoje em dia, Marx defenderia a liberdade de expressão dos racistas, dos nazistas, permitida nos Estados Unidos, ou se a proibiria, como no Brasil e na Alemanha.

Terceiro, Marx defende a necessidade absoluta da educação pública e gratuita. Entretanto, para Marx, o “público” não se confunde com o “estatal”. O caráter público da educação pública, e por extensão da saúde pública e da empresa pública, não se trata de serviços proporcionados e administrados por órgãos estatais, e sim proporcionados e administrados por todos os membros do público, da sociedade em geral. Marx estava longe de imaginar que o socialismo seria, como acabou sendo no extinto socialismo real, regido por aparelhos, órgãos e empresas estatais sob a direção de corpos de burocratas. Ao contrário, achava que toda a sociedade, composta por indivíduos livres e iguais, é que deveria ir assumindo as funções que vinham sendo executadas pelo Estado.

Do mesmo modo que Marx não pensou na possibilidade de, no processo eleitoral, a maioria da população não querer a implantação do socialismo, ou de essa maioria se voltar contra o socialismo após sua implantação, também não pensou na possibilidade de a maioria da população não se interessar pela administração da coisa pública, seja no socialismo, seja no capitalismo, seja no regime que for.
Para Engels, a diminuição da jornada de trabalho implicaria mais intensa participação política por parte de cada trabalhador, que teria tempo cada vez maior para fazer política. No entanto, notamos que a grande maioria das pessoas prefere dedicar ao lazer, e não à atividade pública, a maior parte do seu tempo livre.

Em quarto lugar, finalmente, quando Marx fala em “ditadura do proletariado”, como fase transitória da passagem do capitalismo para o socialismo, ele não se refere a um regime autoritário, mas a um regime com plena liberdade de expressão e de organização, exatamente como acontece nos regimes capitalistas mais avançados, as chamadas democracias burguesas, em que para Marx prevalece a “ditadura da burguesia”. Podemos dizer que, nessa crítica efetuada por Marx, a “ditadura do proletariado” difere da “ditadura da burguesia” exatamente por ir progressivamente democratizando o controle dos órgãos e empresas estatais por parte da sociedade.

Se isso é ou não uma utopia, é outra conversa. É importante discutir como os seres humanos poderiam viver melhor, mas isso não deve eliminar a necessidade de verificar concretamente como as pessoas vivem e como gostariam de viver. Para mim, o mais impressionante é que apenas o tempo equivalente a duas vidas minhas até agora nos separa dessas cogitações de Marx.

Renato Pompeu é jornalista e escritor, autor do romance ensaio O Mundo como Obra de Arte criada pelo Brasil (Casa Amarela)