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Sua santidade a candidata

Surge a pré-candidata à Presidência da República capaz de encantar os mais céticos e desiludidos com a política

marcello casal jr./abr

Marina Silva: de volta à tribuna do Senado

Mais de uma vez, em meio às brigas entre ambientalistas e desenvolvimentistas do governo, Lula quis demitir Marina Silva. Mas, quando ela chegava de mansinho, inclinando-se humilde de mãos juntinhas, o presidente desistia. No fim, ela é que pediu demissão. E agora surge para os eleitores, saudada pela mídia como a única pura num mundo político prostituído. Uma história de vida parecida com a de Lula que poderia se projetar no governo e no imaginário popular como uma extensão da experiência do operário pobre na Presidência. Marina logo recebeu o apoio de ativistas católicos e da Comissão Pastoral da Terra, apesar de evangélica. Uma pré-candidata ecumênica, capaz de unir apoios de duas instituições que hoje disputam almas e dízimos dos brasileiros.

Mas é possível um santo na política? E, se é possível, teria alguma chance de vitória? E, se vencer, alguma chance de governar sem perder a pureza? Analistas argutos observaram que Marina Silva demonstrou grande senso de oportunidade ao sair do PT no mesmo dia em que o partido ajudou o PMDB a enterrar as ações contra Sarney. Capitalizou assim meses e meses de desgaste ético do PT, dando a seu gesto uma dimensão que transcendia a esfera individual.

E o PV, para avaliar a primeira aparição de Marina em seu programa político, aderiu aos mais modernos instrumentos de marketing político. Contratou pesquisas qualitativas em que as pessoas giram um dial num sentido se gostam do que estão vendo ou no outro, se não gostam. A maioria gostou muito da fala de Marina, mas quando apareceu o presidente do partido, Zeca Sarney, girou ao contrário. O mesmo quando apareceu Gabeira.

Ou seja, antes mesmo de ser candidata, entrou no esquema tradicional dos políticos profissionais, que auscultam o que o eleitor pensa para depois dizer na campanha exatamente o que ele quer ouvir. A consequência do marketing político é a mesmice na política: todos dizem as mesmas coisas e fazem as mesmas promessas, porque o povo é um só. Depois, as promessas não precisam ser cumpridas, porque não foram feitas para governar, e sim para disputar votos. Barack Obama, que nem é tão santo, já é torpedeado apenas por querer cumprir sua principal proposta eleitoral, de universalizar o atendimento à saúde nos Estados Unidos.

A pior consequência desses métodos é que eles custam caro, forçando o candidato a pedir, e aceitar, dinheiro por todo lado. O uso de caixa dois de empresas para financiar campanhas está estreitamente ligado aos mecanismos do marketing político numa democracia de massa de um país de grande extensão territorial como o nosso. Isso acontece em todo lugar – Alemanha, Inglaterra, Argentina, Israel, para citar países em que alguma coisa deu errado e virou caso de polícia. No Brasil, todos os grandes e médios partidos fazem isso, embora a mídia atire apenas no PT.

Marina só gozará da simpatia da mídia enquanto solapar a candidatura Dilma e a estratégia de Lula de uma campanha plebiscitária. Se sua ida ao segundo turno se tornar uma possibilidade, será maltratada impiedosamente pela mesma mídia que hoje a incensa. E Marina já disse ao jornal espanhol El País que só vai concorrer se for para chegar ao segundo turno.

Outra dificuldade será a adaptação de seu discurso ambientalista para uma campanha de massa num país de carências em massa. Até sua saída do governo, Marina representava uma força de compensação interna, que tinha como função impor padrões ambientais a um projeto de desenvolvimento, em grande parte convencional, voltado ao atendimento de necessidades elementares que outros países europeus e da OCDE já superaram há décadas, como moradia, água encanada, saúde, educação.

Numa campanha à Presidência ela terá de assumir essa responsabilidade, que é o que o povo precisa e quer. Pode enfeitar tudo com a proteção a espécies ameaçadas, mas o principal vão ser as casas, as rodovias, as hidrelétricas. Marina já mudou o discurso sobre a preservação da Amazônia. Ao El País, afirmou que a Amazônia não pode virar um santuário. Tem de se desenvolver. Dizem, inclusive, que ela corria o risco de não conseguir se reeleger em seu próprio território político, o Acre, por essa obstinação ambientalista. E que esse teria sido um dos motivos de sua opção pela disputa à Presidência.

Sustentabilidade

O grupo em torno de Chico Mendes e de Jorge Viana e seus conceitos inovadores de “reserva extrativa sustentada” e “socioambientalismo” surgiu a partir do lançamento em Rio Branco, em 1977, do jornal alternativo Varadouro, dirigido pelo jornalista Silvio Martinelli e apoiado financeiramente pelo bispo de Rio Branco, dom Moacyr, e por alguns ex-ativistas da Aliança Libertadora Nacional. O jornal diagnosticou o declínio da antiga burguesia mercantil de beira-rio, baseada na economia da borracha, e sua não substituição por uma nova burguesia industrial (o que ocorreria no Amazonas com a criação da Zona Franca). Surgiram os pecuaristas do Sul e, para resistir a eles, os seguidores de Chico Mendes organizaram o povo pobre, índios, seringalistas e posseiros – os “povos da floresta”. Assim nasceu essa liderança política nova, popular, ligada à Teologia da Libertação e ao PT.

Tudo isso é história. O seringal em que Marina nasceu já não extrai borracha há dez anos. Reserva extrativa natural reduziu-se a um detalhe regional ante os problemas ambientais de dimensão global. O aquecimento da nossa atmosfera virou todos os problemas do avesso, até o “perigo do desmatamento da Amazônia”. Hoje é o aquecimento global que põe a Amazônia em perigo, e não a Amazônia que põe o mundo em perigo.

O grande mérito de Marina foi trazer para o primeiro plano um debate que já não pertence apenas ao PV ou aos ambientalistas, e sim a toda a sociedade. Mas Marina ainda terá de demonstrar como tirar 40 milhões de brasileiros do subemprego, da submoradia e da exposição à criminalidade com um tipo de desenvolvimento diferente do de Lula. Desenvolvimento sustentado é garantir todas as necessidades básicas das populações presentes sem pôr em risco o atendimento dessas necessidades para as gerações futuras. Isto é desenvolvimento sustentado: começa em prover as necessidades básicas de moradia, bem-estar e segurança alimentar, sem exaurir os recursos da natureza. Não é sacrificar uma hidrelétrica por causa de uma espécie de perereca em extinção.