Comportamento

Superpoderosas

Ela devolve direitinho o que toma emprestado, faz sobrar para a poupança e para a bolsa (de valores!) e é cada vez mais dona do pedaço, na gestão da casa ou do empreendimento. Sua excelência, a mulher

Andréa Graiz

Viviane de Oliveira é uma das fundadoras da Confraria das Mulheres da Bolsa, um grupo formado por 25 gaúchas de Porto Alegre que se reúnem para trocar informações, promover eventos beneficentes e “operar”

É a primeira a despertar, se arruma, põe a mesa, cuida da família e dos bichos (quando os tem), tira o lixo, entra no ônibus, no trem ou no carro, adentra o escritório, o banco, a fábrica, a loja ou o ateliê. E, especialmente nas últimas duas décadas, a mulher faz algo a mais: ganha dinheiro. Divide as contas com companheiro, pais ou filhos. Define o consumo, da marca da sandália ao imóvel dos sonhos, da lasanha pronta às férias de julho. Projeta o futuro, economiza onde dá, aplica na poupança e até em ações. Em maior ou menor grau, a mulher dá mostras de que está bem preparada para lidar com todas as coisas da vida, entre as quais o dinheiro.

Não faz pouco tempo que as mulheres brasileiras ingressaram no mercado de trabalho, mas recentemente se tornaram muitas, mais emancipadas e instruídas. A participação da mulher no mercado de trabalho ou procurando emprego era inferior a 30% nos anos 1970. Hoje a presença feminina corresponde a 45% da população ocupada no país – e a três em cada cinco vagas em universidades. Como se não bastasse, as mulheres deixaram de ser coadjuvantes na economia familiar: nos últimos 12 anos, passaram de 18% para 31% os lares brasileiros sustentados exclusivamente por elas. Antes da virada deste século, era raro ouvir casos de mulher que ganha mais que o marido ou mãe que assume integralmente as despesas dos filhos. Hoje essa realidade nem rende papo de boteco – apesar de os salários das meninas ainda serem 75% mais baixos que os dos meninos que fazem as mesmas coisas.

Rita de Cássia Oliveira Pereira é uma dessas chefes de família. Separada há 15 anos, ela ganha o pão e serve a mesa, paga suas contas e as de seus dois filhos. “Quando me separei, levei comigo dois bebês e um par de chinelos”, brinca. O recomeço foi difícil e gradual, mas rapidamente a comerciante encontrou um jeito de administrar suas contas para alcançar seu objetivo principal: oferecer boa educação aos filhos.

O primeiro trabalho que conseguiu na época foi como vendedora de seguros para um banco. “Eu não tinha grana nem para almoçar.” Depois se candidatou a vendedora em uma loja de shopping: “Entrei e disse: ‘Olha, não tenho experiência, mas me dê uma semana e vou mostrar do que sou capaz’”. Rita está na mesma empresa há 11 anos e foi promovida a gerente de vendas. Até sofre para “fechar o mês”, mas comemora o sucesso em seu principal objetivo. “Nunca comprei o carro que sempre quis, mas ofereci as melhores escolas para os meus filhos.”

Rita tem o jogo de cintura brasileiro combinado à flexibilidade feminina. “Já fiquei devendo para cartão de crédito e decidi nunca mais me meter em dívida com banco. Programo minhas despesas extras de acordo com as datas em que sei que minha comissão será maior, como Dia das Mães e Natal”, explica. Mesmo contando com uma boa dose de improviso, Rita dá passos sólidos e, em março, comemorou seu maior voo solo econômico, a compra de seu primeiro imóvel, pelo programa Minha Casa, Minha Vida.

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Rita dá passos sólidos e, em março, comemorou seu maior voo solo econômico, a compra de seu primeiro imóvel, pelo programa Minha Casa, Minha Vida

O direcionamento da vida financeira para a educação dos filhos mostra um aspecto fundamental na forma como a maioria das mulheres se relaciona com dinheiro – e também explica diversas políticas públicas dirigidas ao público feminino. “Constatamos que, ao estimular a geração de renda por meio da mulher, o resultado ultrapassa o impacto econômico. Ela é capaz de melhorar não apenas sua atividade como também toda a condição do núcleo familiar”, afirma Maristela Braga, gerente executiva do Banco Popular da Mulher (BPM). Criada há sete anos em Campinas (SP), a instituição oferece empréstimos destinados a pequenos empreendimentos acompanhados de orientação para o tomador tocar seu negócio – é o chamado microcrédito produtivo orientado. Os valores vão até R$ 7.000, e 82% dos clientes são mulheres.

“Não emprestamos para reformar a casa ou pagar a escola: o objetivo é ajudar o cliente a gerar renda. Para apoiá-lo, existe a figura do agente de crédito, que acompanha todas as fases do relacionamento, desde o pedido do crédito até os resultados colhidos”, explica Maristela. Existem muitas instituições que oferecem microcrédito a todos os segmentos de público, e também entre estes a mulher é o maior: no Brasil, elas representam 54% dos clientes. A tendência é mundial. De acordo com dados divulgados na última Cúpula Global de Microcrédito, dos 113 milhões de pessoas atendidas pelo sistema até 2005, 84,2% eram mulheres.

Roseana Pereira Baganha, que faz artesanato de couro, comprou de materiais a máquinas e está conseguindo estruturar seu ganha-pão depois de três empréstimos realizados no BPM. “Não trabalho com cheque ou com cartão de crédito: só com a realidade”, conta. Separada há dez anos, com duas filhas adultas, ela montou seu ateliê dentro de casa, em Campinas. Mais do que a quantia ou a facilidade de pagamento, Roseana frisa a importância da assistência que recebe de sua agente de crédito: “Com ela troco ideias sobre meu negócio e recebo orientação, desde puxões de orelha sobre o controle de recebimentos até o estudo realista de novas oportunidades. Sinto que estou sempre amparada. Adoraria, agora, compartilhar meu conhecimento, já deixei até cartazes oferecendo aulas grátis para quem quiser aprender o meu ofício”.

Eis outra característica feminina marcante: a colaboração. “As mulheres são organizadas, lutam pelos seus direitos, respeitam a natureza e buscam a igualdade de gênero, e por tudo isso sua presença é hegemônica na economia solidária”, reflete o economista Paul Singer, secretário nacional de Economia Solidária do Ministério do Trabalho. “Aprendi isso com Mohammad Yunus, um feminista que desenvolveu o conceito de microcrédito para a mulher. Hoje seu banco tem mais de 7 milhões de acionistas, 90% mulheres”, afirma, citando o Nobel da Paz de 2006 e criador do Grameen Bank, de Bangladesh, em 1983. Hoje espalhado por mais de 60 nações – incluindo Estados Unidos e, em breve, Brasil –, o banco já concedeu US$ 8 bilhões em crédito a 7,84 milhões de pessoas, com a impressionante taxa de menos de 2% de inadimplência.

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Separada há dez anos, com duas filhas adultas, Roseana montou seu ateliê de artesanato de couro dentro de casa, em Campinas. Comprou maquinário e matéria-prima com empréstimos do Banco Popular da Mulher

Governança

Não é novidade, nem mesmo no Brasil, o fato de a mulher ser uma eficiente gestora de recursos. Que o diga a recepcionista Juliana Alves Malgueiro de Oliveira, responsável pela “contabilidade” da casa de seus pais e, desde que se casou, também da sua. “Tenho uma planilha para a casa dos meus pais e uma para a nossa. Junto o meu salário com o do meu marido, tiro de lá todas as despesas extras e as previstas e determino o valor que ele pode usar no mês. A regra que vale é só gastar o que temos.” A preocupação, não se deixar engolir por dívidas e ter o nome “limpo”.

É por essa razão que o Banco do Nordeste do Brasil (BNB) opera com nível de inadimplência na casa de 1%, índice que para qualquer banco privado é sonho. “Mais de 83% de nossas operações de microcrédito são realizadas com aval solidário, modalidade em que o crédito é concedido a um grupo em que um assume o papel de avalista do outro”, diz Anadete Apoliano Albuquerque Torres, superintendente da área de Microfinança Urbana do BNB. “Essa é uma característica feminina forte: ela consegue formar esses grupos de confiança com facilidade.”

O Banco do Nordeste, com seu programa Crediamigo, consolidou-se como a maior instituição bancária no país em volume de microcrédito. Hoje, a carteira ativa tem R$ 480 milhões e 550 mil clientes – dois terços formados por mulheres. “Esse volume reflete uma atitude corajosa. Elas têm maior disposição para ir ao mercado, tomar crédito, construir sua vida. Enxergam no microcrédito a oportunidade de formar um pequeno negócio que pode gerar renda dentro de casa.” 

Não é à toa que as mulheres já são apontadas pelas grandes indústrias como “a força motriz da nova economia”, segundo diversas pesquisas. A realizada recentemente pela Sophia Mind, empresa de pesquisa e inteligência de mercado do grupo Bolsa de Mulher, analisou o perfil de 2.096 mulheres em todas as regiões e concluiu que 77% das brasileiras são as que decidem os gastos familiares. Entre as casadas, o percentual sobe para 91% e, entre as separadas, para 95%. Da indústria alimentícia à automobilística, nenhuma poupa esforços para compreender as preferências desse público que escolhe o que comprar, como vai pagar e o que fazer com o que consegue economizar.

Nos bancos, elas estão prestes a se equiparar aos homens em número de correntistas e avançam rapidamente em direção aos investimentos. “As mulheres já somam 49% das cotistas que aplicam em fundos de investimento em nossa instituição”, afirma Antonio Cássio Segura, gerente executivo da Diretoria de Varejo do Banco do Brasil. “Elas são muito mais ativas na gestão do caixa familiar”, completa. Essa afirmação, consenso entre os analistas, traz à luz uma nova vocação da mulher: a de investidora.

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Juliana: “Em casa, junto o meu salário com o do meu marido, tiro de lá todas as despesas extras e as previstas e determino o valor que ele pode usar no mês”

Filtra e serve

“A mulher está tomando conta das finanças, atividade que executa sozinha ou em parceria com o marido”, acredita a consultora financeira Viviane Farah Ferreira. “Suas características naturais a ajudam nesse papel. Por ser detalhista, consegue organizar despesas e enxugar gastos. É ávida por informação, aprende rápido e é multitarefa. Quando elas realmente tomam para si a gestão financeira – e para isso também precisam ter companheiros abertos a essa questão –, seu desempenho é elogiável.” 

Economizar para comprar um imóvel e garantir uma terceira idade mais tranquila são as duas principais preocupações das poupadoras e investidoras. Talvez por isso elas sejam mais conservadoras do que os homens, como mostrou outra pesquisa realizada pela Sophia Mind em janeiro deste ano, com cerca de 1.500 mulheres de 25 a 50 anos: 73% das entrevistadas guardam seu dinheiro em caderneta de poupança, o investimento mais seguro e menos rentável que existe. “Em seguida vêm a preocupação de garantir boas condições de vida aos filhos e o desejo de ter recursos para projetos pessoais, como cursos ou viagens”, detalha Cássio Segura, do BB. “Na ótica masculina do investimento, há ousadia, foco em resultado, racionalidade, competitividade. Na feminina, há prudência, paciência, emoção e intuição”, observa Viviane.

Há também uma busca disciplinada por informação. Segundo a mesma pesquisa da Sophia Mind, 46% das entrevistadas realizam algum tipo de investimento e 39% têm muito interesse em temas como investimento e finanças. “As mulheres estão ficando bastante ousadas. Segundo a Bolsa de Valores de São Paulo, em 2002 elas somavam 15 mil investidoras e, em 2007, já eram mais de 112 mil”, compara o economista Everton Lopes, autor dos livros Do Economês para o Português – Um Guia Prático para Finanças Pessoais e Seu Bolso no Divã. Para Lopes, as mulheres não jogam na bolsa: “Elas investem, trabalhando para fazer seu dinheiro gerar mais dinheiro”.

Viviane de Oliveira é uma das fundadoras da Confraria das Mulheres da Bolsa, um grupo formado por 25 meninas superpoderosas gaúchas. De 24 a 60 anos e com experiências de vida diferentes, elas se reúnem para trocar informações, promover eventos beneficentes e até “operar” juntas. “A bolsa é um ambiente onde as mulheres se dão muito bem. Somos disciplinadas e temos facilidade para aceitar regras. E, como em qualquer outra coisa na vida, existem regras que precisam ser seguidas, inclusive para garantir segurança na atividade”, descreve a investidora, citando como aliados, apesar das diferenças dentro do grupo, os ingredientes que todas têm em comum. “Mulheres querem algo mais, almejam rentabilidade e não serem obrigadas a lidar com as limitações impostas por salário, horário de trabalho e perspectivas que caibam dentro desses parâmetros”, descreve Viviane. 

E os homens, como enxergam essa movimentação? “Tudo isso assusta”, opina a psicóloga Marina Vasconcellos, especializada em terapia familiar e de casal. “Hoje é comum ver mulheres que moram sozinhas, ganham bem, são independentes e inteligentes – e têm dificuldade de encontrar parceiros. Eles não se sentem mais necessários. E acho que toda essa independência não tem volta. Mas é preciso bom senso e lembrar que homens e mulheres se complementam.”