Atitude

Tinta, carinho e realidade

Blog completa um ano com notícias, relato e tiras de um pai desenhista e seu filho portador de síndrome de Down

Mauricio Morais

O quadrinista Flávio Soares e seu filho Logan

Em 29 de novembro de 2004, depois de horas sem notícias de sua mulher em trabalho de parto na maternidade, o desenhista e ilustrador paulistano Flávio Soares ouviu da médica responsável: “Desculpe-me se eu estiver enganada, mas acredito que seu filho seja portador de síndrome de Down”. Tomado de surpresa, ficou descontrolado. “Eu não conseguia segurar o choro nem parar de tremer.”

O artista não tinha ideia do que era a síndrome de Down (SD), distúrbio causado pela existência de um cromossomo a mais nas células que provoca sérias dificuldades de aprendizado e de desenvolvimento físico e motor. Flávio passou pela fase de rejeição, de mal conseguir encarar o filho recém-nascido. “Arrependo-me amargamente de ter rejeitado Logan nesse período, mas isso fez parte importante do meu aprendizado.”

Contra todos os prognósticos, o pequeno Logan desde o início mamou no peito da mãe. Foi ali, ainda no hospital, que Flávio percebeu que não poderia desistir do filho. “Foram os três dias que precisei para deixar de ser um imbecil e virar um homem de verdade, com todas as responsabilidades que isso acarreta e sem achar que isso é uma obrigação.” Como pai de primeira viagem de uma criança portadora de necessidades especiais, ele saiu em busca de mais informações sobre a síndrome, mas os textos não respondiam às suas dúvidas. “Eram coisas muito técnicas, frias e com um relato muito sofrido… Eu achei que podia fazer diferente”, conta. “Mesmo sendo muitas vezes dura e cansativa, minha vida com o Logan não é e nunca foi sofrida.” 

tirinhas

Cotidiano

Após um divórcio relativamente tranquilo, Flávio resolveu relatar o cotidiano e seus progressos com o filho. Começou, então, o blog A vida com Logan. Os relatos na internet tratam problemas e tensões rotineiras, além de conter informativos sobre a síndrome e histórias desse pai meio atrapalhado, que precisou ir quatro vezes ao mercado para comprar todos os ingredientes necessários para fazer um purê para o filho. Percebendo o lado divertido dessa nova vida, o desenhista começou, “meio sem querer”, a fazer vários rabiscos e desenhos estilizados do garoto, até que veio a ideia de contar as descobertas e a rotina da criança e dele mesmo em divertidas tirinhas, que serviram como um chamariz para o blog. “Comecei a receber visitas de muita gente que, provavelmente, nunca prestaria atenção a essas questões.”

Curiosamente, as histórias em quadrinhos de Logan seguem fazendo mais sucesso entre aqueles que não enfrentam problemas com o distúrbio. Flávio esperava o oposto, mas acredita que as famílias de portadores de SD têm receio de se relacionar e trocar experiências. Grande parte das situações que aparecem nesses quadrinhos é baseada em fatos reais, como as rotinas médicas, brincadeiras e avanços do garoto. Tanto na vida real quanto nas tiras, a síndrome está presente, mas não é o centro do dia a dia dele e de Logan. “Ele corre, brinca, bagunça, faz manha, vai pra escola… E tem síndrome de Down. É a única diferença.” 

Em março, essas pequenas histórias em quadrinhos completaram o primeiro aniversário. O criador promete uma nova fase para as tiras, que deve seguir até o fim do ano. “O legal é que agora já posso liberar a imaginação e criar situações mais exageradas no meio da brincadeira sem ter de me preocupar tanto com a reação dos leitores”, diz Flávio. As futuras tirinhas vão mostrar a gravidez da atual mulher do desenhista na rotina da família. Max, o novo filho do casal, nasceu em janeiro e também vai virar personagem, mas apenas em 2011. Logan tem reagido bem ao novo membro da família e toda sexta-feira, quando vai passar o fim de semana com o pai, logo procura pelo “neném”. “Ele sobe na cama, coloca um travesseiro no colo e estica os braços na direção do Max, para que o coloquemos em cima do travesseiro, no colo dele”, diz o pai, todo orgulhoso. 

Sobre a atuação do poder público nas questões relacionadas à inclusão e aos direitos dos portadores de SD, o pai se indigna: “O Estado joga a criança com Down numa sala de aula hiperlotada, sem acompanhamento diferenciado, sem preparar os colegas de classe e professores para a nova situação… Isso não é inclusão!” Logan estuda numa escolinha particular que, para Flávio, não tem o preparo correto, mas é um lugar onde as pessoas têm a boa vontade de buscar informações e de aceitar as sugestões e a ajuda que ele e a mãe de Logan apresentam. O garoto participa de todas as atividades da turma, fazendo as coisas do seu jeito e no seu tempo. “O mais importante é as crianças se sentirem parte do processo. Elas são muito mais capazes do que imaginamos.” A atual e ingrata batalha na vida do desenhista é travada contra o plano de saúde do filho e, por consequência, com a Agência Nacional de Saúde (ANS). De acordo com uma regra da ANS, os operadores de planos de saúde são obrigados a custear apenas seis sessões por ano de fonoaudiologia e de terapia ocupacional, muito abaixo do necessário para um portador de SD, segundo Flávio. “A operadora não libera mais sessões, já que está amparada pela ANS, e esta diz não poder tomar providências, pois a operadora está dentro da lei.” 

Enquanto luta na Justiça para reverter a situação, Flávio vai se virando para trabalhar, pagar as contas, cuidar de dois filhos e ainda se dedicar a narrar como é fascinante e inspiradora a vida com o pequeno Logan.