cultura

Tradição ameaçada

A voracidade imobiliária pressiona a Festa da Lavadeira a deixar a Praia do Paiva, em Cabo do Santo Agostinho (PE)

Verena Glass

Passado o Carnaval, é no dia do trabalhador que reis e rainhas do maracatu pernambucano voltam a tirar a poeira de suas fantasias, os bonecões de Olinda saem do armário e as passistas de frevo abrem seus guarda-chuvas. Na Praia do Paiva, Região Metropolitana de Recife, eles se juntam a grupos de coco, afoxé e cavalo-marinho, cirandeiros, bandas de pífano e escolas de samba, em um dos maiores festivais de cultura popular do país, a Festa da Lavadeira. No 1º de Maio deste ano, em sua 24ª edição, o evento atraiu mais de 30 mil pessoas, ou melhor, “brincantes”, no bom “pernambuquês”.

Na praia, pertencente ao município de Cabo de Santo Agostinho, são montados quatro palcos com programações simultâneas. Pela rua de areia que liga um palco a outro, blocos de maracatu e frevo puxam longos cordões de brincantes. “O melhor daqui é que o povo faz a festa em cima e embaixo dos palcos. É muito divertido”, disse Laurinda Maria Nogueira, de 59 anos, para quem a folia começou no dia anterior, com os preparativos. Junto com as filhas, irmãs, cunhadas e vizinhas, ela preparou um verdadeiro banquete. De dentro de um isopor gigante levado pelo grupo saíam arroz, feijão, frango assado, bife à milanesa, pastel de carne e outros pratos, o bastante para servir as dez pessoas da família e os amigos. “Eu nem acredito que estou aqui, sempre tive vontade de vir, mas não tinha como”, comemorou Severia Olímpia, 78 anos, vizinha de dona Laurinda no bairro de Beberibe, em Recife.

Para chegar à festa, muita gente faz como elas: junta os parentes e amigos e freta um ônibus. Quem vai de Recife para lá, ao deparar com esses comboios, e com romarias de caboclos de lança e outros personagens, já sabe que está no caminho certo. E em meio ao improviso os artistas se preparam para as apresentações.

“É uma festa linda, deveria ser estendida para todo o Brasil. Manifestações como essa são a memória viva da nossa história e deveriam ser tratadas como patrimônio”, disse o compositor, violeiro e cantador mineiro Dércio Marques. Hoje morando em Salvador, Dércio foi a Recife só para participar da festa – e não era uma das atrações. “Todo artista sério deveria estar aqui para prestigiar e ajudar a proteger uma manifestação autenticamente popular”, completa.

Verena Glassfesta
No 1º de Maio deste ano, em sua 24ª edição, a festa atraiu mais de 30 mil “brincantes”

18 buracos

O músico se refere às pressões que os organizadores da festa estão sofrendo por parte da Odebrecht Empreendimentos Imobiliários e dos grupos Ricardo Brennand e Cornélio Brennand, que se uniram para construir um condomínio de luxo nas imediações, o Reserva do Paiva, e não querem uma vizinha tão popular. O bife à milanesa da dona Laurinda não combina com as unidades de 330 a 800 metros quadrados projetadas para o condomínio. De acordo com a assessoria de imprensa, o complexo terá empreendimentos-âncora e áreas para esporte e lazer, incluindo até “um campo de golfe com 18 buracos projetado por Greg Norman, uma lenda viva do golfe”.

Os empreendedores afirmam que não têm nada contra o evento, desde que ele não invada os limites de sua propriedade. No entanto, todo o espaço onde será construído o condomínio – embora ainda não haja nem vestígio de obras – e parte da área pública foram cercados com arame farpado. De acordo com documento enviado pelo departamento de marketing do empreendimento para o organizador da festa, Eduardo Melo, na tentativa de um acordo, a festa não deve ser realizada em áreas que “venham a intervir no bom desenvolvimento da Reserva do Paiva, independente de se tratar de área pública ou privada”.

As respostas enviadas pela assessoria de imprensa da Reserva do Paiva à reportagem demonstram preocupação com a segurança. “Imagina-se que em um espaço com uma dimensão mais apropriada a festa possa oferecer a segurança necessária aos frequentadores”, diz o texto.  A “preocupação” com o público não tem muito fundamento. A Polícia Militar, que ao longo do dia 1º de maio disponibilizou 100 homens para manter a segurança do local, não registrou ocorrências graves.

A festa deste ano só foi realizada graças à intervenção do Ministério Público Estadual, da Secretaria Especial de Direitos Humanos e do Ministério da Cultura. “Invadiram o espaço e queriam desrespeitar o direito de ir e vir dos cidadãos”, diz Ivanir Augusto Alves dos Santos, assessor especial da secretaria, enviado ao local uma semana antes do evento para intermediar com a prefeitura a retirada das cercas e a montagem da infraestrutura necessária para o evento.

Por trás da teimosia dos festeiros há uma questão religiosa. A festa começou com a instalação de uma estátua de uma lavadeira em tamanho natural na casa do artista plástico Eduardo Melo. “O povo daqui nunca tinha visto uma estátua como aquela e começou a fazer oferendas a ela”, conta. Hoje, a estátua simboliza uma filha de Iemanjá. Antes da festa, é realizado um ritual de candomblé e no dia seguinte as oferendas depositadas a seus pés são jogadas no mar. 

“Há uma incompreensão do significado dessa festa. O que eles (os idealizadores do condomínio) não entendem, ou não querem entender, é a religiosidade afro-brasileira. E isso é a alma do Brasil”, disse o ator Sergio Mamberti, presidente da Funarte, que representou o Ministério da Cultura.

Fernando Muniz, secretário de Turismo, Cultura, Esporte e Juventude da Prefeitura de Cabo de Santo Agostinho, discordou: “É uma festa que trata a cultura popular com muita dignidade, a forma com que os grupos se apresentam, com bons equipamentos de som e luz, e a prefeitura dá todo o apoio, mas a realidade de hoje não é a mesma de 20 anos atrás e temos de nos adequar”, disse. “Não podemos pensar única e exclusivamente nas pessoas de baixa renda, temos de dar oportunidade de melhor qualidade de vida para todos, independentemente de renda.”

Este ano a “adaptação” significou perder parte do espaço das apresentações. À medida que a Reserva do Paiva ganhar corpo, esperam-se mais pressões. Apesar de constar no calendário turístico municipal e estadual e ter sido premiada pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, a Festa da Lavadeira corre riscos – de acabar ou se transformar tanto que não será mais possível reconhecê-la.