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Um bico na segregação

Num momento em que o futebol aflora como esperança de redenção africana, Invictus, de Clint Eastwood, lembra o papel histórico do Mundial de Rúgbi de 1995, golaço de Mandela pela igualdade racial

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Se você conhece um pouco a história recente da África do Sul, deve saber que o país da próxima Copa do Mundo viveu mais de 40 anos sob o regime do Apartheid, que Nelson Mandela ficou 27 anos na prisão e que ganhou o Nobel da Paz. Mas o que você sabe sobre a Copa do Mundo de Rúgbi de 1995, a competição que transcendeu o esporte e se tornou a metáfora de país ideal para a África do Sul?

O torneio foi um momento crucial da história sul-africana. Tanto que virou tema de livros, documentários e agora de filme de Hollywood. Dirigido por Clint Eastwood, Invictus, que estreou no Brasil no final de janeiro, já é um dos candidatos a protagonista na festa do Oscar. Além da grife na direção, tem ainda Morgan Freeman (quem mais poderia ser?) no papel de Nelson Mandela e Matt Damon como o capitão da equipe sul-africana de rúgbi, François Pienaar.

Baseado no livro Conquistando o Inimigo, do jornalista inglês John Carlin, Invictus conta a manobra inteligente, porém arriscada, de Mandela de usar o rúgbi para unir o país. Para isso,  precisava persuadir os negros a torcer pela seleção de rúgbi da África do Sul, formada quase que exclusivamente por brancos (apenas um jogador era mestiço). A ideia era ousada, quase uma utopia, porque por décadas o rúgbi era visto pelos negros como esporte de brancos e, portanto, um símbolo do regime de segregação racial. Mas Mandela defendia o lema “um time, um país”, e precisava convencer também os brancos de que a chegada dele ao poder não viria com revanchismo ou vingança.

“Mandela argumentava que o país  precisava mudar, e que iria mudar, mas que as pessoas não deveriam se preocupar, porque seria uma mudança para melhor. Sua ideia de usar o rúgbi foi genial e o filme retrata isso muito bem”, elogia o ex-jogador de rúgbi Mark Andrews, que fez parte da seleção de 1995. “Claro que tem um pouco daquele glamour hollywoodiano, mas é também fiel à realidade. Morgan Freeman está perfeito como Mandela.”

Quatro décadas de Apartheid haviam transformado a África do Sul em um país segregado em todos os aspectos, inclusive nos esportes. Enquanto os brancos eram fanáticos pelo rúgbi, os negros amavam o futebol. Mais do que isso, odiavam a seleção sul-africana de rúgbi – os Springboks – e costumavam acompanhar as partidas só para apoiar os adversários estrangeiros. O próprio Mandela admitiu ter torcido diversas vezes contra os Springboks, embora, assim como a maioria dos negros, não conhecesse a fundo a modalidade.

Só que mais do que simplesmente odiar, Mandela percebeu que a melhor forma de superar o inimigo de então era entendê-lo. Ainda na prisão, estudou a língua e a cultura dos africâneres, a etnia branca que montou o Apartheid. Foi a partir daí que entendeu como o rúgbi era importante para eles. E quando se tornou presidente, já com 75 anos, Mandela enxergou na realização da Copa do Mundo de Rúgbi em solo sul-africano um potencial elemento de união do país, apesar de todas as previsões pessimistas tanto de seus aliados quanto da direita branca. 

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Matt Damon comanda a equipe sul-africana de rúgbi no filme de Clint Eastwood

Pé  de guerra

A aproximação de Mandela, um expoente negro, com o rúgbi, um símbolo branco, também foi uma das várias formas encontradas por ele para jogar água fria nas tensões que sucederam o fim do Apartheid e, por que não, evitar até uma guerra civil que se desenhava no país. A realização das primeiras eleições livres em 1994 não havia eliminado as tensões políticas e o medo de uma revolução, seja por parte dos brancos ou dos negros.

Para ganhar a confiança dos Springboks, Mandela se aproximou do capitão do time, François Pienaar, um jovem branco muito mais interessado em esporte do que em política. Em uma reunião apenas entre os dois, o presidente abandonou a liturgia do cargo e serviu chá para o convidado, uma forma de mostrar que aquela era uma conversa entre amigos e não entre uma autoridade e um jogador. Além disso, Mandela por vezes interrompia a agenda presidencial para visitas surpresas aos treinos do time. Ele sabia que o sucesso de sua estratégia dependia muito de um bom desempenho da equipe e que, para isso, era preciso convencê-la a jogar também por ele.

Meses antes do início do Mundial de 1995, as chances dos Springboks de se tornarem campeões eram tidas como pequenas, proporcionais, aliás, às chances de o plano de Mandela dar certo. Mas conforme a equipe avançava na competição, crescia também a união dos sul-africanos em torno da seleção. “Na verdade, os negros iam aos jogos mais por causa de Mandela do que para torcer pela gente. Mas aos poucos foram ficando ao lado do time”, relata Andrews.

Na época, a África do Sul só  tinha um jogador não-branco. Chester Williams era classificado como coloured (mestiço), o que pelas definições racistas do Apartheid estava mais próximo dos brancos do que dos negros. No entanto, fisicamente era mais parecido com os negros. Por isso, seu rosto foi estampado em todas as peças de publicidade dos Springboks, como símbolo de um novo país. “Embora fosse considerado coloured, eu me sentia honrado de representar a comunidade negra da África do Sul. Ao mesmo tempo foi uma grande pressão e responsabilidade. Felizmente eu consegui corresponder dentro de campo”, relembra Chester.

Hoje com 39 anos, ele é capaz de descrever com riqueza de detalhes o Mundial de 1995, inclusive das aulas que os jogadores tiveram para aprender a cantar os trechos em xhosa – uma das 11 línguas oficiais do país – do novo hino da África do Sul. Somente dois dos 24 jogadores do time falavam o idioma (o de origem de Mandela), e Chester não era um deles.

“O time sabia da importância de aprender o hino, pois precisávamos incorporar o lema defendido por Mandela. Assim como era pedido aos negros que entrassem no mundo dos brancos, era preciso que os jogadores também quisessem participar do mundo dos negros. Mesmo assim, aquelas palavras soavam muito estranhas pra gente a alguns jogadores foram mais resistentes”, conta.

Para o atleta, o ponto alto da Copa do Mundo foi a entrada triunfal de Mandela no estádio no dia da final contra a Nova Zelândia, realizada no estádio Ellis Park, em Joanesburgo: “Ele usava o casaco dos Springboks com o número de Pienaar nas costas e foi aplaudido por todos, brancos e negros. Nunca vou esquecer aquela imagem. Espero que a Copa do Mundo de futebol deste ano possa fazer o mesmo. Os sul-africanos precisam se unir para apoiar o país, seja no rúgbi ou no futebol”.

Os Springboks conseguiram vencer a favorita seleção da Nova Zelândia e se consagraram campões mundiais de rúgbi pela primeira vez. Era o final perfeito para coroar os esforços de Mandela. Ele havia conseguido transformar ódio em perdão; guerra em celebração.

Invictus estreou na África do Sul no dia 11 de dezembro e teve boa receptividade do público. Nos primeiros três dias, foram cerca de 50 mil espectadores, o que para os padrões do país é bastante satisfatório. Foi uma das melhores estreias nacionais para um filme de drama, à frente de títulos como Diamante de Sangue e O Curioso Caso de Benjamin Button. Mesmo assim, Mark Andrews esperava mais.

“As salas de cinema não estão cheias, as pessoas não estão indo prestigiar o filme como deveriam. Talvez porque ele traga recordações de um período complicado da nossa história. Muitas pessoas o estão evitando para que não precisem explicar aos seus filhos o que aconteceu no passado. Preferem esquecer.”