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Uma casa diferente

Quase 30 anos depois do início da luta pela reforma psiquiátrica, algumas dessas pessoas que passaram grande parte da vida morando em manicômios hoje batalham, em casa, para viver dignamente

Gerardo Lazzari

Moradora da Casa Azul, em Campinas, onde vivem seis mulheres e dois homens

A residência não é o que se pode chamar de convencional. Ali vivem oito pessoas que passaram boa parte de suas vidas atrás das grades de um manicômio. O vizinho chegou a sugerir a instalação de tapumes para proteger a casa dos olhares externos. Ou seria o contrário, e o vizinho queria mesmo era proteger seu próprio olhar daqueles habitantes malucos. O “não” respondido pela psicóloga Ruth de Amorim Cerejo, coordenadora do serviço de Residências Terapêuticas da cidade de Campinas (SP), veio acompanhado de um questionamento ao morador: “Afinal de contas, o que o senhor não quer ver?”.

A rotina que o incomodado não deseja assistir é aquela que a sociedade brasileira ignorou por décadas, a necessidade urgente de reintegração de pessoas que passaram anos morando em hospitais psiquiátricos e que foram, ao longo da última década, beneficiadas com frutos da luta contra os manicômios do Brasil. Entre outros serviços, foram criadas as residências, casas ocupadas por pessoas que após longos períodos de internação ficaram abandonadas, perderam o contato com a família e agora buscam nessas “repúblicas” assistidas um retorno ao convívio social.

Somente em Campinas, 30 casas abrigam ex-moradores do antigo Hospital Psiquiátrico Doutor Cândido Ferreira, hoje conhecido como Serviço de Saúde Doutor Cândido Ferreira, que conseguiu migrar de um histórico de tratamentos de choque, penúria e relatos de maus-tratos, tão comuns na história dos manicômios brasileiros, e tornar-se uma referência em atendimento à saúde mental pela rede pública. A sede ainda existe, pacientes em crises agudas às vezes retornam à internação, mas não há muros nem grades e sim pátios abertos onde são oferecidas atividades para geração de emprego e renda não só aos ex-moradores do Cândido Ferreira, mas para um grande número de pacientes da rede de saúde mental da cidade.

As 30 casas de Campinas estão entre as 500 Residências Terapêuticas existentes em todo o Brasil, onde vivem 2.600 pessoas, segundo o Ministério da Saúde. O serviço substitutivo aos hospitais psiquiátricos foi regulamentado dentro da política de saúde mental do Brasil, que por meio de portarias de 2000 permitem o repasse de recursos do SUS para a manutenção das casas. Ainda existem no Brasil mais de 40 mil “moradores” em hospitais e pelo menos 15 mil em plenas condições de serem beneficiados pela alternativa das residências. Cada casa pode abrigar até oito moradores. Todas contam com o auxílio de cuidadores, profissionais que ajudam a tomar conta das pessoas, das necessidades domésticas e da rotina.

Portas abertas

O tempo de permanência dos cuidadores dentro da casa depende do grau de autonomia dos moradores. Nos casos em que o comprometimento é elevado, existe o serviço 24 horas, mas na maioria das casas os cuidadores deixam os lares, sob total responsabilidade dos ex-internos de manicômios, a partir das 19h. “Às vezes, acontece alguma coisa, o telefone toca porque alguém ainda não voltou ou por alguma confusão. Mas na maioria das vezes desenvolvem uma boa autonomia, cuidam uns dos outros e o que se busca é justamente isso, uma vida cada vez mais próxima da que as pessoas levam”, diz a coordenadora Ruth Cerejo. Entre as confusões, acontece de os moradores guardarem pratos de comida dentro do armário de roupas, temperar arroz com café, ligar dois rádios ao mesmo tempo em um mesmo quarto.

Na Casa Azul, em Campinas, onde vivem seis mulheres e dois homens, uma das moradoras com maior grau de autonomia recentemente arrumou um trabalho como doméstica. Em Santo André, no ABC paulista, Maria faz o cafezinho da sede da Organização Social de Volta para Casa, que administra as três residências da cidade. “Gosto muito de viver aqui. Do hospital eu não gostava, não”, conta a moradora. As portas ficam sempre abertas e Maria, assim como seus colegas, pode ser vista o tempo todo cruzando as ruas. “A Maria ficou muitos anos no hospital e não falava nada da sua vida. Depois de um tempo em casa nos contou tudo, que teve marido e filhos. Lembrou de toda a sua história, mas não quer encontrá-los. A casa dela hoje é essa aqui”, conta Glaucia Galvão, coordenadora das residências de Santo André.

Todos os moradores das Residências Terapêuticas são assistidos por serviços médicos multidisciplinares, como os oferecidos pelos Centros de Apoio Psicossocial (CAP), entre outros projetos individuais, de participação em programas de alfabetização a atividades de lazer. Ou seja, o tratamento não ocorre dentro das casas, a missão da Residência Terapêutica é ser apenas um lar. “Incentivamos ao máximo o ambiente democrático e a tomada de decisões coletivas. As assembleias ditam as regras de convivência da casa e são utilizadas para debater a comida, o barulho, se vai ter festa, se pode namorar, transar na casa ou não”, explica Décio Castro Alves, coordenador do programa de saúde mental de Santo André. “É um poder que a sociedade tirou dessas pessoas na época dos manicômios e que temos de devolver”, completa Alves.

Gerardo LazzariJosé
José, de Campinas: “Lembro que queria lutar na Guerra das Malvinas. Depois fui ficando com um negócio na cabeça”

Sexo e cigarro

Com quase uma década de vida, as Residências Terapêuticas estão mais estruturadas. Existem inúmeros desafios, como a convivência com parte da comunidade avessa à ideia de ter a “loucura” tão perto. Mas se os obstáculos são grandes agora, no início pareciam intransponíveis. Os profissionais recordam o estágio de total abandono em que chegaram os pacientes. Não sabiam comer, conversar e, a exemplo de Maria, muitos haviam apagado suas histórias. A postura era agressiva e a maioria teve de reaprender noções básicas de higiene e convivência.

O consumo descontrolado do cigarro é um dos grandes inconvenientes a contornar. A maioria dos moradores das casas é fumante. “Eles fumam o tempo todo. É um hábito que desenvolveram dentro dos hospitais. Não basta falar que faz mal, tentamos negociar, mas é difícil”, explica Glaucia. Maria, por exemplo, trabalhava na cozinha do hospital onde vivia em troca de cigarro. Qualquer semelhança com o que ocorre dentro dos presídios não é mera coincidência.

Já a prática sexual era feita sem pudor, na frente das pessoas e até como moeda de troca. “Apesar de a maioria dos moradores ter uma idade avançada, muitos ainda estão com a sexualidade ativa. Temos casais que se formaram nas casas, que moram juntos e já ajudamos um deles a ir a um motel. Orientamos com métodos contraceptivos, eles participam de programas e palestras sobre sexualidade”, conta Ruth. A volta de uma dessas palestras foi, no mínimo, pitoresca. A agente de saúde ensinou o uso do preservativo desenrolando-o sobre uma banana. No dia seguinte, todas as bananas de uma das casas de Campinas estavam “protegidas”.

José e Stela se aproximaram a partir da longa convivência nas residências. Namoram há mais de quatro anos, mas não dividem o mesmo quarto. Stela fica na casa da frente com outras mulheres. E José divide uma casa no fundo, repleta de bitucas de cigarro pelo chão, com um outro morador. Stela não gosta muito de falar, é arredia. José, dono de um par de olhos verdes impressionantes, fala pelos cotovelos, mas não sobre o namoro. “Ela é uma boa moça, cuida de mim. Pergunta outra coisa, moça”, ordena.

Para falar de seu passado como filho de ciganos errantes que rodou o país, José não economiza. “A vida era uma aventura, eu viajava muito, muito. Lembro que queria lutar na Guerra das Malvinas. Depois fui ficando com um negócio na cabeça. Fui internado várias vezes, tomei muito choque, remédio, injeção. Não gosto nem de lembrar. Mas agora eu tô aqui. Vou viajar no final do ano, ver minha neta, vou lá pro Sul, mas quer saber? Eu vou e quero voltar, ligo aqui todo dia.” Os custos da viagem são pagos pelo próprio José, que é um dos 3 mil beneficiados pelo programa De Volta para Casa, uma verba de R$ 320 paga pelo governo federal para pessoas que ficaram pelo menos dois anos internadas em hospitais psiquiátricos.

O caso de José, que é próximo da família e passa com ela as festas de final de ano, é raro. A maior parte das histórias dos ex-internos é como a de Rutinha, também de Campinas, que aos 70 anos ainda escreve bilhetes para a mãe pedindo para voltar para casa, a exemplo do que fazia quando chegou garota no hospital. Bilhetes que nunca foram enviados.

A total inaptidão em lidar com crises decorrentes de transtornos psicóticos e neuroses graves levou famílias a abandonar pais e filhos sem muito pudor. São diversos os casos de pessoas que internavam parentes com nome e endereço falsos e muitos até hoje não sabem direito de onde vieram, data de nascimento ou nome verdadeiro. Em Campinas, foi feito um grande mutirão de identificação dos ex-moradores do Cândido, que agora possuem carteira de identidade. Não importa que o nome não seja o original, que a data de nascimento não seja a verdadeira, o que importa é que agora, quando alguém faz aniversário, eles comemoram muito na Casa Azul. Uma festa quase sempre comandada pelo entusiasmo de José. Com barulho, bolo e casas de verdade, sem grades nem tapumes.

Maluco beleza
Quem vê Silvio Burza, de 66 anos, trabalhando na loja Armazém das Oficinas, que vende peças artesanais feitas por participantes das oficinas do Cândido, e no programa de rádio Maluco Beleza, pode não acreditar nas tormentas que ele passou. Foram 14 anos em hospitais psiquiátricos, entre tratamentos e drogas pesadas para “combater” as crises de um transtorno bipolar, nos anos 1980. “Achava que iria viver para sempre em hospital, que não poderia voltar. Hoje trabalho, moro sozinho e os avanços na medicina me permitem controlar o transtorno. Tenho uma vida normal graças às conquistas da reforma psiquiátrica”, afirma Silvio.

malucob

Para não esquecer
Nas 24 Residências Terapêuticas de Barbacena (MG) vivem moradores do antigo Hospital Colônia, um dos mais assustadores da história dos manicômios brasileiros, que foi transformado no Museu da Loucura. Totalmente restaurado e adaptado para atividades culturais, suas cinco salas guardam documentos, fotografias, registros sonoros e relíquias, como aparelhos para a realização de eletrochoque e lobotomia, utilizados à exaustão naquele ambiente onde morreram mais de 60 mil pessoas, vítimas de tratamentos agressivos, superlotação e descaso.

No auge do funcionamento, o hospital abrigou cerca de 5 mil pessoas. A maioria entrava para nunca mais sair. Os relatos apontam para comida servida crua e no chão, pessoas dormindo todas juntas, sem cama, convivendo com suas próprias fezes, urina e ratos. Com esse tratamento, não foi difícil chegar ao número de 60 óbitos por semana, mais de 700 por ano.

E as histórias de terror contadas pelo Museu da Loucura não acabam aí. A morte dos internos abastecia de esqueletos e cadáveres faculdades de Medicina de todo o país. Essa história só começou a mudar quando o psiquiatra italiano Franco Basaglia visitou o Hospital Colônia de Barbacena, em 1979, e o comparou aos campos de concentração da Segunda Guerra Mundial. Foi a pedra fundamental da luta contra os manicômios brasileira, movimento marcado pela defesa dos direitos humanos e da cidadania das pessoas com transtornos mentais. Outro importante fato histórico foi o fechamento, em 1989, da Clínica Anchieta, em Santos (SP), impulsionando de vez a Reforma Psiquiátrica Brasileira.