Viagem

Barcelona além de Barcelona

Os olhares sobre a história e a arquitetura da capital da Catalunha por muitos momentos fazem esquecer até a sofisticada arte praticada por Lionel Messi e companhia

Paulo Donizetti de Souza

Igreja mais conhecida pelas duas últimas palavras, até o Parque Güell e a Casa Milà, também conhecida como La Pedrera, aberta à visitação

 

Quem vai a Barcelona munido de um pouco mais do que sede por turismo, ou do que a admiração pela equipe em que brilha Messi, logo terá um encontro com Antoni Gaudí e com as lembranças da Guerra Civil Espanhola. Neste segundo motivo – A Guerra Civil –, existem ligações claras, ainda que poucas, com o Brasil. Foram 16 os combatentes brasileiros do lado dos republicanos, contra os falangistas de Francisco Franco. Além disso, houve mais cinco europeus residentes no Brasil que se juntaram às Brigadas Internacionais. Houve também mais alguns voluntários que partiram para a Espanha, mas por motivos variados não conseguiram chegar às frentes de batalha.

O mais famoso de todos esses combatentes foi Apolônio de Carvalho, que, depois, se reuniria à Resistência Francesa. De volta ao Brasil, militou na resistência à ditadura de 1964; foi preso, torturado, e permanece uma referência para a esquerda brasileira.

La PedreraSe a participação brasileira foi pequena diante de outras, na guerra, a repercussão desta na nossa literatura foi intensa, desde logo. Houve poemas candentes de Carlos Drummond de Andrade e de Manuel Bandeira, por exemplo. Em 1940, Erico Verissimo lançou o romance Saga (baseado no diário de Homero Castro Jobim), cuja primeira parte se passa na Guerra Civil Espanhola, onde seu protagonista fictício Vasco Bruno vai lutar. Ferido, ele é recolhido a um hospital em Barcelona, onde tem um caso com uma das enfermeiras, deixando a suspeita de que ela estaria grávida dele.

Depois, quase como uma resposta ao livro de Erico – que, além de contra os falangistas, era também crítico dos stalinistas –, José Gay da Cunha, também gaúcho, que lá combateu, escreveu suas memórias em Um Brasileiro na Guerra Espanhola.

Voltando ao princípio, quanto à arquitetura de Gaudí, a cidade é farta em amostras, desde o famoso Templo Expiatorio de la Sagrada Familia, igreja mais conhecida pelas duas últimas palavras, até o Parque Güell e a Casa Milà, também conhecida como La Pedrera, aberta à visitação.

Seres habitam o alto de La PedreraNormalmente, os visitantes se extasiam perante a originalidade das obras do arquiteto modernista, morto num trágico atropelamento por um bonde, em 1926. Gaudí dedicou 40 anos de sua vida à construção daquele templo, nos últimos 15 trabalhou nele de forma exclusiva, quase obsessiva. Até hoje o seu escritório continua anexo à edificação da Sagrada Família – que começou e foi inaugurada em 2010, embora se encontre ainda em obras.

A originalidade de Gaudí tem raízes, e não poucas. É difícil – dado o individualismo hegemônico no campo de boa parte da crítica de arte – ler o diário da genialidade como tendo raízes num contexto histórico determinado, sem prejuízo de se reconhecer a originalidade própria do gênio. Como disse
Sartre certa vez, diante de um crítico algo sectário que afirmava que Flaubert era “apenas” um escritor pequeno-burguês: “Sim, Flaubert era um pequeno-burguês. Mas nem todo pequeno-burguês é Flaubert”.

Uma das raízes mais evidentes da arte de Gaudí está nos seus contemporâneos. A Catalunha – da qual Barcelona é a capital – foi das primeiras regiões espanholas a se industrializar. Sua burguesia florescente patrocinou uma das arquiteturas mais originais do mundo – não apenas a de Gaudí, embora este tenha sido exponencial. Vários nomes são expoentes do modernismo arquitetônico catalão: Josep Maria Jujol, Josep Puig i Cadafalch, Enric Sagnier, Josep Vilaseca i Casanova.

Destaca-se o de Lluis Domenèch (1850-1923), criador de uma das construções mais originais desta cidade de construções originais: o Palácio da Música Catalã, onde já tocou e cantou até o nosso Gilberto Gil. O Palau, com um palco amplo e uma acústica reconhecida mundialmente, é uma verdadeira alegoria do mundo catalão, com os motivos florais e luminosos se alternando em vistas que deslumbram o visitante. O ponto central desse deslumbramento é a luminária construída no andar superior, onde se confundem as técnicas de iluminação então de vanguarda com a cultura antiga dos mosaicos, originária dos tempos romanos e medievais.

El DracO salto no tempo do parágrafo anterior é ilustrativo. Uma das raízes da arte catalã, e dentro dela a da obra de Gaudí, são as alegorias medievais, datadas do período artístico – arquitetônico, escultórico e pictórico – denominado como “românico”, apesar de esse nome não ser muito adequado conceitualmente. Essa “arte românica” floresceu no período da Alta Idade Média, época em que predominava na Europa o feudalismo castelão e rural, anterior ao florescimento das cidades góticas. É um mundo de construções pequenas, muitas vezes baixas e apertadas, perto da elevação das torres góticas que caracterizariam o florescimento urbano a partir dos séculos 13, 14 e 15, conforme a região europeia.

Mas na Catalunha o florescimento da arte românica foi esfuziante, colorido e impactante em toda a Europa. A herança dos mosaicos anteriores é evidente – por exemplo, nos olhos “arregalados” dos santos e figuras sagradas na pintura. Mas a coloração exuberante e a comunicação direta com o olhar do observador (embora este seja convidado à resignação diante desse outro olhar que provém de uma sensação da eternidade) apontam para o futuro da arte gótica, mais humanizada, dramática, romântica.

Quem quiser ter uma visão privilegiada dessa arte alegórica que está entre as raízes de Gaudí e de seus contemporâneos que vá ao Museu Nacional de Arte da Catalunha, numa colina de onde se tem uma visão excelente da cidade. É um dos maiores e mais belos acervos de “arte românica” da Europa.

Depois, para arrematar, um passeio por La Rambla, cheia de flores e cafés, visita ao vizinho Mercado de San Josep, também conhecido como La Boquería, animado pelo vinho catalão, que é mais que ótimo. Por alguns momentos, você nem lembrará que está pisando a terra do arquitetônico futebol de Messi e companhia, arte e assunto, claro, para outro departamento – embora eu prefira lembrar mesmo aquele Barcelona de Ronaldinho Gaúcho, ambos derrotados pelo Internacional no Mundial de Clubes, em histórica partida de 17 de dezembro de 2006.