Entrevista

Bibliografia musical brasileira passa por Zuza Homem de Mello

Estudioso da música brasileira, Zuza escreveu uma obra definitiva sobre os festivais dos anos 1960. Mas conta que está sempre atrás do novo

Jailton Garcia/RBA

A partir de João Gilberto surge uma geração de grandes talentos. Se você pergunta se é possível formar uma nova geração como a dos anos 60, posso responder: é. Desde que surja um novo João Gilberto

Um legítimo gramofone Mozart, de 1904, se destaca na sala. “Ainda funciona”, conta Zuza, que em outro cômodo armazena “uns” 10 mil LPs. A música domina o ambiente e a vida de José Eduardo Homem de Mello, mais conhecido pelo seu apelido familiar. Trocou a Faculdade de Engenharia pelo contrabaixo, foi estudar nos Estados Unidos e, na volta, no final dos anos 1950, desembarcou na TV Record, onde seria técnico de som, homem de confiança do dono da emissora, Paulo Machado de Carvalho, e testemunha sonora dos célebres festivais que popularizaram uma geração de compositores surgida naquele instante, à sombra de João Gilberto, considerado por Zuza o “agente provocador”, a “centelha” que fertilizou o solo musical brasileiro naquele momento. A experiência acumulada e o convívio privilegiado resultaram em um livro definitivo sobre o período, A Era dos Festivais – Uma Parábola, lançado dez anos atrás, entre outras obras em que conta a história e as histórias da canção brasileira. Mas, perto dos 80 anos, a se completarem em setembro, Zuza também quer saber do novo, dos talentos que podem brotar. Nesse sentido, considera a mídia – que fabrica sucessos com a mesma desenvoltura com que despreza talentos – “cega, muda e surda”.

Conte sobre a final do festival de 1966 (da TV Record), que terminou em empate, mas não foi exatamente um empate…

Foi ajeitado. Eu era o técnico de som da Record desde 1959, no Teatro Record, o local onde se realizavam todos os shows importantes no começo dos anos 60, os shows internacionais, nos quais eu também estava envolvido. Também fazia parte da contratação dos artistas internacionais.

Você já tinha estudado lá (nos Estados Unidos)…

Num programa musical, a música tem de sair da melhor forma possível, apesar das limitações dos aparelhos de televisão da época. Foi o que eu fiz, colocando mais microfones, dando destaque a instrumentos ignorados pelos técnicos das demais emissoras, como contrabaixo, violão, guitarra.

Fez parte dessas mudanças o célebre microfone pendurado no teto. No filme Uma Noite em 67 (documentário lançado em 2010), a história é contada como se eu tivesse idealizado isso para esse festival. Na verdade, comecei a usar cinco anos antes. Eu era uma espécie de assistente do Paulinho Machado de Carvalho. Em 1966, a final foi antecedida de uma ansiedade muito grande da parte de todas as pessoas envolvidas na disputa, entre as duas canções favoritas, Disparada (de Geraldo Vandré e Theo de Barros) e A Banda (de Chico Buarque). Eram, de fato, as mais destacadas de todo aquele festival, o primeiro da Record televisionado.

Era clima de torcida…

Dividiu-se praticamente o país entre as duas canções. Isso pode parecer exagero, mas não é. As pessoas se juntavam para fazer apostas. E, como as duas canções eram muito diferentes uma da outra, era mais fácil ter as duas torcidas bem delineadas também. Vendo o conteúdo, você deduz perfeitamente qual era o perfil dos torcedores de A Banda e de Disparada.

O curioso dessas canções é envolver dois compositores com muita influência da Bossa Nova na formação, mas ambas vão cada uma para um lado diferente, e ousam pela simplicidade. Vandré faz uma canção num ritmo regional e Chico, uma marcha.

A Bossa Nova foi o êmulo de todos os compositores brasileiros da geração dos anos 60. Todos se tornaram o que seriam, mais especificamente, em função do João Gilberto, que foi o agente provocador de um número razoável de compositores talentosos. A maioria deles era de uma classe média universitária. Então, já tinham uma carreira encaminhada. A música de João Gilberto os atraiu de tal forma que os fez mudar de ideia e resolver seguir carreira de cantor, de compositor, de músico. A partir de João Gilberto surge essa geração de grandes talentos. Se você pergunta se é possível formar uma nova geração como a dos anos 60, posso responder: é perfeitamente possível, desde que surja um novo João Gilberto.

Folhapressfestival da Record de 1966
Jair Rodrigues cantou Disparada, Nara Leão, A Banda, de Chico Buarque. Deu empate “ajeitado” no festival da Record de 1966

O Chico Buarque disse ao Paulinho Machado de Carvalho que, se A Banda fosse vencedora, devolveria o prêmio em público. De fato, Disparada é bem melhor

Voltando ao festival…

Depois desse longo preâmbulo, o assunto do empate. Eu não tomava conhecimento de nada, estava na cabine, isolado. Segundo relato de todas as pessoas envolvidas, o que se passou foi isto: o Chico Buarque, diante da possibilidade de A Banda ser vencedora, teve um gesto muito determinado. Disse ao Paulinho Machado de Carvalho que, se a música dele fosse vencedora, devolveria o prêmio em público. Diante dessa situação, o  Paulo Machado propôs algo que teria sido ventilado na tarde daquele dia, a possibilidade de um empate. Logo depois do festival, o público já tinha saí­do, eu estava lá desligando os cabos, o Paulinho subiu na cabine de som, num lugar quase inacessível, e me entregou um envelope fechado dizendo para guardar e não mostrar a ninguém. Lá tinha o resultado comprovando que A Banda tinha vencido. De fato, Disparada é bem melhor. A Banda, com o tempo, tornou-se uma música merecidamente pouco expressiva na obra de Chico Buarque. E Disparada é considerada uma obra-prima, do Geraldo Vandré e do Theo de Barros, autor da música. Vandré é essencialmente um letrista. Tanto é que, quando ele fez Pra Não Dizer Que Não Falei das Flores, se limitou a dois acordes.

Ele disse a você, inclusive, que a canção em geral é uma funcionária despudorada do texto…

Você sabe que dia foi isso? Na véspera de ele ir ao Rio defender Pra Não Dizer Que Não Falei das Flores. Naquela época, como eu tenho uma formação de músico, estranhei um pouco essa colocação. O tempo foi mostrando que ele tinha razão. Uma grande canção tem de ter uma grande letra. Uma grande canção pode ter uma música razoável, mas uma grande letra pode torná-la uma grande canção. E grandes músicas não são grandes canções porque a letra é fraca. Com o passar do tempo fui prestando cada vez mais atenção às letras. Tenho pelos letristas uma admiração que eu não tinha quando era jovem. Eu, por exemplo, não tinha pelo Cole Porter­ a admiração que passei a ter quando comecei a ler as letras. E as letras brasileiras também.

Grandes compositores expressam essa dificuldade de pôr letras nas canções, de não concluir a frase enquanto não encontram a palavra exata, de ter a sintonia entre o conteúdo e a sonoridade. O Chico não entregou a letra encomendada para a minissérie Anos Dourados

É, a minissérie foi sem letra. E, no entanto, é uma magnífica letra. Ele (Chico) não solta uma letra sem estar convencido. Isso que falta a muitos compositores que soltam de qualquer jeito e, com isso, a obra fica minguada. Eu, que trabalho com texto, fico às vezes uns dois dias em busca de uma palavra. Quando a letra chega ao resultado, pode-se ter a impressão de que foi feita num vapt-vupt, de tão bem feita que é.

Você é contemporâneo de uma geração de músicos, compositores que até hoje são referência, e 40, 50 anos depois continuamos ouvindo esses autores. O que faz brotar uma geração em determinada época e em outras a gente percebe uma certa aridez cultural?

Retornando àquilo que eu disse no início, um ou outro compositor que se destaque pode existir em qualquer época, em qualquer país. Agora, uma quantidade razoável surgindo ao mesmo tempo tem de ter uma explicação mais profunda. Se você pegar os pintores que surgiram em Paris no final do século 19, início do 20, tem de haver uma razão. No caso da música popular, acho que essa centelha é o João Gilberto, que fez surgir esses compositores que, em vez de ocorrer o que ocorreu com os grandes compositores dos anos 30, prosseguiram até uma idade em que raramente o compositor popular continua em atividade. Em geral, com 70 anos o compositor popular já pendurou as chuteiras. Alguém poderá alegar que as duplas sertanejas atraem mais gente do que os shows do Gil, do Caetano, do Chico, do Milton Nascimento, do Edu Lobo, do Dori Caymmi, de toda essa plêiade de compositores. Não dá para comparar. Uma é uma função midiática. Não tem a estrutura musical de representatividade da canção brasileira.

Jailton Garcia/RBAZuza Homem de Mello
Alguém poderá alegar que as duplas sertanejas atraem mais gente do que os shows do Gil, do Caetano, do Chico, do Milton Nascimento, do Edu Lobo, do Dori Caymmi… Não dá para comparar

O futuro vai dizer…

Aquela geração teve uma centelha, o João Gilberto. Da mesma maneira que o grupo de Minas, o chamado Clube da Esquina, teve também uma centelha, Milton Nascimento. Por que o Rio Grande do Sul não tem um grupo de grandes compositores? Porque não teve uma centelha. Por mais que você admire alguns. Tem aquele Nei Lisboa, sensacional. Mas faltou uma centelha. A centelha de Pernambuco é o Luiz Gonzaga, que mais você quer? Jackson do Pandeiro… E nos anos 50 o João Gilberto fez explodir a canção brasileira universalmente. Essa canção brasileira, não a que está na mídia nos dias de hoje. Essa não tem futuro nenhum. Podem mostrar mil números, isso não me impressiona nada, não é argumento.

Se houvesse em 1973 uma Virada Cultural, toda essa safra que você citou, formada uma década antes, estaria lá, assim como pode estar nas próximas, enquanto a longevidade permitir. E, da geração formada nas duas últimas décadas, quem estaria numa virada daqui a 40 anos?

Acho o Guinga um nome perene. Você poderá alegar que ele não é tão jovem assim, mas você tem os que surgiram depois da geração dos anos 60 que têm a longevidade garantida. Há questão de semanas saiu um CD da Rosa Passos interpretando Djavan, uma primorosa edição. Aí você vê claramente porque o Djavan é o Djavan, obra consagrada. Então, você vê nomes como Alceu Valença, Moraes Moreira, João Bosco… O que aconteceu, e é preciso a gente sempre levar em conta, é que o Brasil cresceu muito. Então, a população tinha uma representatividade musical adequada àquele número. Hoje é muito mais. Quando você faz a peneira, o descarte é muito maior.

Falta divulgação para os novos?

Acho que a mídia é surda, muda e cega. Principalmente surda. Ela não é tão cega, não é tão muda, mas surda é. Você pega uma artista americana, como a Beyoncé, por exemplo, é pra multidões, e todo mundo sai muito satisfeito do show porque se divertiu bastante, e o propósito não era mais do que isso, e no entanto há outros que não têm esse mesmo alcance, esse mesmo resultado, e são visivelmente muito mais densos. Você pode perfeitamente ter ambas as coisas. Esconder totalmente e não dar espaço e só dar quando tem algum motivo extramusical… Só com motivos extramusicais esses artistas podem ter o merecido destaque. Mesmo dialogando com as pessoas, você percebe que eles (mídia) não estão muito a fim de discutir o mérito da questão.

Você disse que faltam ouvidos musicais.

Disso não há a menor dúvida. Ela ficou vazia, oca, criou-se um tipo de opinião baseado em elementos extramusicais, e com uma grande repercussão.

E esses mais novos? Dessa geração mais recente, quem você gosta de ouvir?

A Mônica Salmaso é uma que eu gosto muito de ouvir. Curiosamente, alguns cantores e cantoras optaram por um caminho que ofusca um pouco suas totais possibilidades. Por exemplo, a Ivete Sangalo, considerada uma estrela para esse tipo de música, axé ou qual nome você deseje dar, é no entanto uma grande cantora. Se você botar um repertório de primeira categoria, ela dá conta do recado e estraçalha. Então, isso de uma certa forma ajuda as pessoas a ter uma falsa fotografia daquele artista. Para isso existem as pessoas profissionais da crítica, para mostrar ao público como isso é possível. Se você pega um setor da música popular desprestigiado pelos, digamos, mais exigentes, como a música brega, isso não quer dizer que seja inteiramente um horror. Existem artistas que são verdadeiros, e fazem aquilo porque falam a linguagem popular, da camada popular, para quem eles dirigem a música. Existem outros que fazem aquilo pegando uma carona. Essa diferenciação entre os caronistas ou não é que compete a pessoas que trabalham profissionalmente na música.

Jailton Garcia/RBAZuza Homem de Mello
Por exemplo, a Ivete Sangalo, considerada uma estrela para esse tipo de música, axé ou qual nome você deseje dar, é no entanto uma grande cantora. Se você botar um repertório de primeira categoria, ela dá conta do recado, estraçalha

A mídia de massa, comercial, que se tornou a televisão, ajudou a deseducar?

Não tenha dúvida. Aquilo virou um rodapé. Não foi mais lá pra cima.

Essa geração talvez esteja mais diluída, e talvez as pessoas tenham na internet seu meio de acesso ao que não tem muito espaço na mídia comercial.

Estou sempre atrás do que há de novo. O que há de novo é que me atrai. Há pouco menos de dois anos, fiquei bastante impressionado com o trabalho de dois cantores e autores, o Pélico (que acaba de produzir o CD de outro jovem que também desponta, Toni Ferreira) e o Filipe Catto. No ano passado, eu os convidei para um show sobre história da canção brasileira. Eles fizeram um sucesso danado, e não tenho a menor dúvida de que têm um brilhante futuro pela frente. Essa percepção de quem pode se transformar num grande nome compete a quem produz. Por exemplo, nas gravadoras Philips ou Odeon, nos anos 60, eles pinçaram o Milton Nascimento, que não era um produto imediatista de sucesso. Ele gramou muito para se tornar quem é. E assim tem sido. Compete às pessoas batalhar por quem realmente mereça um investimento artístico. E segurar as opiniões céticas de quem não entende. E quem é que entende? Músico. Ponto final. Se você for discutir com quem só vê o marketing, vai perder seu tempo.

Esse tipo de profissional leva um artista a perverter seu princípio? Por exemplo, o Milton penou, mas seguiu sua linha sem se render. Você citou um exemplo conhecido. Sá Marina, que a gente conheceu com o Simonal, é sensacional com a Ivete. Mas ela seguiu a linha pop star.

Você não pode obrigar a pessoa a fazer aquilo que ela não quer. Mas é obrigado a reconhecer que ela é capaz de fazer aquilo. Essa é a grande diferença. Essa percepção de quem não faz, mas é capaz de fazer, é do músico.

Quem pinçou a Elis Regina, por exemplo? Ou foi ela quem se impôs?

Houve várias pessoas que perceberam, em várias etapas do início da carreira da Elis, as qualidades que estavam embutidas nela como cantora. No Rio Grande do Sul, depois quando ela foi para o Rio de Janeiro… Por exemplo, o Lennie Dale. Quem não pinçou a Elis foram os caras da Continental, que a fizeram  gravar aquela coisa de Brotolândia. Em compensação, o pessoal da Philips – o produtor do primeiro disco dela foi Armando Pittigliani – viu que não era por aí. Você via nitidamente as pessoas que queriam transformar a Elis numa cantorinha qualquer. Por que o Paulinho Machado de Carvalho investiu uma fortuna para contratar a Elis? Porque percebeu quem ela era. Ele foi criticado enormemente dentro da própria Record. E em menos de três meses ela já estava dando retorno com o programa O Fino da Bossa. Tanto que gerou cinco ou seis programas musicais diferentes, em menos de um ano a Record estourou e ficou líder de audiência.

O que você acha da Maria Rita? Ela tem grande semelhança de voz com a mãe, mas isso basta ou pode ser um impedimento para decolar uma carreira própria?

É uma faca de dois gumes. Você tem de escolher qual vai usar. Eu, com toda franqueza, acho que esses dois CDS que ela fez com canções da Elis, em arranjos praticamente idênticos, é de uma inutilidade absoluta. Não tem sentido, é como um pintor resolver pintar a Mona Lisa. Claro, a gravadora está esfregando as mãos de contentamento, porque o show tem um sucesso danado. Por quê? Por causa da mãe, poxa vida. Aquilo já foi feito daquele mesmo jeito. É um clone! É como esses clones que tem do Elvis Presley nos Estados Unidos. Cansei de ver esses shows. Tinha um que até enxugava a testa com um lencinho e dava o lenço para uma moça na plateia. Acho que, enquanto ela tiver nessa, não tem futuro. O que você prefere? Ouvir o disco da Elis ou o da Maria Rita? E, no entanto, é um sucesso.

Algo comum nessa safra genial é a leitura do mundo. E não havia só contestação. A Banda é uma crônica. Disparada é um miniconto. Hoje, você vê alguém, fora do hip-hop, fazendo essas leituras?

Acho que tem pessoas… O que eu percebo é que o preparo de instrumentistas e arranjadores hoje é muito maior. Kassim, Beto Villares, Dante Ozzetti­, têm músicas maravilhosas. Constato de maneira muito clara o preparo técnico de músicos, instrumentistas, arranjadores que hoje em dia fazem coisas fantásticas. E tem casos de cantores que impressionam muito através do CD e quando você vai ver ao vivo não é a mesma coisa. Por que isso acontece? Por culpa dessas pessoas que fizeram um produto tão bem feito que dá a sensação de que o principal, no caso a cantora, também é algo muito bom. Lembro de ter ido a uma audição no Natura Musical, de novos cantores. Vi uma cantora na qual eles estavam apostando muito. Era uma moça bonita, se trajava ousadamente… Cantou três ou quatro músicas, e quem me impressionou foi um cara que tocava violão e depois, vim a saber, era o arranjador. Fui falar com ele, não com ela. Pessoas como ele são requisitadas para fazer a “cama” de quem os produtores ou os investidores acreditam que será ídolo do futuro. Não estou sendo catastrófico nem dizendo que não tem ninguém. Claro que tem. Mas eu noto como isso é possível, o que provoca uma certa ilusão.

Mas sempre teve isso de produtores, empresários, tentarem vender seus produtos. É que agora tomou uma dimensão muito grande.

Muito grande e com grande lucro por trás. A gente trouxe agora alguns dos maiores músicos de jazz nesse festival, BMW. Talvez o maior exemplo disso seja o Pat Metheny  – que ganha menos do que qualquer uma dessas duplas sertanejas. Onde está a lógica nisso, sob o ponto de vista musical, artístico? Forma-se um produto que atinge o objetivo de trazer multidões que são levadas meio sem saber para onde vão. É a sensação que eu tenho quando vejo aquele povo todo fazendo assim (mexe os braços para um lado e para o outro, padrão plateia de auditório). Virou uma massa humana que você leva de repente para onde quer. Pessoas visivelmente robotizadas.

Falando no advogado do diabo, nos festivais a gente via aquelas imagens das pessoas pulando, gritando… Como diferenciar?

Bom, em primeiro lugar havia uma situação política completamente diferente. Hoje em dia temos uma democracia, naquela época não existia. Não era unanimidade, havia facções pró e contra. Mesmo a vaia do Sérgio Ricardo (quando tentava cantar Beto Bom de Bola no festival da Record em 1967) não foi unanimidade. Nesse caso que você comparou, as pessoas são robotizadas, e as de lá tinham opinião política formada. E, a propósito disso, vale a pena a gente lembrar que pela primeira vez em muitos anos essa juventude está fazendo valer a sua voz, o que estava fazendo muita falta no Brasil, as pessoas protestarem, sob o pretexto de 20 centavos a mais na tarifa de ônibus, que não é o verdadeiro motivo, evidentemente. É o descontentamento, a completa decepção com a classe política brasileira. Estão abusando da nossa capacidade de raciocínio e de percepção das coisas. Então, esse movimento, é a primeira vez que eu vejo desde aquela época em que os jovens saíam às ruas. Não é nem operário, nem velho. É jovem, e a maioria estudante, que tem o peito aberto, enfrentam a bala, enfrentam o poder.

É possível fazer festivais bem-feitos, ou é um formato que está esgotado?

Acho isso muito difícil. É uma fórmula legal, que permite florescer sementes que estão embaixo da terra e a gente não vê. Mas a fórmula eu acho que está bem desgastada, embora continuem a existir esses festivais regionais pontuais.

Houve aquela tentativa da Globo…

Mas foi uma tentativa bem manipulada. Fui júri de duas edições, era visivelmente manipulado. O sucesso na história dos festivais da TV Record era exatamente que não existia manipulação, por mais que possam ser acusados disso. Por exemplo, o Sérgio Ricardo me acusou de ter manipulado as vaias, o que é um absurdo, ocultado o microfone suspenso.

O caso do Sérgio Ricardo foi o mais conhecido, até pelo gesto dele, de quebrar o violão. Mas muita gente foi vaiada.

O Roberto Carlos também foi vaiado. Mas a vaia não foi para ele, mas porque a música não tinha conteúdo político.

A Cynara e Cybele sofreram para cantar Sabiá (no festival de 1968, da Globo).

O fato é que Sabiá (de Tom Jobim e Chico Buarque) estava disputando com uma canção (Pra Não Dizer Que Não Falei das Flores) que tinha um conteúdo político inusitadamente explosivo.

Jailton Garcia/RBAZuza Homem de Mello
Quem não pinçou a Elis foram os caras da Continental, que a fizeram gravar aquela coisa de Brotolândia. Em compensação, o pessoal da Philips viu que não era por aí