Santayana: Uma Igreja para os pobres

O papa Francisco sabe que a Igreja está sobre o fio da navalha e que sua unidade vai depender da decisão corajosa de voltar a Cristo e renunciar à adoração do Bezerro de Ouro bíblico

A primeira viagem do papa Bento XVI, fora da Europa, foi ao Brasil, logo depois de eleito em 2007. O pontífice, conhecido por suas posições conservadoras e pela influência exercida sobre seu antecessor, João Paulo II, veio ao Brasil – o maior país católico do mundo – a fim de reafirmar a nova ortodoxia da Igreja, de firme oposição a qualquer suspeita de simpatia do clero para com a Teologia da Libertação.

Naquele mesmo ano, um pouco antes da eleição de Bento XVI, Jorge Bergoglio, já arcebispo de Buenos Aires, esteve em Aparecida (SP), em encontro promovido pela Conferência Episcopal da América Latina (Celam) para discutir a revitalização das Comunidades Eclesiais de Base, surgidas no Brasil nos anos 1970 e desestimuladas pelo papa João Paulo II. Bergoglio foi vigoroso defensor das comunidades e relator da decisão aprovada pelos prelados presentes. Bento XVI, ao chegar ao Brasil, esfriou os ânimos dos bispos da região. A Igreja tinha outras prioridades.

Ao optar pelo Brasil para sua primeira viagem internacional, o papa Francisco não está apenas atendendo à necessidade de participar da Jornada Mundial da Juventude, que já estava prevista durante o pontificado anterior. Ele decidiu expressar, de forma sutil, seu alinhamento à “opção preferencial pelos pobres”, do papa João XXIII, ao condenar, com firmeza, o hedonismo de nosso tempo e verberar um sistema de produção de bens descartáveis e de seres humanos igualmente dispensáveis.

É certo que ele age com inteligência política. Não lhe é prudente atuar em contraponto aberto com o papa Bento XVI, que abdicou do trono de São Pedro, enquanto não se assegurar do controle real da Cúria Romana, um centro de poder dividido em grupos rivais, no que se refere ao usufruto dos bens da Igreja e até mesmo a algumas questões teológicas.

O papa conhece, e bem, a estrutura interna da Igreja, com suas dioceses espalhadas pelo mundo. Conhece, da mesma forma, a debilidade pecaminosa de sacerdotes, bispos, e até mesmo arcebispos, acusados de crimes nefandos e protegidos durante os últimos 35 anos, os dos pontificados seguidos de Wojtila e Ratzinger.

Ele sabe que a Igreja está sobre o fio da navalha e que sua unidade, pelo menos formal, vai depender da decisão corajosa de voltar a Cristo – o Cristo que açoitou os vendilhões do templo e multiplicou os pães e os peixes para saciar a fome daqueles que o seguiam pelas trilhas da Palestina e não tinham o que comer. Voltar a Cristo é renunciar à adoração do Bezerro de Ouro bíblico. É relembrar o que disse Jesus a um jovem que queria acompanhá-lo: em primeiro lugar, que se desfizesse de todos os seus bens.

Bento XVI chegou a afirmar que sua missão era recuperar a Europa para a Igreja Católica, livrando o continente de seitas protestantes e da presença do Islã. Enfim, pretendia voltar ao Concílio de Trento, que se reuniu em 1545 naquela cidade italiana, e durou 18 anos, até 1563, para restaurar a Inquisição e acabar com os protestantes. Seu tom de cruzada assustou até mesmo alguns setores tradicionalistas da Igreja.

A abdicação era vista como inevitável, tendo em vista sua extrema debilidade física, com reflexos mentais. Observadores mais atentos acreditam que ele, ao deixar o cargo, pretendia escolher o sucessor e, por seu intermédio, continuar governando a Igreja, com o apoio da Cúria. Ele não esperava a eleição de Bergoglio, a quem derrotara na disputa de há seis anos. Bergoglio, por seu turno, vai agindo pragmaticamente, ao limpar a Cúria dos indesejáveis, ao mesmo tempo em que faz todas as homenagens a Ratzinger, chegando a assinarem juntos a primeira encíclica de seu papado. Aos poucos, Ratzinger, a cada dia mais débil, se converterá em simples pensionista do Vaticano.