Música

Wilson Baptista e sua obra vão muito além da rinha com Noel

Com pelo menos 500 composições gravadas, Wilson Baptista ganha biografia para mostrar que foi muito além da polêmica com Noel. De quem, aliás, foi parceiro

O cantor e compositor Wilson Baptista, 1955. Foto: Arquivo O Cruzeiro/EM/D.A Press <span></span>Cyro Monteiro e Vinícius de Moraes nos anos 1960. Foto: Pedro de Moraes <span></span>

Wilson Baptista de Oliveira não tocava nenhum instrumento. Era bamba na caixa de fósforos. Não era do morro, nem de escola de samba. Nunca teve um trabalho formal, mas produziu centenas de composições – pelo menos 500 foram gravadas. Um dos mais criativos compositores brasileiros, teria completado 100 anos em 3 de julho, e morreu pouco lembrado, em 1968. Em breve, ganhará uma biografia, preparada pelo pesquisador, produtor e músico carioca Rodrigo Alzuguir, que questiona a fama de malandro colada em Wilson. “Foi um dos caras que mais trabalhou na geração dele. Existia um preconceito, entre os próprios músicos, contra quem se dedicava só à música.”

O que mais encantou o biógrafo, inicialmente, foi a presença de personagens. “Tem sambas que são praticamente minioperetas”, diz. Em Oh, Seu Oscar, por exemplo, são três personagens em uma só estrofe: Oscar, a vizinha e a mulher que foi embora. Também tem a Etelvina de Acertei no Milhar e outras canções. E Cabo Laurindo, que leva o pesquisador a desconfiar de certa simpatia de Wilson Baptista pelo comunismo: “Amigo da verdade/ Defensor da igualdade/ Dizem que lá no morro/ Vai haver transformação/ Camarada Laurindo,/ Estamos à sua disposição”. “Mas ele não era de se comprometer com uma ideologia, a não ser o Flamengo”, brinca Rodrigo.

Comunista ou não, o compositor deixava explícita a crítica social em canções como Pedreiro Valdemar, de 1948, que falava do operário construtor de tantas casas, mas sem casa pra morar. Curiosamente, o presidente Getúlio Vargas declarou que gostava muito dessa marchinha, também citada tempos depois por seu principal opositor, o governador da Guanabara Carlos Lacerda.

Nesse sentido, brinca, Emília (“Quero uma mulher/ Que saiba lavar e cozinhar/ E de manhã cedo/ Me acorde na hora de trabalhar”) poderia ser casada com o operário que pega o bonde São Januário. Mas era mais comum encontrar mulheres de certa forma “liberadas”, ainda mais para a época. Exemplo é Boca de Siri, em que uma delas cai na farra no carnaval e depois diz: “Quem encontrar o meu moreno por aí/ Faça-me o obséquio, boca de siri”.

Outra característica que chamou a atenção do biógrafo foi o lado “filósofo” do compositor de origem simples, nascido em Campos, no Norte Fluminense, e que ainda criança foi com a família para o Rio de Janeiro. “Assim como tinha fascínio pela malandragem, ele gostava de literatura, filósofos. No Café Nice (conhecido ponto de encontro da boemia carioca), vivia muito em torno de jornalistas e intelectuais. Então, tem muito samba brincando com isso.”

Foi assim que entrou Freud no samba, em Complexo, gravada em 1950 por Elizeth Cardoso: “Eu não tinha recalque, eu não tinha complexo/ Minha vida era bela e calma/ Até que você entrou pela porta do meu coração/ E hoje não sou dona de minha alma”.
Em outra canção conhecida, Chico Brito, lançada por Dircinha Batista em 1949 e gravada 30 anos depois por Paulinho da Viola, haveria traços do filósofo Jean-Jacques Rousseau: “Mas a vida tem os seus reveses/ Diz sempre Chico, defendendo teses/ Se o homem nasceu bom/ E bom não se conservou/ A culpa é da sociedade que o transformou”.

Para Rodrigo, Wilson Baptista era uma figura avançada para seu tempo e “muito mais rica que o clichê” do sambista, por não ser ligado a nenhuma escola, nem ser originário do morro carioca. Sua marca registrada é mesmo o humor, como observa o pesquisador, que se aprofundou na obra de Wilson a partir de 2000, quando fez o encarte do disco Ganha-se Pouco, mas é Divertido, de Cristina Buarque.

E tem, é claro, a famosa polêmica com Noel Rosa, que pode ter contribuído para um menor conhecimento da obra de Wilson Baptista. Nos anos 1970, Paulinho da Viola chegou a lamentar que as pessoas só se lembrassem de Wilson – “o maior sambista brasileiro de todos os tempos” – por causa da polêmica, que na obra dele “é apenas um detalhe”.

Para o biógrafo, o que ofuscou Wilson verdadeiramente foi a “burrice do brasileiro, que não tem memória”. Ele comenta que aos 40 o compositor já era tido como “velha-guarda”. Rodrigo também acredita que o fato de Wilson ter morrido em 1968, quatro dias depois de completar 55 anos, fez com que não participasse de um movimento de resgate do samba, que começava a acontecer naquele período, trazendo à luz nomes como Cartola, Nélson Cavaquinho, Adoniran Barbosa e Ismael Silva.

A versão que se consolidou ao longo do tempo tem um viés politicamente correto. Wilson fez Lenço no Pescoço, lançada em 1933, em que o narrador diz ter orgulho “em ser tão vadio”. “Não é um autorretrato do Wilson”, observa Rodrigo,  “mas uma homenagem àqueles malandros de uma geração anterior, advindos da capoeiragem.” Noel teria ficado incomodado com a apologia à malandragem e respondido a Wilson com Rapaz Folgado.

O compositor e pesquisador Almirante foi quem consolidou essa versão de que a “briga” musical se deu entre um malandro e um rapaz comportado. O que também não era bem assim, já que Noel era amigo dos malandros. Nos anos 1950, Almirante apresentou uma série radiofônica que acabaria consolidando, segundo Rodrigo, “uma versão politicamente correta da polêmica”. Na origem, a briga ficou restrita ao ambiente musical  – só virou polêmica mesmo duas décadas depois.

Mas faltou um elemento importante. O que aconteceu foi que Noel Rosa e Wilson Batista se interessaram pela mesma mulher, uma dançarina de cabaré da Lapa, e Wilson levou a melhor – e aí Noel resolveu cutucá-lo com Rapaz Folgado. E veio uma sequência de músicas, que entraram para a história: Mocinho da Vila (Wilson, 1934), Feitiço da Vila (Noel, 1934), Conversa Fiada (Wilson, 1935), Palpite Infeliz (Noel, 1935), Frankenstein da Vila e Terra de Cego (Wilson, 1936).

Inimigos para sempre? Que nada. A tal “briga” terminou em parceria – em uma mesa de bar, claro. “Eles se encontraram por acaso num botequim e aí o Noel pediu para o Wilson cantar Terra de Cego. Ali mesmo, Noel fez uma nova letra. Eles fizeram uma parceria e mudaram o foco da polêmica”, conta Rodrigo. Sobrou para a moça pivô do triângulo: “Deixa de ser convencida/ Todos sabem qual é/ Teu velho modo de vida”.