saúde

Doutores em negócios. Em que mãos está a política de saúde de SP

Secretaria da Saúde do governo Alckmin é comandada por médicos que misturam serviço público com interesses privados

EDSON LOPES JR/A2 FOTOGRAFIA/Governo do Estado, SP

Alckmin e Uip: processos e coleção de empresas

Ao completar dez anos, o Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (Samu) cobre praticamente 80% da população do estado de São Paulo. Nos últimos três anos, para cada ambulância fornecida pelo governo estadual, a União cedeu quatro. No período, os recurso do orçamento para compra desses veículos foram reduzidos em 80%. Além disso, São Paulo é a única unidade da federação que não entra no rateio do financiamento do serviço, no qual União entra com metade e estados e municípios dividem os outros 50%.

No caso paulista, a parte do estado sobra para as prefeituras. A opção do governador Geraldo Alckmin (PSDB) é investir no próprio programa, o Grupo de Resgate e Atendimento às Urgências (Grau), em parceria com o Corpo de Bombeiros – corporação que também padece de falta de recursos. Em três anos, caíram também os repasses para aplicação­ na atenção básica, hospitalar e ambulatorial e na vigilância sanitária e epidemiológica nas cidades paulistas.

O problema chega à distribuição de medicamentos: o programa Dose Certa ficou fora do orçamento nos dois últimos anos, e uma fábrica de genéricos da Fundação para o Remédio Popular (Furp), inaugurada em 2009, em Américo Brasiliense, produz menos de 5% de sua capacidade total. Há ainda o sucateamento de serviços públicos, em especial pronto atendimento, hospitais e outras unidades, mesmo as administradas pelas organizações sociais de saúde (OSs), propaladas como exemplo de gestão. Dos 23 hospitais estaduais, 12 estão hoje nas mãos dessas entidades, cujas contabilidades não andam bem – e fica difícil se saber o porquê, pois falta transparência na prestação de contas. Ano passado, o governo destinou a elas R$ 4,6 bilhões, enquanto a administração direta no setor recebeu R$ 5,1 bilhões. Entre 2008 e 2012, os recursos para as OSs aumentaram 268%, de R$ 917 milhões para ­­­R$ 3,3 bilhões.

Com números ruins, em vez de ajustes na política o governo de São Paulo recorre a um esforço de melhorar a imagem como forma de “concorrer” com a boa avaliação do Programa Mais Médicos, do governo federal, que agora em 2014 deve levar o ministro Alexandre Padilha à disputa com Alckmin pelo Palácio dos Bandeirantes. A uma parte desse esforço os cidadãos podem assistir diariamente nas propagandas do governo veiculadas em horário nobre. Outra demonstração de empenho na melhora da imagem está na indicação de médicos renomados, com carreiras brilhantes em grandes hospitais e nas universidades e bom trânsito entre celebridades e lideranças políticas de todas as cores. Entretanto, essas indicações podem não significar necessariamente sintoma de preocupação com a saúde pública.

Conflitos de interesses

O secretário estadual de Saúde é David Everson Uip, professor de Medicina e infectologista conhecido internacionalmente. Iniciou carreira pública em 1986, como médico assistente no Instituto do Coração (Incor), que chegou a dirigir. Em 2009, tornou-se diretor do Instituto de Infectologia Emílio Ribas. Mas nunca se desligou da iniciativa privada. Que o digam amigos empresários de Uip que foram em peso prestigiar sua palestra em evento promovido no início de dezembro pela Lide, organização de lideranças empresariais presidida pelo jornalista e empreendedor João Doria Jr.. Amigos do secretário, dirigentes do Sírio-Libanês e Albert Einstein enalteceram suas fortes ligações com essas instituições. Aliás,­ seu nome continua vinculado ao Sírio por meio da Sociedade Beneficente de Senhoras, articuladora da OS que administra o Hospital Geral do Grajaú e o Serviço de Reabilitação Lucy Montoro, entre outras unidades.

No mesmo evento, à vontade, agradeceu o ex-presidente local da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB-SP) Luiz Flávio Borges D’Urso, por defendê-lo em um processo que acabou arquivado. Não especificou qual, e há mais de um em seu currículo. Uma das empresas do secretário, a Sociedade de Consultoria e Assistência Médica David Uip Ltda., já foi pivô de suspeitas de irregularidades. Em 2005, o vendedor Wilson Gandolfo Filho levou à Comissão de Fiscalização Financeira e Controle da Câmara dos Deputados denúncia de que o médico Rogério Zeigler, do quadro do Incor e sócio de Uip, o teria cobrado na Justiça por serviços prestados entre julho e agosto daquele ano, durante internação para tratamento de doença cardíaca.

O caso foi investigado pelo Tribunal de Contas da União (TCU), que aceitou as explicações do ex-diretor. Mas os peritos viram outras irregularidades, como falta de cotação de preços para compra de bens e serviços e de comprovantes de despesas, movimentação em conta estranha à do convênio, além de pagamento de salários e encargos da Fundação Zerbini, que ele também presidiu, e do Incor, com recursos federais, entre outros. No relatório do TCU constam os nomes de José Eduardo Rangel de Alckmin e José Augusto Rangel de Alckmin, primos de Alckmin, entre os defensores constituí­dos nos autos.

Outro processo que D’Urso pode ter arquivado seria o que decorreu de suspeitas numa campanha para angariar recursos para o Instituto Emílio Ribas. Em novembro de 2009, Uip avalizou, juntamente com o então prefeito paulistano, Gilberto Kassab, a campanha “A cara da vida”, criada pela apresentadora Adriane Galisteu em gratidão ao hospital que tratou seu irmão soropositivo. O empresário Alexandre Iódice, hoje marido de Galisteu, produziu inicialmente 5.200 camisetas para doar à campanha. Como lembra um colega da área, Uip autorizou o uso do nome da instituição para captar dinheiro, mas não se sabe quanto foi arrecadado nem quem fiscalizou a destinação. Em reuniões, Uip teria dito que depositou o dinheiro em sua conta por gozar de confiança dos envolvidos.

Em Guarujá, onde tem casa de praia, pretensões políticas e proximidade com autoridades, o infectologista é chamado de Dr. Negócios. Segundo registros na Receita Federal e na Junta Comercial de São Paulo, Uip é sócio de diversas empresas, como a David Uip Prestserv, a Uip Indústria, Comércio e Prestação de Serviços em Construção Civil e Transportes Ltda., a Uip Patrimonial S/A e a Transuip Transportes, Logística e Serviços Ltda. Mas a alcunha deve-se a uma tentativa do secretário, em 2009, de adquirir o único hospital do município, o Santo Amaro – negócio barrado pela Câmara Municipal.

A minuta do contrato que seria celebrado entre a mantenedora Associação Santamarense de Beneficência do Guarujá (ASBG) e a Sociedade de Consultoria e Assistência Médica David Uip Ltda., cuja cópia foi obtida no Legislativo local, rezava, entre outras coisas, que ele teria autonomia durante 35 anos, podendo até construir alas particulares e mudar o nome do hospital. Como lembra o jornal A Tribuna, de Santos, Uip – que havia assumido a direção do Emílio Ribas no começo daquele ano – “chegou a alinhavar com a Secretaria de Estado da Saúde uma parceria visando um auxílio financeiro para o Santo Amaro”. Seu sonho de ter um hospital em Guarujá acabou realizado, de maneira indireta, em junho passado, quando foi inaugurada filial do instituto de infectologia no distrito de Vicente de Carvalho, em prédio cedido pela prefeitura.

Iate Clube

Mais discreto, o secretário-adjunto, o cirurgião Wilson Modesto Pollara, já dirigiu o Instituto Central do Hospital das Clínicas de São Paulo e o São Camilo, da rede privada. Pollara parece avesso a badalações. Mas nem sempre é possível escapar de eventos sociais. Um deles, uma festa no Iate Clube do Guarujá, rendeu-lhe na coluna social de um jornal local uma foto ao lado de um velho amigo: o colega de profissão Mauro Hamilton Bignardi. Conforme legenda em reportagem do blogueiro e colunista social Welinton Andrade, ambos estão na ASBG, a que quase vendeu o hospital Santo Amaro a Uip.

Pollara e Bignardi são também sócios na BP Consultoria e Gestão Empresarial Ltda. A empresa aberta em 12 de julho de 2012, com sede em São Bernardo do Campo, na região do ABC, fornece “assessoria e consultoria na área da saúde, orientação e assistência operacional para gestão do negócio, em matéria de planejamento, organização, reengenharia, controle orçamentário”. Embora seu nome não apareça entre os diretores, Pollara é sócio também da empresa Intensimed Cuidados Médicos Intensivos, criada para prestar serviços de medicina intensiva, captação de recursos humanos, organizar rotinas assistenciais e assessorar áreas de desenvolvimento tecnológico.

Bignardi tem ainda outras empresas. É sócio da Essencial Participações e Construções Ltda. e da Serra do Mar Mineradora Ltda.. Aparece também como sócio-diretor das empresas Cubatão Serviços Médicos, Guarujá Serviços Médicos, Praia Grande Serviços Médicos e São Vicente Serviços Médicos, que tiveram seus contratos com a prefeitura de Itapetininga investigados pelo Tribunal de Contas. Segundo o Correio de Itapetininga noticiou em dezembro de 2012, todas prestavam serviços praticamente exclusivos para a OS Serviço de Assistência Social e Saúde (SAS). Além do Hospital Regional de Itapetininga, a OS administrava unidades em Americana, Araçariguama, Vargem Grande Paulista, São Miguel Arcanjo e São Paulo.

O esquema foi investigado pelo Ministério Público paulista, que no último 6 de dezembro encaminhou à Justiça o inquérito da chamada Operação Atenas. Até agora, o nome dos envolvidos não foi divulgado. São informações a se prestar atenção nas próximas semanas, para que se possa conferir em que medida a qualidade curricular das autoridades em saúde do Estado está a serviço do serviço público. Ou se há interesses privados a contaminá-las.

Leia também

Últimas notícias