Mundo

A batalha pela qualidade do ensino público, lá como cá

Em Londres, uma das cidades pioneiras do bem-estar social, o favorecimento ao ensino privado e à competitividade deterioram o sentido e a qualidade da educação

Eddie keogh/reuters/latinstock
Eddie keogh/reuters/latinstock
Proposta da escola compreensiva privilegia formação de cidadãos críticos

Há quem veja os problemas brasileiros como jabuticabas: só existem aqui. Mas a jornalista e ativista inglesa Melissa Benn publicou um livro pela editora Verso em que narra a luta encarniçada de setores da população britânica contra a progressiva deterioração do ensino público e contra o favorecimento governamental ao ensino privado. Trata-se de School Wars – The Battle for Britain’s Education, título que em tradução livre seria “Guerras na escola – A batalha pela educação na Grã-Bretanha”. Diz a apresentação: “Desde os anos 1960, os políticos britânicos têm prometido oportunidades educacionais iguais para todos e fracassado. O governo de coalizão está intensificando a fragmentação e privatização do sistema escolar da nação, tornando zombaria suas proclamações de promover a mobilidade social”.

O sistema educacional britânico é cheio de contradições. A melhor escola estatal da Inglaterra, a Mossbourne Community Academy, no bairro pobre de Hackney, é uma ilha de excelência – porém para poucos. Instalada em 2004, atende com merendas gratuitas apenas metade dos alunos inscritos na antiga escola estatal do bairro. Melissa assim descreve a Mossbourne, uma parceria público-privada: “No recreio, um homem que parece um agente do serviço ­secreto dos Estados Unidos, vestindo um paletó bem cortado e portando óculos escuros, vigia uma massa de adolescentes londrinos vestindo a marca registrada da escola, blazers cinza com fímbrias vermelhas”.

Segundo ela, o auditório é impressionante e as salas de aula são cheias de luz, mas essas excelências só atingem parte da população em idade escolar do bairro, tornando uma piada a “igualdade de oportunidades”. Andy Beckett, resenhista do jornal The Guardian, comentou que Melissa Benn mostr­a como o sistema escolar britânico moderno pode ser uma fonte de perplexidades: “Ao mesmo tempo inspirador e deprimente, público e privado, igualitário e elitista, seletivo e não seletivo, secular e religioso, multicultural e monocultural, centralizado e anárquico, politizado e apolítico, sem verba e perdulário, deteriorado e brilhante de tão novo”.

A autora constata que a maioria das escolas estatais ocupa um espaço desconfortável entre o público e o privado. “Elas não são nem empresas de negócios, nem um serviço público robusto (…) Uma boa escola local é uma mistura de interesse próprio e de interesse partilhado, que transcende e anula os valores do lucro e do consumo, do comércio e do cliente”. Melissa Benn não culpa apenas os governos conservadores e o “novo trabalhismo” do ex-primeiro-ministro Tony Blair, rival de seu pai, o esquerdista Tony Benn, pelo estado precário de grande parte do ensino britânico. Ela defende a tese de que os antigos governos trabalhistas, desde os anos 1940, nunca conseguiram dar ao ensino estatal os padrões de excelência e a respeitabilidade de que gozou durante muito tempo a saúde pública britânica.

Desde o início da instauração do Estado­ do Bem-Estar Social pelos governos trabalhistas a partir de meados dos anos 1940, a educação foi uma espécie de prima pobre do novo sistema. Na verdade, no pós-Segunda Guerra Mundial não teria havido um esforço verdadeiro para instaurar o chamado ensino “compreensivo”, postulado pelos educadores progressistas, no lugar do ensino “seletivo” tradicional.

Para o leitor brasileiro, é preciso explicar que, em termos britânicos, o ensino “seletivo” é aquele em que a escola aceita como alunos apenas os que disponham de verbas para pagar altas mensalidades e, na melhor das hipóteses, aceita apenas os que tenham recebido notas altas em exames especiais de admissão.

Enquanto isso, no ensino “compreensivo” a escola aceita como alunos todos os candidatos, independentemente de renda familiar ou desempenho em provas. Além disso, a escola tem um currículo mais adequado para as classes populares. A primeira escola compreensiva foi instalada em 1949, mas o auge do sistema ocorreu a partir dos anos 1960, quando chegou a atingir 90% dos alunos do país.

Apesar da penúria do pós-guerra, não foram abolidas, como Melissa postula que era necessário, as escolas privadas, num país então sem dinheiro, nem as escolas religiosas, num país já então crescentemente secularizado. Mas ela considera como que uma idade de ouro os tempos, nos anos 1970, em que foi escolarizada, segundo os valores de igualdade e de solidariedade das escolas compreensivas que frequentou. Desde meados dos anos 1980, entretanto, governos tanto conservadores como trabalhistas têm movido uma verdadeira guerra contra as escolas compreensivas, sob a argumentação de que não se adaptam aos requisitos pragmáticos de produtivismo, competitividade, individualismo­ e exaltação ao lucro, inerentes ao neoliberalismo. Segundo os neoliberais, as escolas compreensivas, em vez de estimularem os mais talentosos, criam uma “massa cinzenta de mediocridades”.

Para desgosto de Melissa Benn, desde os anos 1980 têm sido introduzidas diversas medidas para tornar mais “competitivo” o ensino. Uma dessas medidas envolvia o seguinte: antigamente, no auge do sistema compreensivo, os alunos de cada bairro eram automaticamente encaminhados para a escola daquele bairro. Segundo a nova medida, os pais podiam escolher onde seus filhos seriam matriculados. Isso implicou uma concorrência acirrada entre as escolas compreensivas, agora, como as particulares e as religiosas, classificadas como “melhores” e “piores”, perdido o ideal­ progressista de igualdade.

Melissa, entretanto, reconhece que mesmo no auge das escolas compreensivas, quando elas tinham de concorrer no mesmo bairro, as privadas perdiam os alunos de melhor desempenho. Assim, a batalha a que ela se refere nunca foi ganha. Apenas prossegue hoje em piores condições.
__________________________

A despedida de um mestre

Renato PompeuEste artigo é o de despedida do jornalista Renato Pompeu da Revista do Brasil. Ele morreu no último dia 9 de fevereiro, aos 72 anos, pegando de surpresa amigos e familiares. Até a véspera abastecia regularmente seu blog. E poucos dias antes havia pedido a seguidores no Facebok ajuda para conseguir frilas – do alto de seus 50 anos de vivência no jornalismo.

Participou da criação do Jornal da Tarde, em 1966, da revista Veja, em 1968, do projeto de renovação da Folha de S. Paulo liderado por Cláudio Abramo, no final dos anos 1970, e trabalhou no Estadão, nos anos 1990. Escreveu 22 livros, com muitas incursões filosóficas por diversas áreas, sempre que possível com olhar marxista sobre as coisas – da sociologia à economia, passando pelo futebol e a loucura.

Com a loucura passou a conviver desde o dia em que foi parar numa sala de tortura por uma semana, no início dos anos 1970. Foi internado pela primeira vez, entre janeiro de 1974 e agosto de 1975, no manicômio do Juqueri. E voltaria a passar por processos de internação outras vezes. Deu grande contribuição à luta antimanicomial. “Saiba você, que leu alguma das minhas reportagens dos tempos de Veja ou de Folha ou JT, inclusive premiadas, que pode ter lido uma reportagem feita por um louco”, provocava.

Recentemente, Pompeu participou de um encontro de jornalistas e intelectuais promovido pela Carta Maior. Apresentou-se aos demais como um colaborador das revistas Caros Amigos, Carta Capital, Retratos do Brasil, Revista do Brasil e do Diário do Comércio. Dizia que não via mais sentido na dita “grande mídia” e que seu conceito de jornalismo deixou de ser possível na imprensa de hoje.