Crônica

Carta de um quero-quero

VICENTE MENDONÇA Meu caro Chico, escrevo estas linhas em pleno 19 de junho. Não podia deixar de aproveitar o portador e mandar-lhe lembranças pelos 70 anos completados. Me perdoe se […]

VICENTE MENDONÇA

Meu caro Chico, escrevo estas linhas em pleno 19 de junho. Não podia deixar de aproveitar o portador e mandar-lhe lembranças pelos 70 anos completados. Me perdoe se não lhe faço uma visita, mas minhas asas cansadas não suportariam voar até Paris. E não quero atrapalhar. Sei que está escrevendo, e nada como a Cidade Luz para inspirar. Mas acontece que eu não posso me furtar a lhe contar as novidades.

Desde que você me citou no verso de Passaredo, eu, que já era seu fã, tornei-me seguidor. Claro, tem outros 35 pássaros ali na música, o que valoriza ainda mais seu empenho poético em celebrar nossa amizade nascida nos gramados. “Ei, quero-quero/ Oi, tico-tico/ Anum, pardal, chapim/ Xô, cotovia/ Xô, ave-fria/ Xô, pescador-martim…” Não sei se aproveitou a homenagem para criticar o avanço do Brasil dos generais sobre as florestas, ou se foi uma metáfora contra a censura que infernizava os cantores, como nós: “Bico calado/ Muito cuidado/ Que o homem vem aí…” Rapaz, rachei o bico. Além do mais, está no álbum Meus Caros Amigos, cheio de clássicos, Olhos nos Olhos, Vai Trabalhar, Vagabundo, O que Será?. Privilégio animal.

Aposto: você viajou achando que o bicho ia pegar aqui na Copa. Ia perder a concentração, o livro ia empacar. Te conheço. Mas, olha, está tudo bem. Jogos bem jogados, muitos gols, estádios lotados. Até eu que já estava meio de bode com Copas lamento que acabe tão rápido. Por mim podíamos ter jogos todos dias, o ano todo: o jogo das seis, o das oito e o das dez. Abaixo as novelas, Copa o ano inteiro!

Dizem que o futebol é paixão, integra nações, promove a paz. Imagine. É mais que isso. Eu era menino, começava a frequentar gramados em 1974 quando vi aquilo: “Leão toca para Zé Maria, que toca para Luís Pereira, que toca para Rivelino; Riva recua para Marinho Chagas, que estica para Paulo César Caju…”. Rapaz, rachei o bico. Palmeirenses e corintianos, botafoguenses e flamenguistas torcendo para o mesmo time e jogando no mesmo time. Isso que é espírito esportivo.

Hoje não se sabe muito em que times jogam nossos craques, mas você precisava ver a festa. O mundo todo aqui se sentia em casa. A torcida brasileira lotou as belas cadeiras. Mas, cá entre nós: fui em todos os jogos e não reconheci ninguém. Sabe aquele pessoal, geraldinos, arquibaldos, que via os jogos de pé e no cimento? Não achei. Tinha muito torcedor que não tinha cara de torcedor. Eu deduzia pela cor da camisa e por vê-los cantar o hino a capela. Bonito, viu. De eriçar as penas, feito um carinho no cangote.

Mas acho que muitos ali nem sabem o que é um quero-quero, o charme dos gramados. Pergunta pro Neymar quem inspirou seu penteado. Se você cantasse “para estufar esse filó/ como eu sonhei/ só/ se eu fosse o Rei/ para tirar efeito igual/ ao jogador/ qual/ compositor…”, não entenderiam que é… O Futebol.

Não sei quando vai receber esta carta. O correio não é mais arisco como na época do nosso LP, só que ainda temos de imprimir, empacotar, despachar… Mas o que eu quero é lhe dizer que a coisa aqui não está tão preta como naquela época. E admito: continuo um consumidor assumido do ópio do povo, mesmo vendo que o futebol não é mais aquele de então.

Falando em velhos tempos, lembro do Nelson Rodrigues contando quando um grupo de jovens estudantes foi entrevistá-lo: “Que conselho o senhor dá para a juventude?”, perguntavam. “Envelheçam”, respondeu o rabugento. Rapaz, rachei o bico. É o que, queiramos ou não, acabamos todos fazendo, não é? Você muito mais que eu, claro.
Um abraço, e capricha no livro.