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Ilha de artes e devoções

Na terra de São José de Ribamar, celebra-se de tudo um pouco. Do bumba-meu-boi aos tambores de mina e crioula. Do Divino a Carmen Miranda. De clássicos de Hollywood a fotonovelas

Praia de Caburé, vizinha de duna do Rio Preguiças <span>(CLÁUDIA MOTTA)</span>Centro de Cultura Popular <span>(PAULO DONIZETTI DE SOUZA)</span>Teatro Arthur de Azevedo <span>(PAULO DONIZETTI DE SOUZA)</span>Centro histórico  de São Luís... <span>(PAULO DONIZETTI DE SOUZA)</span>...entre a preservação  e o abandono <span>(PAULO DONIZETTI DE SOUZA)</span>Igreja Matriz de São José de Ribamar <span>(PAULO DONIZETTI DE SOUZA)</span>Antônio Miranda: fotonovelas, Carmem Miranda, clássicos do cinema e réplica do Titanic feita à mão <span>(fotos Paulo Donizetti de Souza)</span>Lagoa nos Lençóis Maranhenses  <span>(PAULO DONIZETTI DE SOUZA)</span>Rio Preguiças <span>(PAULO DONIZETTI DE SOUZA)</span>Azulejos portugueses decoram o casario <span>(PAULO DONIZETTI DE SOUZA)</span> <span>(PAULO DONIZETTI DE SOUZA)</span>Maria <span>(PAULO DONIZETTI DE SOUZA)</span>Dona Margarida, 65 anos, tem a vista cansada e já não se arrisca mais na função de rendilheira. E teme que se extinga, pois as filhas moças não se interessam pelo ofício, sonhando com algum emprego mais urbano, menos complicado e mais rentável. Na casa da frente, a pequena Maria enfeita a banca. Ela tem só 10% da idade da vizinha e diz que vai, sim, aprender a fazer renda. Mas antes vai aprender a ler, escrever e desenhar <span>(PAULO DONIZETTI DE SOUZA)</span>

O cidadão é de São Luís, e enfrenta uma pendência jurídica com seu automóvel, não se sabe exatamente o quê. Sabe-se é que a decisão não está só nas mãos da juíza Sônia Maria Amaral Fernandes Ribeiro, no Fórum Desembargador Sarney Costa, na capital maranhense. Além de recorrer à Justiça, o fiel deu uma passada na Igreja Matriz de São José de Ribamar, município vizinho. E como a outra parte também pode ser devota do mesmo santo, o fiel põe no bilhete o máximo possível de informações – nome da juíza, placa e cor do veículo, endereço do fórum, número do processo. Talvez os detalhes contem na hora do veredito do padroeiro: “Meu São José de Ribamar, ajude-me”.

O pedido encontrado na igreja é um dos símbolos da simplicidade e da fé presentes no cenário e na vida da cidade, a pouco mais de uma hora de São Luís. São José de Ribamar compõe, junto a Paço do Lumiar, Raposa e a capital, a Ilha de Upaon-Açu (“ilha grande” em tupinambá), um canto de Brasil fundado por franceses, ocupado por holandeses e colonizado pelos portugueses. A cidade tem paisagens exóticas, praias desertas e é um dos destinos religiosos mais procurados do Nordeste.

O santo é celebrado em seu dia, 19 de março, e principalmente em setembro, durante dez dias a partir da primeira lua cheia do mês – época em que atrai romarias, desde o século 19, para a festa do padroeiro do Maranhão. A devoção ao operário, marido de Maria e pai de Jesus, não é para menos: José é também padroeiro dos trabalhadores, das famílias e da própria Igreja Católica. Mas não é o único: “Aqui tem festa todo dia santo e todo santo dia”, brinca um slogan da prefeitura.

Um dos focos de disseminação das histórias e lendas da cidade é o Centro de Cultura e Turismo, em frente à praça da matriz. Ali dá plantão o servidor municipal Antônio Miranda, escriturário, bibliotecário, artesão e historiador, de 63 anos. A bem cuidada casa anuncia logo de entrada a diversidade cultural característica de toda a região, também de forte presença de crenças de matrizes africanas. As origens da Festa do Divino, do bumba-meu-boi e do tambor de crioula são explicadas com a mesma desenvoltura pelo anfitrião, em meio a manequins criados por Roberto Paixão e Riba Pintor, artistas locais, para ilustrar as tradições com seus personagens, cores e papéis.

Cinema e novelas

O folclorista Miranda conhece a fundo as histórias de sua terra. Atende com a serenidade de um mestre o público que vem a turismo ou alunos em suas pesquisas. Atualmente, produz o livro Tradição, Lendas e Histórias de São José de Ribamar, todo quadrinizado, que reconstrói o perfil e a cultura locais desde os primeiros contatos dos missionários portugueses com os índios gamelas, donos do pedaço até o começo do século 17.

Cinéfilo, guarda no Centro de Cultura um acervo de 318 filmes, alguns recuperados de coleções de jornais e revistas, outros “encontrados e digitalizados com ajuda de amigos”. Quase todos estiveram em cartaz no Cine Ribamar enquanto existiu, de 1953 a 1979. Miranda catalogou toda a programação que encontrou nos arquivos de jornais da capital.

O morador que quiser ver Rita Hayworth em Gilda tem. Pode conhecer Casablanca, com Ingrid Bergman e Humphrey Bogart, ou levá-lo para casa como o detetive Sam Spade, de Relíquia Macabra. A Dama das Camélias, com Greta Garbo, e clássicos com Sophia Loren e Brigitte Bardot dormem em sua prateleira democrática, ao lado dos densos Marlon Brando e Federico Fellini, da juventude rebelde de James Dean e da juventude festiva da turma da praia de Frank Avalon.

Dois fenômenos das telas receberam atenção especial. Miranda pesquisou o que pôde sobre o Titanic. Investigou o projeto, leu sobre passageiros e tripulantes e relatos de sobreviventes, reuniu 12 filmes de várias épocas e nacionalidades sobre o transatlântico. Escaneou na memória imagens do navio e durante um ano, sete meses e 19 dias construiu com paciência de artesão e preciosismo de cineasta a réplica em exposição em sua sala desde o centenário do naufrágio, em 2012.

E com a ajuda de artesãos locais, construiu bonecas com o corpinho e a cara de Carmen Miranda, que enfeitam seu cineclube vestindo os figurinos da brasileira mais famosa de Hollywood. O fã cita de memória as 14 películas estreladas pela brasileira em terra estrangeira, de Serenata Tropical (1940) a Morrendo de Medo (1953), todas à disposição do público. Assim como o documentário Carmem Miranda: Banana is my Business (1995), que traz a última participação da estrela no programa de celebridades de Jimmy Durante Show um dia antes de ser encontrada morta, em 8 de agosto de 1955.

Na conversa, o colecionador se solta e revela mais uma de suas predileções: fotonovelas. De suas gavetas brotam revistas antigas especializadas na arte que esteve para os italianos como a teledramaturgia, para os mexicanos. “Tenho muitas fotonovelas do Domingo Alzugaray. Primeiro com a Terezinha Mendes, aquela que apresentava um programa na antiga TV Tupi. Outras com Adélia Mercandel. Você conhece o Domingo Alzugaray? Sei que ele trabalha numa revista lá em São Paulo…”, pergunta Miranda.

O programa da TV Tupi a que se refere é Primeiro Plano, que Terezinha apresentava com Cid Moreira e Luiz Jatobá. O Domingo Alzugaray que admira é o argentino naturalizado brasileiro que, antes de fundar em 1972 a Editora Três – responsável pele revista IstoÉ –, foi ator e diretor de fotonovelas de revistas como Capricho, nos anos 1950 e 1960. “Alzugaray trabalha em São Paulo, sim”, responde o repórter. “Se você o encontrar, diga que um admirador aqui no Maranhão guarda com muito zelo sua rica trajetória de artista”, pede Miranda – ele próprio uma atração que vale a visita a São José de Ribamar.
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Mangues, rendas e lagoas

Agências que organizam passeios a São José de Ribamar a partir de São Luís quase sempre incluem no roteiro passagem por Raposa, a menor das quatro cidades da ilha, com 26 mil habitantes que vivem especialmente da pesca e da renda de bilro. Praias isoladas e dunas, passeio de barco por manguezais margeados por palafitas – sempre obedecendo a pontualidade das marés – e lojas de rendas servem doses peculiares de encantamento.

Enquanto os homens, pescadores, passam até dez dias mar adentro, as mulheres exibem, sozinhas ou em grupo, ao vivo e em cores, e que cores!, como a renda sai do bilro para as “vitrines” de suas próprias casas enfileiradas, com frente aberta para que vem da rua e com as “pernas” dos fundos enfiadas no mangue. Como se fossem máquinas, ou mágicas, conversam manipulando as linhas com os bilros (agulhas de madeira, osso ou espinho de mandacaru) que espetam nas almofadas, onde ganham forma e sentido.

O passeio a essas periferias da ilha são um complemento essencial para quem vai a São Luís e esgota suas incursões ao centro histórico, onde fica o maior acervo arquitetônico de azulejos portugueses do continente. Boa parte dessa memória colonial está tristemente deteriorada. A cidade conseguiu tocar um processo de revitalização e reformas por meio da Unesco, mas desde a conquista do título de Patrimônio Cultural da Humanidade, em 1997, o ritmo dos restauros é lento. Por isso, corre o risco de perder o título.

A cidade mantém bons museus a valorizar sua história e diversidade. A presença marcante das religiões africanas e a rica produção artística local estão em toda a parte. Os atendimentos das casas de cultura são exemplares, como monitorias de estudantes que dominam os assuntos e parecem gostar do que fazem. Eles estão na Casa de Nhozinho, o artista popular Antônio Bruno Pinto Nogueira (1904-1974), escultor, pintor e construtor de brinquedos; no teatro erguido em 1817 e que na década de 1920 recebeu o nome do teatrólogo Arthur de Azevedo; ou no Centro de Cultura Popular, casarão de quatro pavimentos onde se sabe de tudo sobre festas e rituais populares ou religiosos, candomblé, umbanda, tambor de mina, tambor de crioula, boi, Festa do Divino e carnaval.

O que ninguém esconde é a sensação de insegurança da capital maranhense. “Se a rua estiver meio deserta, não vai não. Tá feia a coisa aqui”, ouve-se por toda a parte.
O centro histórico ganha vida no meio da tarde. Barraquinhas de artesanatos bem feitos e baratos são armadas lado a lado com as de beliscos. Tapioca, água de coco, coxinha de caranguejo ou de carne de sol, arroz de cuxá (refogado com tomate, cebola, pimentão, ervas e camarão seco), sucos e sorvetes de graviola, cajá, cupuaçu e açaí podem recompensar bem as longas caminhadas.

São Luís é ainda ponto de partida para Barreirinhas, porta de entrada para os Lençóis Maranhenses, a 250 quilômetros. Para se banhar em algumas das milhares de lagoas daquele mar de areias, o melhor momento é o primeiro semestre: os oásis são formados pelas chuvas de todos os dias do “inverno”, de janeiro e junho. A partir de julho, começa o “verão”. As chuvas, e suas piscinas, serão cada mês mais escassas até dezembro.
Mesmo que as lagoas não estejam 100%, os passeios de lancha voadeira pelas comunidades ao longo do Rio Preguiças já valem o ingresso em Barreirinhas. E se o visitante se hospedar numa casa ou pousada que tenha os fundos banhados pelo rio, pronto: está na praia. Pode desfrutar, sem culpa, do prazer de não fazer nada.