ARIANO SUASSUNA

Do Auto da Compadecida

Vicente Mendonça   João Grilo: – Padre João! Padre João!Padre, aparecendo na igreja: – Que há? Que gritaria é essa?Chicó: – Mandaram avisar para o senhor não sair, porque vem […]

Vicente Mendonça

 

João Grilo: – Padre João! Padre João!
Padre, aparecendo na igreja: – Que há? Que gritaria é essa?
Chicó: – Mandaram avisar para o senhor não sair, porque vem uma pessoa aqui trazer um cachorro que está se ultimando para o senhor benzer.
Padre: – Para eu benzer?
Chicó: – Sim.
Padre, com desprezo: – Um cachorro?
Chicó: – Sim.
Padre: – Que maluquice! Que besteira!
João Grilo: – Cansei de dizer a ele que o senhor benzia. Benze porque benze, vim com ele.
Padre: – Não benzo de jeito nenhum.
Chicó: – Mas padre, não vejo nada de mal em se benzer o bicho.
João Grilo: – No dia em que chegou o motor novo do major Antônio Morais o senhor não o benzeu?
Padre: – Motor é diferente, é uma coisa que todo mundo benze. Cachorro é que eu nunca ouvi falar.
Chicó: – Eu acho cachorro uma coisa muito melhor do que motor.
Padre: – É, mas quem vai ficar engraçado sou eu, benzendo o cachorro. Benzer motor é fácil, todo mundo faz isso, mas benzer cachorro?
João Grilo: – É, Chicó, o padre tem razão. Quem vai ficar engraçado é ele e uma coisa é o motor do major Antônio Morais e outra benzer o cachorro do major Antônio Morais.
Padre, mão em concha no ouvido: – Como?
João Grilo: – Eu disse que uma coisa era o motor e outra o cachorro do major Antônio Morais.
Padre: – E o dono do cachorro de quem vocês estão falando é Antônio Morais?
João Grilo: – É. Eu não queria vir, com medo de que o senhor se zangasse, mas o major  é rico e poderoso e eu trabalho na mina dele. Com medo de perder meu emprego, fui forçado a obedecer, mas disse a Chicó: o padre vai se zangar.
Padre, desfazendo-se em sorrisos: – Zangar nada, João! Quem é um ministro de Deus para ter direito de se zangar? Falei por falar, mas também vocês não tinham dito de quem era o cachorro!
João Grilo, cortante: – Quer dizer que benze, não é?
Padre, a Chicó: – Você o que é que acha?
Chicó: – Eu não acho nada de mais.
Padre: – Nem eu. Não vejo mal nenhum em abençoar as criaturas de Deus.
João Grilo: – Então fica tudo na paz do Senhor, com cachorro benzido e todo mundo satisfeito.
Padre: – Digam ao major que venha. Eu estou esperando.
Chicó: – Que invenção foi essa de dizer que o cachorro era do major Antônio Morais?
João Grilo: – Era o único jeito de o padre prometer que benzia. Tem medo da riqueza do major que se péla. Não viu a diferença? Antes era “Que maluquice, que besteira!”, agora “Não vejo mal nenhum em se abençoar as criaturas de Deus!”.
Chicó: – Isso não vai dar certo. Você já começa com suas coisas, João. E havia necessidade de inventar que era empregado de Antônio Morais?
João Grilo: – Meu filho, empregado do major e empregado de um amigo do major é quase a mesma coisa. O padeiro vive dizendo que é amigo do homem, de modo que a diferença é muito pouca. Além disso, eu podia perfeitamente ter sido mandado pelo major, porque o filho dele está doente e pode até precisar do padre.
Chicó: – João, deixe de agouro  com o menino, que isso pode se virar por cima de você.
João Grilo: – E você deixe de conversa. Nunca vi homem mais mole do que você, Chicó. O padeiro mandou você arranjar o padre para benzer o cachorro e eu arranjei sem ter sido mandado. Que é que você quer mais?

Trecho do Auto da Compadecida, de Ariano Suassuna, encenado pela primeira vez em 1956. O escritor e pesquisador de cultura popular morreu em 23 de julho

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